Sob o Céu da Colina (parte 1 de 3)

Sempre durante a primavera, os pais de Tiago passavam os finais de semana em um chalé de que eles tinham propriedade no alto do Morro dos Lobos, uma linda colina com vastos bosques e riachos que fica a uns vinte minutos de Pinheirais.

Tiago e eu éramos colegas de campinho e vizinhos de rua, além disso, ele era primo de André, meu melhor amigo, o que nos fazia muito amigos também. Tal amizade levou-me, certa vez, a ser convidado para a casa de campo. Eu adorara o convite. Passar o final de semana em um lugar cercado pela natureza, com um lago nos fundos e tendo meus dois melhores amigos como companhia, para uma criança de onze anos isso equivalia ao paraíso.

Alguns dias após eu ser chamado para o passeio, nós partimos. Era uma sexta-feira de feriado ao limiar da aurora. De carro, além do tempo entre o bairro e o morro, ainda se percorria uma meia hora de subida. Apertados no banco de trás de uma caminhonete íamos nós três, Beatriz, irmã menor de Tiago, e a babá dela; na frente, os pais dele. Eu levava nas mãos uma Polaroid velha que ganhara do meu avô. Fotografávamos tudo o que passava pelo caminho: um guaxinim, uma família de preás, algumas árvores esquisitas, casebres de moradores às margens da estrada, até mesmo um velho com uma foice escorada no ombro, que se inclinou para olhar o interior do carro ao passarmos por ele. As fotos saíram meio desfocadas devido ao movimento do carro, mas para nós estavam ótimas.

– Cara, aquele velho tinha um olhar monstruoso. – Caçoou Tiago.

– Carregando uma foice daquela, ele deve ser Jack, o estripador de guaxinins. – Achincalhei ainda mais.

– É? Vocês ficam brincando, mas o jeito com que ele ficou olhando para dentro do carro era muito sinistro. Vai que ele é algum maníaco de verdade e resolve subir o morro de madrugada para nos estripar. – Supôs receosamente André.

– Acho melhor vocês três conversarem sobre outra coisa. – Advertiu-nos doutor Paulo, pai de Tiago. Ele era clínico-geral.

Depois da repreensão ficamos meio calados pelo restante do caminho.

Alguns quilômetros mais e já chegávamos ao chalé. Aquilo era simplesmente lindo. A visão que se tinha era de várias montanhas verdejantes a rodear todo o local, pequenos córregos de água banhavam uma relva deslumbrante e uma mata densa circundava a bela casa num raio de uns duzentos metros. Ao corrermos mais adiante, vimos o lago do qual dona Clara, mãe de Tiago, tanto se vangloriava de ter em seu quintal. Era magnífico.

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Tiago e eu não perdemos tempo, mal nos acomodáramos e já fomos logo trocando as grossas roupas de viajem pelas sungas de banho e pulado na água morninha do lago. Estava uma delícia. André ficou de fora por algum tempo, devido ao lanche que fizera ao chegarmos. Chacoteávamos dele sentado à varanda, de braços cruzados e de expressão fechada, enquanto pulávamos do pequeno ancoradouro e fazíamos acrobacias aquáticas. A alegria era plena até que o inesperado aconteceu.

– Júlio, me ajuda cara! – Apelou Tiago já chorando.

Eu nadei ao seu encontro rapidamente.

– O que foi cara? O que você tem?

Vi a dor estampada nas feições de seu rosto e a água ficar suja de sangue. De imediato, envolvi seu braço por trás da minha cabeça e boiei com ele para a margem do lago.

– André! André! Chame seus tios, rápido!

– O que aconteceu? – Saltando da cadeira de balanço.

– Vai chamar depressa! Vai!

André entrou às carreiras. Segundos depois veio todo mundo correndo para o lago. A mãe de Tiago gritava desesperada.

O sangramento vinha do pé esquerdo. O calcanhar dele tinha um corte aparentemente profundo com umas duas polegadas e meia de abertura. Doutor Paulo colocou-o nos braços e correu para dentro do chalé. Lá havia um modesto ambulatório doméstico montado para pequenas emergências, como a que estava ocorrendo. Ao examinar o ferimento, o médico constatou que não era muito grave. Anestesiou o local e deu-lhe alguns pontos. Em seguida, medicou o filho com um analgésico e um anti-inflamatório.

Quando seu pai terminou o trabalho, Tiago fora descansar um pouco. André e eu, após ouvirmos as recomendações preventivas de dona Clara, voltamos para o lago.

– André, eu quero achar a coisa que cortou o pé de Tiago, seja lá o que tenha sido. – Já estávamos dentro da água.

– Você está vendo o tamanho deste lago? Como você pensa em encontrar isso?

– Sei onde ele se cortou. É só mergulhar lá e procurar. E você vai comigo!

– Não vou, não! Sempre que você vem com suas ideias, eu acabo me dando mal.

– Você se dá mal porque faz tudo que nem um franguinho medroso. – Imitei um cacarejo.

André acabara me acompanhando ao mergulho no local do incidente. Este ficava a uns dez metros à frente do ancoradouro. Revezávamos na imersão, por segurança. Enquanto um descia, o outro ficava de apoio na superfície. Devemos ter descido umas seis vezes cada um, até que André subiu mostrando um minúsculo corte no indicador da mão direita.

– Está vendo o que você me fez fazer?! Eu sabia. Sempre é assim. Eu é que acabo me dando mal nessas coisas.

– André, você encontrou?

– O quê? Um rasgão na minha mão?

– Deixa de choradeira! Onde está? Em que foi que você se cortou?

– É só descer bem aqui onde eu estou. Quem sabe você tem o mesmo destino trágico que eu e Tiago tivemos. – Exagerando.

Ao descer no mesmo lugar que ele, tateei cautelosamente o fundo do lago e, enfim, encontrei o que eu procurava. Era algum tipo de lâmina curva com um cabo extenso que estava preso entre as pedras. Não dava para visualizar bem, a água era um tanto turva. Quando emergi com o objeto em punho, confirmei o que eu já imaginava, era uma foice. A ferrugem corroera-lhe o metal quase todo.

Saímos apressadamente da água e, ao entrar em casa, alardeei.

– Nós achamos. Nós achamos.

– Acharam o quê, meninos? – Dona Clara desceu os degraus atordoada.

– André encontrou o objeto em que Tiago se cortou.

– Uma foice? – Espantada.

O pai, a caçula e a babá também vieram saber o que acontecia.

– Quem achou o quê? – O médico perguntou antes de ver o objeto – Então foi nisto que Tiago se cortou? – Tomando consigo a ferramenta.

– E eu também, tio. – Mostrando o arranhão do dedo.

– Caramba! Que ferimento enorme! – Doutor Paulo fingindo espanto – Esta lâmina está muito enferrujada. Segunda-feira eu levarei os dois ao posto para tomarem antitetânicas. Agora vamos fazer um curativo nessa “cratera” em seu dedo. – Brincando mais uma vez.

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Na hora do almoço, mesmo mancando um pouco, Tiago desceu para comer.

– Um ferimentozinho no pé não vai me roubar o final de semana.

E assim, logo após a refeição, fomos os três sentar um pouco à beira do lago, debaixo de um arvoredo. A tarde estava maravilhosa. A brisa fresca e suave nos fizera adormecer por algum tempo. Despertei com André a me chamar.

– Júlio?! Júlio?! – Assustado – Tiago sumiu.

– Hein?

– Acordei de um pesadelo esquisito e não o vi mais.

– Ele deve ter ido dormir no quarto.

Fomos averiguar. Ele não estava lá. No entanto, não alarmamos ninguém. Resolvemos procurá-lo nas proximidades de onde estávamos deitados.

– Ei, cara! – Chamou-me André enquanto observávamos as imediações do lago – Tive um sonho horroroso agora há pouco.

– Sonhou com o quê?

– Com uma garota. Pouco mais velha que nós dois. Era loura, mas seus cabelos pareciam estar caindo e sua pele estava toda engelhada e com vários cortes que aparentavam ser profundos. Usava um vestido longo, simples e de cor clara, com muitas marcas de sangue. Ela saía do lago empunhando a foice que achamos e vinha para onde estávamos deitados, enfurecidamente.

– E então?

– Então acordei.

– Eu já sei, André. Você deve ter sonhado com a sua futura namorada.

– Engraçadinho! Estou falando sério. O pesadelo foi horrível.

Passamos uns quinze minutos a procurá-lo pelas margens da água, mas sem sucesso algum. Propus então que adentrássemos a mata. André, como sempre, negara-se a me acompanhar, porém, mais uma vez ele acabou atendendo aos meus apelos. Embrenhamo-nos com bastante cautela. As copas das árvores dificultavam a entrada de luz e as folhas secas ao chão tornavam a caminhada barulhenta e arriscada. O medo era algo instigante. Fomos até onde ainda dava para avistar o lago e paramos.

– Tiago?! Cadê você, cara? Tiago?! – Chamávamos por ele incessantemente.

– Júlio, não seria melhor voltar e chamamos os pais dele antes que anoiteça?

– Você está certo. Vamos!

Ao darmos meia volta, ouvimos o caminhar de alguém.

– André, será que é ele?

– Pode ser. Mas se for outra pessoa? – Temeroso.

– E quem seria?

– Sei lá! A garota do meu sonho talvez.

Eu quis rir, mas a situação não deixou. A aflição começava a me abater.

Virávamos para todos os lados procurando quem vinha. O som dos passos na folhagem seca aumentava gradativamente, vindo em nossa direção.

– Está chegando perto. – Angustiei-me.

Andamos de costas, vagarosamente, seguindo para o lago, observando o bosque em todas as direções, temerosos de quem veríamos. O coração pulsava tão intensamente que meu peito doía.

– Droga, Júlio! Você tinha que me meter nisso?!

Estávamos a uns trinta metros de sair da mata quando os arbustos à nossa frente começaram a se mover.

– Quem está aí? – Foi a primeira coisa que me veio à cabeça.

O barulho das folhas e os arbustos cessaram à minha pergunta.

– Quem está aí? – Insisti.

Horas de medo se passaram em poucos segundos de silêncio e angústia.

– Pelo amor de Deus, quem estiver aí, saia!

Nesse mesmo instante os galhos começaram a sacudir com força e o ruído das folhas secas voltou com mais intensidade. André e eu nos apavoramos com aquilo e desesperadamente fugimos. Corremos até o lago e, chegando lá, olhamos para trás.

– Júlio, o que foi aquilo? – André se tremia todo.

No momento em que ele perguntou obtivemos a resposta. Tiago saiu do meio da mata a se acabar de gargalhadas.

– Bobalhões! Pensavam que fosse quem? O lobo-mau? – Ele caçoou bastante.

– Tiago, cara, isso não se faz! Você quase mata a gente do coração.

– Calma! Foi só uma brincadeirinha, primo.

– E isso lá é brincadeira que faça! – Ele estava enfurecido.

André saiu zangado para o chalé. Eu, que nem liguei muito para a piada, fiquei conversando com o brincalhão. Na conversa, ele me contou que não havia adentrado a mata com o intuito de nos pregar uma peça, mas por outro motivo.

– E que motivo seria esse, então?

– Cochilei por um tempo com vocês, mas um grito me acordou. Um grito agudo como o de uma menina. Ao me levantar a vi. Estava próxima à água, apoiada nos joelhos e no braço esquerdo, a poucos metros da gente. A outra mão estava estendida para o meu lado, como se tentasse me dizer alguma coisa.

– Como ela era? – Perguntei apavorado, lembrando também do sonho de André.

– Um pouco mais velha que a gente. Uma garota loura de pele clara. Ela olhava fixamente para mim, foi estranho. Quando levantei para ir a seu encontro, ela rapidamente correu e adentrou o matagal.

– E então?

– Aí eu entrei também. Avistei-a correndo por entre as folhagens e fui atrás. Segui mancando por vários metros mata adentro, mas meu pé doía muito e acabei perdendo-a de vista. Continuei vagando um pouco mais para ver se a encontrava e acabei me deparando com uma árvore horrorosa. Júlio, a planta era enorme. Parecia estar morta há muito tempo. Ficava bem no centro de uma pequena área desmatada. O tronco e os galhos eram completamente secos, porém o chão à sua volta estava coberto de folhas. Eu não entendia como aquilo era possível. Depois de alguns instantes ali, me dei conta de uma coisa: eu estava perdido. E para piorar, num lugar tão sombrio que até o ar era difícil de respirar.

– E como conseguiu sair do matagal?

– Graças a você e a André. Esqueci a dor do calcanhar e corri o máximo que pude. Foi quando ouvi seus gritos e segui na direção deles. Daí eu lhes avistei e tive a ideia de fazer a brincadeira. O resto você já sabe.

Eu fiquei extasiado ao ouvir a história de Tiago. A tentação de investigar o que estava acontecendo com meus amigos tomava conta de mim naquele instante. Primeiro André tivera aquele sonho bizarro, depois seu primo vem me contar um fato ainda mais intrigante. Eu não conseguia pensar em outra coisa senão adentrar novamente aquele bosque e procurar a tal árvore sombria e a garota misteriosa.

– Tiago, nós vamos descobrir quem é essa garota.

– Eu estava pensando a mesma coisa. Só não continuei na mata buscando por ela porque eu estava sozinho, mas se formos juntos...

– Vamos chamar o André, pegar uns lampiões e adentrar o bosque de novo.

– É? E você acredita mesmo que o André vá com a gente?

– Vai sim! Tenho certeza que ele vai.

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 03/03/2011
Código do texto: T2825471
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