Sob o Céu da Colina (parte 2 de 3)

Voltando ao chalé, encontramos todos reunidos na sala, inclusive alguém que até aquele momento eu não conhecia.

– Chico, este é Júlio, amigo de Tiago. – Apresentou-me dona Clara.

O meu mais recente conhecido era uma espécie de caseiro que morava numa choupana próxima dali. Ele cuidava da casa nas ausências da família e tirava folgas em suas estadas. Aparecera lá àquela tarde com o pretexto de ver se precisávamos de alguma coisa, embora todos nós soubéssemos que o real motivo da visita era Lúcia, a babá, por quem ele nutria um notável afeto havia anos.

– Oi! Muito prazer, garoto! Espero que goste de ouvir histórias à beira da fogueira, porque mais tarde eu tenho uma muito boa para vocês.

Fiz sinal positivo com a cabeça e sorri à sua saudação convidativa. Em seguida, Tiago e eu pedimos licença e saímos para a varanda chamando por André. Puxamo-lhe para um canto e contamos sobre nossos planos.

– Os dois ficaram completamente malucos! Daqui a pouco vai ficar de noite. Se entrarmos naquele mato agora, vamos nos perder na escuridão. Sem falar nos seus pais. – Apontando para o primo – Eles vão nos matar se sairmos vivos do bosque.

– Deixa de drama, André! – Fui enérgico – Faltam ainda uns quarenta minutos para escurecer. E depois, voltaremos antes que sintam nossa ausência.

Eu sabia como persuadir meu amigo. Seu ponto fraco era ser tachado de covarde ou algo no mesmo sentido. Dessa forma, logo o convencemos a participar de nossa empreitada. Pegamos os lampiões e, sem que ninguém percebesse, partimos em busca da aventura.

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Lá estávamos os três, diante daquele matagal. Hesitamos um pouco antes de entrar, no entanto, nosso anseio por adrenalina nos motivava, pelo menos a mim e a Tiago. Creio que a motivação de André era a tortura psicológica que o infligíamos. Adentramos cuidadosamente, porquanto sabíamos do risco de nos deparar com algum bicho arisco. Além disso, dentro da floresta “anoitecia” mais cedo. Enquanto lá fora o sol ainda iniciava o ocaso, no meio da mata a escuridão já se estabelecia.

– Júlio? Tiago? Estou começando a achar que não foi uma boa ideia fazermos isso hoje. Está muito escuro.

– Está nada! – Mas estava mesmo – O que você acha Júlio?

– Ainda dá pra enxergar. – Quase nada.

Nós praticamente só enxergávamos os raios das lanternas; Os mosquitos começavam a se banquetear do nosso sangue; E o barulho dos nossos passos nas folhas, misturados com cricrilados e coaxados, compunham uma sinfonia apavorante que aumentava ainda mais nossa tensão.

– Cara, você tem certeza que lembra onde fica essa tal árvore? – Comecei a me preocupar.

– Fica tranquilo, mano! Sei que é por aqui em algum lugar.

De repente Tiago exaltou-se. Ele dizia ter visto o vulto de alguém.

– Onde? – Perguntei acautelado.

– Passando rapidamente entre aquelas árvores. – Iluminando o local.

– Droga! Droga! Bem que eu avisei a vocês. Que droga! – André começou a chorar inconsoladamente.

– Meu Deus! Eu vi de novo. – Mostrando então um outro lugar – E agora ali.

Eu também comecei a entrar em pânico. Posicionamo-nos de costas um para o outro, formando um triângulo, acuados e com as luzes erguidas, a observar atentamente em nosso redor. Meu coração batia num ritmo frenético; André, desmanchando-se em lágrimas, xingava a mim e ao primo; e este, dizia ver uma sombra correndo por todos os lados.

– Tiago, se isso for mais uma brincadeira sua...

– Não é brincadeira não. – Defendeu André – Eu sinto que tem alguém passando em nossa volta, só não consigo ver quem é.

– Mas eu vejo. Está em todo lugar. – Tiago começara a chorar também.

Eu não conseguia entender por que os dois podiam ver ou sentir alguém ali e eu não. Porém, a certeza de que havia realmente algo nos rodeando me tomara, pois a expressão aterrorizada dos meus dois amigos era impressionante. Lágrimas caudalosas e gritos de desespero mostravam-me a verdade, e ela era desesperadora.

– Seja lá quem estiver aí, saia agora! – Gritei agoniado.

– Não, Júlio! – Apelou André – Não faça isso! A gente não tem ideia de quem pode sair do meio das árvores.

No mesmo momento, Tiago caiu de joelhos ao chão com as mãos tapando os ouvidos e aos berros.

– Ai... Não, meu Deus! Não! – Sua face exprimia uma dor intensa.

– Tiago? Fala comigo, cara! André, o que ele tem?

– Não sei, Júlio, não sei. – Ele chorava olhando apreensivo o primo.

Soltamos as lanternas e nos abaixamos para tentar ajudá-lo. Ele parecia estar tendo um ataque. Permaneceu assim por mais um tempo até cair desacordado.

– Júlio? – Chamou-me André – Não sinto mais a presença de quem nos rodeava.

– Como assim?

– Acho que foi embora.

Assim que André fechou a boca, Tiago despertou. Sentou-se por alguns instantes e reclamou de dor na cabeça. Ele estava pálido e apático.

– Ela se foi? – Perguntou levantando-se.

– Ela? – Indaguei tentando entender – Quem? A tal garota?

– Sim. Ela saiu do meio das árvores de repente, fitou meus olhos e gritou com tanta histeria que quase estoura meus tímpanos. Cara, meus ouvidos doeram tanto que eu não suportei, acabei apagando.

– Meu Deus! Ela é uma assombração. – Assustou-se André.

– Mas eu não vi nada. – Fui um pouco cético.

– Mano, eu juro que ela estava ali. Olha como eu estou!

Ele parecia mesmo ter visto algo de outro mundo. Sua fisionomia abrandava minhas dúvidas.

– Vamos sair daqui agora! – Tomei a iniciativa.

– Júlio, o pé dele está sangrando. – Os pontos pareciam ter rompido.

André e eu apoiamos nosso companheiro pelos ombros, um de cada lado, e deixamos aquele lugar às pressas. Ficamos durante horas ziguezagueando por entre as árvores buscando um modo de voltar para casa. Foi então que visualizamos um foco luminoso e seguimos ao rumo dele. Ao nos aproximarmos da luz, começamos a ouvir vozes chamando nossos nomes. Estavam aflitos a nos procurar.

Quando finalmente achamos a saída, encontramos também os pais de Tiago e o caseiro. Levamos uma baita bronca logo de cara. Como castigo, nós teríamos que deitar mais cedo àquela noite.

– Poxa vida! Ficamos sem a fogueira e sem as histórias do Chico. – Lamentava-me enquanto voltávamos ao chalé.

– É?! Mas a culpa é sua. – Apontou-me André – Se você não tivesse inventado mais uma de suas ideias idiotas, nós não teríamos passado o que passamos nem ficado de castigo.

– Vão com calma vocês dois! Acho que viver uma história de terror é melhor que ouvi-la e, hoje, nós vivemos uma pra lá de alucinante, não acham? – Apaziguou o outro.

Tiago fez com que nos sentíssemos bem com o ocorrido. Nós havíamos realmente passado por algo incrível naquele mato, porém o mais impressionante ainda viria.

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Depois que doutor Paulo cuidou mais uma vez do ferimento do filho, fomos jantar. Em seguida, nos mandaram para o quarto. Lá, além da cama, tinham dois colchões arrumados ao chão. Trocamos nossas roupas e deitamos, entretanto não dormimos de imediato, precisamos levar mais alguns carões até pegarmos no sono.

Meus dois amigos já dormiam e eu não conseguia “pregar os olhos”. Muitas coisas passavam pela minha cabeça naquele momento. Eu duvidava da veracidade dos fatos e acreditava neles ao mesmo tempo. Quem seria a tal garota loira? Por que os outros a via ou sentia e eu não?

Meu colchão ficava ao lado da janela, de onde se tinha uma belíssima vista do lago. Passei bastante tempo tentando adormecer, mas ficava rolando de um lado para outro do leito, então resolvi levantar e contemplar a paisagem.

– Minha Nossa! – Surpreendi-me ao ver algo.

Havia um homem lá fora. Alguém desconhecido, parado ao limiar da varanda. Ele olhava estranha e fixamente para a porta dos fundos. Ao observar melhor, percebi de quem se tratava, era o velho que fotografamos na subida da colina.

Durante alguns minutos fiquei estático, sem atitude, apenas reparando no intruso. Foi então que ele desviou seu olhar para mim. Vi o mal apontar de seus olhos. Algo cruel, sombrio, que me deixou totalmente tomado por calafrios, por um terror nauseante.

Apressadamente me agachei e chamei por André. Ele não acordou. Então saltei por cima dele para chegar à cama, a fim de acordar Tiago. Igualmente sem sucesso. Sacudi e clamei aos berros pelos dois, mas eles não despertavam. Pareciam estar em uma espécie de coma.

Saí pelo corredor a bater nas portas dos quartos do casal e da filha menor, onde também dormia Lúcia, porém ninguém atendia aos meus apelos desesperados. Eu não conseguia pensar em mais nada. Todos tinham caído em um estado profundo de inconsciência. Estávamos sozinhos eu e aquela presença tenebrosa à porta. Desabei em prantos.

Após muitas lágrimas e soluços, resolvi voltar para o quarto e novamente observar o estranho. Aproximei-me receosamente da janela e olhei para fora. Foi um alívio. O homem não estava mais lá. Pude respirar profundamente por um instante. Verifiquei se ele havia realmente ido embora e, após ter certeza, fechei o vidro. Mas ao me virar...

– Ah meu Deus! – Meu pânico tornou de imediato.

O sujeito estava à entrada do quarto com a foice na mão.

– Que... Quem é o senhor? – Até minha fala tremia. – O que quer aqui?

Subitamente ele veio em minha direção a desfechar foiçadas.

Aos berros e prantos supliquei por misericórdia, implorei por compaixão, porém meu clamor era inútil ante a ira que provinha dele. Seus golpes, apesar das minhas tentativas de esquiva, acabaram por me atingir sucessivas vezes.

– Ah! Para! Pelo amor de Deus, para!

O quarto se cobria com meu sangue e eu, caído ao chão, ainda lutando contra as investidas do maníaco, começava a desfalecer. Meu corpo inteiro se enchia de chagas e minha vida jorrava ao fio daquela lâmina feroz.

– Não! – Fora o meu último brado de agonia.

Após tanta aflição, finalmente despertei daquela insanidade. Sob as queixas dos meus dois amigos, percebi que tudo não passava de um sonho ruim, de um aterrorizante pesadelo.

– Para de gritar, Júlio! Deixa a gente dormir, poxa! – André detestava ser acordado.

Ainda meio atordoado, olhei para os quatro cantos do quarto, temendo que houvesse resquícios do sonho no mundo concreto.

– O que aconteceu? Por que você estava tão agitado? – Indagou Tiago.

Contei-lhes do infausto que vivi durante o sono e de como tudo parecera muito real. Eles ficaram assombrados ao meu relato, sobretudo André, que se impressionava com qualquer coisa que lhe falassem.

Como ainda eram três e pouco da madrugada, tentamos continuar nosso sono.

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Logo que os primeiros raios do alvorecer alumiaram o firmamento, levantei-me e acordei meus dois companheiros. Eu estava ansioso pela adrenalina, ansioso por me embrenhar novamente na floresta dos mistérios sombrios. Não conseguia conter minha excitação.

Descemos as escadas como cavalos selvagens correndo nas pradarias. Tomamos café às pressas e quando já íamos saindo, dona Clara nos chamou.

– Escutem! Não quero vocês entrando no bosque outra vez! Pelo menos não sozinhos. Caso tenham essa “ideia de jerico” novamente, tentem convencer Paulo ou Chico a ir com vocês, do contrário estão terminantemente proibidos. Ouviram?

– Sim, tia Clara.

– Eu quero ouvir dos três.

– Ouvi sim, mãe.

– Ouvimos sim, dona Clara.

– Espero que tenham ouvido mesmo!

Ficamos um tanto desconsolados com a proibição. Sabíamos que doutor Paulo não iria conosco. Nossa esperança era que Chico, depois de muito choramingarmos, talvez nos acompanhasse.

Descemos a estrada até uma estreita e breve trilha que nos levou à morada do caseiro.

Ao nos aproximarmos da porta ouvimos a voz de Chico, como se conversasse com outra pessoa dentro da choupana. Resolvemos não chamar de imediato e ficamos de ouvidos colados à porta. Entendíamos tudo o que ele dizia, mas não conseguíamos escutar a outra voz.

– Acho que ele está falando sozinho. – Supôs Tiago.

– Ele está conversando com uma mulher. – Retrucou André.

– Vocês dois: parem e escutem! – Fiz sinal pedindo silêncio.

– Eu não posso continuar assim. – Chico parecia estar lamentando – Não quero abandonar você, e não vou, mas gosto da Lúcia. Quero tentar minha vida ao lado dela. O que há entre nós nunca irá acabar, eu prometo! Mesmo que haja algo entre mim e Lúcia, eu continuarei te amando, para sempre!

– O que vocês fazem aqui? – Assustou-nos doutor Paulo, chegando sorrateiro.

No mesmo instante, Chico abriu a porta.

– Doutor Paulo? Meninos? – O caseiro saiu meio assustado – Posso ajudá-los?

– Desculpe incomodá-lo, Chico, mas vim ver se esses garotos realmente haviam vindo procurar por você. É que Clara proibiu que entrassem sozinhos na mata.

– Tudo bem, doutor, se eles resolverem se embrenhar na mata outra vez, eu vou junto.

Chico disse tudo o que queríamos escutar. Enquanto vibrávamos de alegria, ele entrou na choupana e saiu de chapéu na cabeça e facão na mão.

– Vamos garotos! Quero voltar antes do almoço.

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 04/03/2011
Reeditado em 21/03/2011
Código do texto: T2827537
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