Sob o Céu da Colina (parte 3 de 3)

Voltamos ao chalé e de lá, pouco depois, partimos rumo ao bosque. No instante antes de adentrar o matagal, Chico virou-se para nós com um ar sério.

– Muito bem, o que vamos procurar ali dentro, em meio a todas aquelas árvores e bichos? Deve haver um motivo muito importante para justificar todo esse risco.

Naquele momento ficamos calados olhando uns para os outros, esperando que alguém tivesse coragem de contar ao caseiro o porquê de estarmos ali. Como meus dois companheiros não tiveram peito para falar, acabei eu abrindo o jogo. Porém fui omisso quanto a garota.

– Uma árvore? Então é por isso que vocês querem encarar essa aventura?

– Mas Chico, não é apenas uma árvore. É simplesmente a coisa mais sinistra que eu já vi. – Justificou Tiago.

– Sei que árvore é essa: é o velho pau-d’arco. Lá não é um bom lugar. O povo aqui do morro fala que há muita assombração por aqueles lados. Ninguém daqui tem coragem de andar por lá.

– Mas Chico... – Choramingamos em coro.

– Ninguém além de mim, é claro. – O caseiro sorriu.

Demos risadas da brincadeira e, em seguida, tomamos o rumo do mato. Chico ia à dianteira, mostrando-nos os lugares mais seguros aonde ir. Seguíamos devagar, devido ao ferimento de Tiago.

Depois de caminharmos por uns trinta minutos, chegamos ao local. Era verdadeiramente uma cena aterradora. Aquela árvore exalava terror. O ar era mesmo bem pesado em torno daquele tronco torto com galhas secas. Por alguns minutos ficamos em silêncio, apenas observando toda aquela paisagem medonha. A folhagem ao chão era surpreendente, pois estávamos em uma espécie de clareira e a única árvore lá era aquele pau-d’arco.

– Esta planta já foi muito bonita. Na primavera, suas flores douradas eram o que havia de mais lindo em toda essa mata. – Chico falou com um ar nostálgico – Estão satisfeitos? Está aí a aventura de vocês. Uma árvore velha e seca. Agora já podemos ir embora?

O caseiro estava meio estranho. O lugar parecia fazer mais mal a ele que a nós três.

– Bem, já achamos a árvore... Agora só nos falta encontrar a garota. – André “deu com a língua nos dentes”.

– De quem vocês falando? – Inquiriu Chico. – Que garota é essa?

– Já que você não segura essa sua língua solta, conta logo tudo de uma vez. – Instiguei André.

Enquanto ouvia a narração dos fatos, Chico expressava perturbação e receio em sua face. André falou sobre o sonho que teve e sobre a perseguição de Tiago à garota misteriosa, até perdê-la no pau-d’arco. O caseiro sentou-se apoiando os braços nos joelhos e a testa nas duas mãos.

– Chico, você sabe de quem estamos falando, não sabe? – Indaguei.

Após um breve instante de silêncio, ele falou.

– Há vinte anos um jovem de Pinheirais subiu o Morro dos Lobos com alguns amigos para acampar. Quando chegou ao alto da colina, conheceu uma linda moça que morava ali com o padrasto em uma velha choupana. Ele se apaixonou perdidamente logo que a viu. Porém, o velho percebeu o interesse de sua enteada pelo rapaz e expulsou os jovens campistas dali sob tiros de espingarda. Apesar do perigo, o rapaz não estava disposto a desistir de sua paixão. Sempre nas noites claras de lua cheia, ele subia o morro para encontrar com sua amada às escondidas aqui, sob as galhas deste pau-d’arco. O céu da colina visto daqui era ainda mais lindo aos olhos dos dois, eles passavam horas admirando as estrelas e a lua, enamorando-se ainda mais um pelo outro.

– E o padrasto dela, não descobriu nada? – Eu estava ansioso pelo desfecho da história.

– Certa noite, o moço veio ao encontro da bela jovem. Esperou durante horas, mas ela não apareceu. Então ele se encheu de coragem e correu até a choupana. Estava disposto a enfrentar o velho e levar seu amor consigo. Mas quando chegou à casa, estava abandonada. Triste e esperançoso de que ela voltasse um dia, o rapaz deixou sua vida para trás e passou a viver na choupana em que morava sua amada. Ela jamais voltou. – Enxugando as lágrimas.

– Chico? Essa é a sua história, não é? – Perguntei o que já era obvio naquele instante – Você é o tal rapaz, não é?

Ele confirmou minha pergunta com um breve calar e um olhar fixo para o chão.

– Vamos embora! Já está quase na hora do almoço – O caseiro levantou-se nos chamando e batendo a sujeira da calça.

Quando já deixavamos o pau-d’arco, André começara a ficar estranho. Ele estava tremendo. De cabeça baixa e de olhos fechados. Aproximei-me dele e toquei sua mão. Estava fria. No mesmo instante ele agarrou meu braço e abriu os olhos. Não era ele. Seus olhos estavam virados, totalmente brancos, enfurecidos.

– Ela é minha! – A voz que saía da boca de André também não era ele – Saiam! – Gritou com uma ira demoníaca – Saiam daqui!

Ficamos todos apavorados. Chico aproximou-se de nós dois e ao tocar em André, este despertou. Ele disse não se lembrar do que acabara de falar. Depois de o perguntarmos se ele estava realmente bem e de obter sua confirmação, saímos às pressas dali.

– Não vamos contar isso aos seus pais, Tiago! Tudo bem? – Colocou Chico.

Tiago concordou com o caseiro. Eu e André também.

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Eu já não duvidava de meus amigos, mas ainda queria entender por que somente eu não via nem sentia tais manifestações do além. O que teria acontecido a Tiago e André que os fizeram se aproximar tanto desse mistério? E depois de muito pensar, entendi: A foice. Ambos se feriram naquela lâmina enferrujada. Se essa era a chave para desvendar tudo, eu queria “abrir a porta” também.

Quando chegamos ao chalé, vimos todos se banhado no lago e os meninos quiseram fazer o mesmo. Eu não fui. Disse a eles que eu estava muito cansado e que iria dormir um pouco antes do almoço. Era apenas uma desculpa para ficar sozinho dentro da casa. Fui até o armário onde doutor Paulo havia guardado a foice e a tomei em minhas mãos. Depois subi para o quarto, de onde podia observar se alguém sairia da água. Eu estava tremendo. Sentei na cama de Tiago, fechei os olhos e respirei fundo. Eu precisava tomar coragem para concretizar minhas intenções. Segurei com força o cabo cheio de lodo e, evitando pensar muito, fiz um corte em meu antebraço esquerdo. A dor foi tamanha que soltei a ferramenta e gritei. Vi meu sangue gotejar o piso e, num picar de olhos, pude ver o passado diante de mim.

Eu me vi dentro de um quarto estranho. Uma garota entrou. Passou por mim e não me viu. Ela era loira e muito bonita, como os meninos haviam descrito. Parecia nervosa e apressada. Estava enchendo uma sacola com roupas e outras coisas suas. Meu coração pulsava com bastante força, enquanto eu assistia aquela moça numa visível tentativa de fuga. De repente alguém entrou no quarto. Era o velho com a foice.

– Aonde você pensa que vai? – Ele estava bêbado e transtornado.

– Vou embora. Estou indo buscar minha felicidade.

– Vai é? – Fora sarcástico – E a minha felicidade, como é que fica?

Ela tentou passar por ele, mas fora barrada pelas mãos mais fortes do velho e caiu sentada ao chão.

– Você é minha! Matei sua mãe para que eu pudesse ter você. E aquele moleque sem vergonha não vai tirar isso de mim, está me entendendo?

E erguendo a foice, o velho desfechou vários golpes contra sua enteada, deixando seu corpo repleto de chagas e coberto de sangue. Ela gritava desesperadamente e suplicava por misericórdia. Então me lembrei do meu pesadelo. Senti sua agonia doer em mim. Seu rosto desfalecia sob tanto sangue.

Depois de algum tempo descarregando seu ódio, o velho parou de investir contra a jovem. Tomou-a em seus braços e saiu do quarto. Ela ainda respirava.

Segui os dois, estávamos saindo da choupana onde Chico mora. Repentinamente eu estava no lago, de pé sobre o pequeno ancoradouro. Vi o velho chegar trazendo a moça nos braços, ela agonizava. Ele a pôs em uma canoa e remou até o meio do lago. Lá, ergueu-a novamente, deu-lhe um beijo, parou por um breve instante e a jogou na água. Eu chorei e gritei, mas ninguém podia me ouvir, eu não estava lá.

Quando pisquei novamente os olhos, me vi de volta à choupana. O padrasto macabro limpava todo o lugar da barbárie. Ao terminar, pôs o lençol sujo utilizado na limpeza dentro da sacola que a moça arrumara, pegou a foice e uma garrafa de cachaça e saiu.

Retornando ao lago, apenas a garrafa não fora atirada à água, mas a foice e a sacola imergiam até o fundo. Sentado à margem, o assassino tomou vários goles de cachaça e chorou.

– Ana! Volta! Ana... – O velho gritou desconsoladamente.

Após os gritos, entrou na água e nadou até o meio do lago, de onde não mais voltou.

Eu estava em choque com tudo o que eu havia presenciado, mas o mistério ainda não chegara ao fim. Após o afogamento daquele louco bêbado, vi algo ainda mais surpreendente. A moça saiu do lago, arrastando-se pela margem. Ela fazia força para se erguer, até que conseguiu e entrou na mata. Quando eu pensei em segui-la, tive mais uma visão: Vi o jovem Chico, indo embora do velho pau-d’arco, após esperar quem não podia mais vir; Vi também sua amada chegar e partir, e retornar àquele lugar sempre nas noites de lua cheia. E a cada vez que ela retornava, e não encontrava seu amor, a árvore sentia sua aflição e, aos poucos, morria...

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Despertei do passado sendo sacudido pelos garotos. Doutor Paulo e dona Clara entraram no quarto em seguida.

– Júlio, o que você fez, rapaz? – Preocupado, o médico tomou meu braço e avaliou o ferimento – Não foi muito profundo, graças a Deus!

Eu lhes disse que havia pegado a foice para olhá-la e que, por acidente, acabei me ferindo. Desci até a salinha que era usada como ambulatório e tive meu corte tratado.

Após tantos maus ocorridos, Dona Clara decidiu que voltaríamos para casa já no domingo pela manhã e não no final da tarde, como era previsto. Para mim estava tudo bem, pois o mistério já se havia elucidado.

Ainda naquele sábado, à noite, após ouvirmos os causos contados à fogueira, os donos da casa e a babá entraram para por Beatriz para dormir. Ficamos fora somente eu, meus dois amigos e o caseiro. Foi quando lhes contei o porquê do meu ferimento com a foice. Chico chorara meu relato. Ele imaginava a razão de Ana jamais ter voltado, mas eu lhe dei a dor da certeza.

– Chico, acho que Ana está lhe esperando. – Fui brando ao falar – É noite de lua cheia.

O homem se levantou de imediato, despediu-se de nós, tomou um lampião e correu para a mata. Eles precisavam se encontrar, ainda que não pudessem ver um ao outro, eles precisavam se encontrar... para mais uma vez seus corações baterem juntos... para mais uma vez poderem contemplar as estrelas... sob o céu da colina.

Júlio A S Crisóstomo
Enviado por Júlio A S Crisóstomo em 05/03/2011
Reeditado em 31/03/2011
Código do texto: T2830643
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