Medo de avião, ou o que Belchior não cantou ( O horror da vida real)

Por Ramon Bacelar

PASSAGEIROS DO VÔO 437 COM DESTINO A SÃO PAULO: PRIMEIRA CHAMADA.

O aviso vindo do portão oito afetou Valter como uma ameaça inconsciente: enxugou o suor, respirou fundo e por fim decidiu ir ao check-in: “Se não for agora...”.

Sabia do longo e tortuoso trajeto à sua frente, dos obstáculos o aguardando como sentinelas dissimulados: acólitos fiéis e fanáticos do Senhor Medo.

-Identidade Sr. Por gentileza, verifique o lacre das malas antes...

-Só uma mochila.

-Mais outro...

-Moça, saberia me dizer se a clínica Santo Augusto fica próximo ao...

-Como meu Sr?

-Desculpe, não foi nada.

A decisão de última hora o obrigou a partir de imediato: ironia das ironias, para curar sua aerodromofobia teria que ir de avião, antes que sua momentânea coragem enfraquecesse e cedesse lugar aos mesmos constrangimentos e dificuldades: “se não for agora, nunca mais... Nem de jegue!” pensou com um misto de temor e encorajamento.

Correu para o portão oito remoendo os mesmos medos e frustrações que sua fobia tinha causado em 15 anos de hesitações: as gozações no colégio, piadinhas no trabalho, oportunidades profissionais desperdiçadas, e agora, Ele, o Medo (primo em segundo grau da Titia Vertigem) como um fantochista sádico, comandava o espetáculo: enrugando sua testa, trincando a dentadura, alterando pulsações e batimentos cardíacos: clap, clap, clap o espetáculo vai começar!

***

PASSAGEIROS DO VÔO 437 COM DESTINO A SÃO PAULO: SEGUNDA CHAMADA.

Pagou o expresso e correu para o vão dos portões, mas antes de alcançar o raio-x sentiu um puxão nas costas:

-Acho que caiu do seu bolso senhor.

Espalhados no piso do saguão, uma profusão de dramins, lexotans e bromopridas o encaravam com olhos brancos sem pupilas. Retornou a lanchonete, engoliu dois dramins com antiácido e alcançou o raio x: olhou, avaliou, adentrou...disparou: o alarme lhe penetrou nos ouvidos como o miado de um gato estrangulado.

-Tire o relógio senhor.

O gato miou.

-O cinto.

O gato esguichou.

-Tem mais alguma coisa?

-Desculpe moça, acho que poder ser “isto”.

O oceano prateado de calmantes e cartelas anti-vômitos adornaram a esteira como a soma de todos os medos e ansiedades.

-Precisa de um médico Sr?

-Estou bem... Bem, mais ou menos, quero dizer mais ou menos bem. Não! Muito, muito bem!

-Caso o Sr. queira...

-Quero, quero sim! – As palavras saíram com a força de um caminhão desgovernado. –Me diga, por favor... Mas seja sincera. – Valter suava como tampa de chaleira.

-P-pode falar senhor.

-O avião... Quero dizer, para quem nunca viajou...

-Desculpe, não estou instruída a passar informações desta natureza, tenha um bom dia.

-Não vai me desejar boa sorte?

A atendente emudeceu.

***

Valter olhou para o relógio e disparou para o corredor lateral; ao seu lado, passageiros à espera o encaravam como se examinassem um espécime exótico saído de um livro de criptozoologia: “É agora ou nunca, agora ou nunca, agora ou, ou... nunca!!”: rasgando o saguão como um abismo de piche curvilíneo, uma mancha negra ondulante, acobertada por uma manta móvel de neblina, paralisou seus sentidos o obrigando a procurar apoio em uma coluna lateral; suspendeu o pescoço, aguardou e quando a vertigem amenizou sentiu as linhas e curvas do abismo cristalizar em um tubo anelado de piso preto e fibra transparente, comunicando com o avião: “a rampa...à minha espera, e eu...”

Conquistando a passarela com a cautela de um domador, apertou o passo quando o rugido cavernoso das turbinas o dominou; cravou as mãos nas extremidades da porta e sentiu uma vaga de calor o revestir como se adentrasse o portal do inferno: aguardou, suspirou, pensou: senhores passageiros, bem vindos à casa das torturas. Sentiu o ar escassear e um cheiro de enxofre emanar das turbinas: respirou, expirou, não pensou e suou, suou, suou...

***

Valter localizou a poltrona e esparramou no assento como um pudim fora do ponto. Fincou os olhos na turbina e girou o pescoço:

-Moça, Moça. – Berrou para a comissária de bordo enquanto vasculhava os bolsos por um lexotan.

- Pois não meu senhor.

-Que cheiro é esse?

-Purificador.

-Não, aquele... De fora. – Olhou para a turbina.

-Senhor, a janela está lacrada. O cheiro a que se...

– Me dê uma informação. –Interrompeu bruscamente. - Mas eu quero que você seja sincera... SIN-CE-RA!

-Claro.

-Quantas vezes?

-Como?

-Quantas vezes ele caiu e despeda... Desculpe! Não, não foi isso que quis... Quero dizer, quantas vezes esse avião apresentou esse barulhão?. Parece um liquidificador soluçante batendo um suco de cacarecos.

-Senhor, são as turbinas. Nossa empresa opera com os mais rígidos...

-P-pode, pode me trazer um copo d’água?

-Aguarde um minuto. Acho que precisa de um calmante ou remédios...

Valter meteu as mãos no bolso.

- A senhora aceita algum? – Dirigiu-se a comissária com um sorriso - O antiácido de limão com água gelada é uma delícia, tenho esse anti-enjôo para gestante de efeito redobrado que é um espetáculo, e esse ansiolí...

-Senhor, se isso foi uma piada...

Valter abaixou a cabeça com a consciência que o tiro tinha saído pela culatra: a calma que não era calma.

-Tome e se precisar de algo pode falar.

-Quero! Não, não quero!!... Se precisar eu chamo. - “Eu acho.”, pensou.

Engoliu-os a seco umidificando a testa com a água.

-Com licença, meu príncipe.

Um gordo seboso que parecia ser uma mistura do Rei Momo pré-cirurgia estomacal com o Ronaldo pós-traveco, sentou-se ao lado com a leveza de uma baleia flatulenta.

-Gosta de voar pequeno príncipe?

O hálito penetrou em suas narinas como uma mistura de parmesão azedo e peido de gambá.

-Na verdade... é a minha primeira vez.

-Primeira vez? Quer dizer que é... “virgem”? – Valter sentiu uma fatia de queijo

coalho percorrer seu pulso.

-A sua mão está... em cima da minha. Pode retirá-la, por favor?

-Avião... mão, medo... Lembra daquela música?: foi, por medo de avião, que segurei pela primeira vez...

-Aaiii poorrraaa! Sai pra lá jacaré, eu gosto é de mulher!

O saco de Valter pulsava como o papo de uma rã no cio.

-O que é isso?

Um homem uniformizado com olhos de poucos amigos dirige as palavras ao gordo.

-Acho que...

-Não é a primeira vez que o Sr nos causa problemas... “desta natureza”. Por favor nos poupe de mais um constrangimento para que evitemos... “providências”.

-E o Sr. está bem? A comissária me falou...

-Estaria “melhor” em terra... e longe desta besta purpurinada.

INFORMAMOS QUE DENTRO DE INSTANTES ESTAREMOS ENTRANDO EM ÁREA DE TURBULÊNCIA, VERIFIQUEM OS CINTOS.

O aviso arremessou Valter de sua postura, pinto que saiu do ovo, colocando-o em alerta geral: uma mistura de semáforo desregulado com diretor de comissão de frente de escola de samba.

- Comissária. Esta turbulência é um daqueles... tremelicos não é? Não, não... daqueles chacoalhões bem, digamos, fodões né?

-Sr seu vocabulário...

- Sim!! Fodões, phodaa: com “PH” de pharmácia, dois “ÓS” de cooperativa, um “D” de dado e dois “AS” de caatinga, e agora vou morrer... Com um “M” de MEDOOOO!

-O senhor não está em condições de...

-Aaaahhhh! Está balançando, vai cair, vai cair...

-Quer abrigo em meu “ninho do amor”, a-mooor?

-Vá se foder Belchior dos infernos! Vai cair, vai...

-Sr. por favor, suas palavras...

-Vai cair!

-Não, não vai cair, estamos na zona de turbulência, só isso.

-Só isso?! Quer dizer que o pior ainda está por vir!!

-Não é isso. Você vai assustar os outros passageiros.

Valter tremia como um pudim de medo.

-Comissária, este passageiro está assustando os meus netos. Se a senhora não tomar uma providência, nós denunciaremos a companhia.

-Eu quero falar com o piloto, preciso saber a verdade, somente a verdade, nada mais que a verdade, verdade verdadeira, ver-da-de!!!

-Senhor sente-se, por favor, por favor, por... Ajuda por favor!

-Pelamordedeus! Quero falar com o piloto! Responda-me, responda-me... O que acontece se um pássaro entrar naquela turbina fedorenta? – Sentiu uma pressão nas costas - EI!! Me soltem, soltem, vai cair, vai cair, olha lá, lá, eu falei!!! Um... urubú na turbina... Me dando língua!!! Soltem, me soltem, ei, ei me soltem, me... ... ... ...

***

“Por que me prenderam? Por que? Cadê a chave? Cadê...” Valter despertou tateando as pessoas que o rondavam como uma cerca humana, tocou nas têmporas, mas antes de encontrar foco por completo suspirou:

-Nossa que pesadelo. Achei que estava preso em um avião olhando para ...

-O Sr provavelmente sonhou que “não estava” em um avião. Respire fundo e relaxe.

Valter olhou para os passageiros e encarou a comissária.

-Por favor, voltem aos assentos, vai ficar tudo bem.

-Quer dizer...

-O Sr. desmaiou, procure relaxar, os tranqüilizantes agirão dentro de alguns minutos.

-Meu “pequeno príncipe” está melhor?

-Sai prá lá saco de...

-Esse senhor evitou que sua cabeça...

-Amorteci sua cabecinha em meu colchão do amor... A-mor.

-Comissária, não teria como a senhora me trocar....

SENHORES PASSAGEIROS: APERTEM OS CINTOS PARA O POUSO.

O aviso afetou Valter como o medo tornado carne: suores frios percorreram cílios, transmutando tremores palbebrais em lágrimas de medo e incerteza, espasmos faciais seguidos de tremores labiais desenharam em sua boca uma ambígua curvatura entre choro, riso e agonia:

- Se eu estivesse na cadeira da frente seria o primeiro a chegar ao local do acidente ahahahaha!!! Vai cair, vai cair meu Deus!!! SOCORRO!!! Aahahahah...

-Sr...

-Ahahahahahaha...

-Sr. por favor, já estamos...

- Nosso filho está assustado! A comissária fique sabendo que iremos direto ao nosso advogado!!!

-Vai cair porra, meu Deus, vai cair ahahahahah!!

-Calma!

- Está na diagonal, agora vai cair de bico, vai cair...

-Calmaaa !!

-Vai cair, vai cair, não, não vai cair, não, está caindoooooooo....

As palavras escaparam em um vômito quente-esverdeado no mesmo instante que uma explosão de pânico turvou a visão.

***

Valter abriu os olhos, enxugou o suor e respirou fundo: olhou ao redor e no lugar de gordos, turbinas fedorentas, urubus e comissárias: céu limpo, sol, brisa, coqueiros. Espreguiçou com uma sensação de alívio e liberdade, mas quando a consciência retornou, se viu de braços e pés encharcados boiando em alto mar na cadeira flutuante do avião, abriu a boca e antes que o grito escapasse, uma boca cavernosa, e igualmente bafuda, de um imenso tubarão branco sorriu para ele com sua cortina de lâminas brancas e cerradas, Valter fechou os olhos, fez o nome do pai e...

NHOOOOC !!!!!!

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 09/04/2011
Código do texto: T2898155
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