O carinha (parte 2)

Dois meses se passaram e Dona Armelinda não suportou ver o seu neto ilhado. Ela, que tanto odiava mentiras, já estava emaranhada em tantas que dizia para esconder dos outros o afastamento de Kevin. A última vez que conseguiu entrar no quarto dele foi há duas semanas, numa terça-feira, 25 de março, dia em que sua preocupação aumentou por ver o quanto aquele quarto estava estranho e o quanto Kevin estava estranho naquele quarto. Ela levava um lanche para ele, café com cookies, bateu à porta, tentou compreender as vozes que soavam no quarto antes de Kevin atendê-la mas não foi possível, rapidamente ele apareceu, abriu a porta e com um grande sorriso no rosto pegou a bandeja e levou-a para a mesa do computador. Ele esqueceu completamente das mensagens que soavam:

"O que você pode fazer?

- Eu posso fazer tudo.

O que você quer fazer?

- Eu quero sumir; quero fugir da explosão; quero que venham comigo todos os que me amam. Quero levá-los ao poço sem fundo.

O que você deve fazer?

- Devo ficar e lutar sozinho. Não há ninguém que possa me ajudar.

O que você vai fazer?

- Eu vou lutar; eu vou destr..."

Kevin desligou o som do computador quando percebeu que a sua avó não o estava escutando. Ao colocar a bandeja na mesa, Kevin disse "Vovó, a sua preocupação está para acabar. Amanhã mesmo sairei, vou a um encontro! Como eu estou, vovó?". Ela não respondeu. Ao escutar aquele diálogo, acompanhado por uns ruídos sinistros, sons de automóveis, de aviões, talvez de animais sofrendo e Kevin respondendo a um homem com uma voz rouca e ameaçadora ela arrepiou-se, levou as mãos à boca e caiu em prantos. Impossibilitada de esconder o quanto ficou chocada, ela correu para a sala enquanto Kevin a chamava, parado na porta do quarto, gritando "Ei, vovó, venha aqui! Preciso que você venha!" e, baixando a voz, quase sussurrando para si mesmo, "Não posso deixar que pense coisas malucas de mim, não posso."

Donda Armelinda não ouviu toda a gravação de Kevin mas as frases que ressoavam em sua cabeça foram o bastante para colocá-la em choque. Repetia para si mesma "O que está acontecendo, meu Deus! Por favor, me diga o que fazer! Eu preciso ajudá-lo antes que seja tarde, antes que ele faça uma besteira!" e esses pensamentos se misturavam com as respostas de Kevin àquela voz assustadora "Eu vou lutar. Eu vou destr...", "Destruir! Ele disse 'destruir!' Destruir o quê, Senhor!?"

(nota:

A próxima parte será também a última. Como já informei na primeira

parte, a prosa é um território novo para mim e por isso a minha

demora. Eu tenho lido alguns artigos de jovens que ficam na solidão de

seus quartos, lendo, vendo e ouvindo tudo o que lhes aparece. Isso

poderia ser bom, não fosse tão perigoso. Cada vez que nos aparece

um novo milhão de informações, nos fica um milhão de vezes mais

difícil de interpretá-las.)

Guilherme Bastos L
Enviado por Guilherme Bastos L em 22/04/2011
Código do texto: T2923563
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