Padre, eu não pequei

Por Ramon Bacelar

I

Por uma semana o padre Ambrósio alimentava a realidade de sua condição no vazio escuro e silencioso do confessionário; por uma semana sua consciência ardia em contorções de culpa vexatória como um réptil agonizante. E agora, a cinco dias da execução, sentia os alicerces de suas certezas fraquejarem e sua fé, antes inabalável, cedia espaço para a voz trêmula e compassada do condenado na prisão: padre... Eu não matei.

A recordação invadiu sua memória como lanças inquisidoras.

-Ainda em pé irmão Ambrósio?

A voz grave e cavernosa do padre Armani não foi suficiente para asfixiar o silêncio que respirava impaciente no confessionário, o colega não respondeu.

-Às vezes eu não te entendo.

-Está tarde irmão, vá dormir.

-Depois de tanto tempo...

-Por favor, saia. – O padre parecia sufocar com a insistência do irmão.

- Por que fraquejar depois de tanto tempo?

-Por favor...

-É injustificável uma crise de fé depois de tantos anos. Inadmissível que um ato de fidelidade ao Senhor possa te deixar em tal estado.

A serenidade sufocou em um novo fluxo de asfixia.

- Você sabe que não é simples, sabe que o réu pode ser inocentado se nós...

- Sei? – Suspirou. - Não diga tolices, ultimamente seu coração anda descompassado por aquela confissão, e mesmo se tivéssemos provas materiais irrefutáveis sobre sua inocência... – Balançou a cabeça. – Fiéis confessam pecados, irmão; talvez ele tenha clamado inocência para esconder outra culpa mais grave. Seja o que for, não tem importância. – Pausou - Irmão, o que realmente importa são os atos de fidelidade absoluta ao Senhor, nosso objetivo supremo.

- Claro, mas não estaria nossa fidelidade intrinsicamente ligada à amenização do sofrimento e preservação da vida humana acima de tudo?

-Mesmo que isto signifique quebrar o voto de silêncio do confessionário?

Padre Armani pausou antes de prosseguir

- O irmão hesita e fraqueja porque não entende: dor, sofrimento... Morte, são necessários... – Encarou a cruz na parede. – Necessários e essenciais para a glória do nosso Senhor.

Ambrósio apalpou o crucifixo como se tentasse decifrar uma revelação em braile. Suspirou medindo as palavras como se avaliasse fel.

-Seria eu um herege, ao concluir que um voto de silêncio do confessionário não deveria estar acima da vida humana?

– Francamente, você me parece perturbado. - As palavras saíram como icebergs de chumbo. - Repito ao irmão que atos de fidelidade absoluta ao Senhor é o nosso objetivo: o Senhor acima de tudo e todos.

Ambrósio regurgitou o silêncio como escudos verbais:

-O piedoso e tolerante irmão parece confundir humildade com hipocrisia, e fidelidade, com ego e soberba.

- Cale-se herege! – Encarou o colega - Fé é acima de tudo um ato de coragem, e a fraqueza, o refúgio dos covardes.

Ambrósio abaixou a cabeça e sumiu nas sombras do corredor sem se despedir.

***

O sol matinal estendia seus tentáculos luminosos na área da igreja como um protetor à procura dos seus filhos; ao lado do poço, na parte lateral do campanário, padre Ambrósio lutava com folhas, galhos e formigas colhendo maçãs para a sobremesa dominical: “Formiguinhas, formiguinhas, preciso interrompê-las, procurem outro...”

-Bom dia irmão, o pomar floresce a olhos vistos.

-O Senhor tem nos abençoado a cada dia, irmão Armani. – Respondeu sem se virar.

-Porque colhe as maçãs? A cozinha esta semana está em outras mãos.

-Porque eu gosto. – Respondeu secamente.

-Quer se ocupar com alguma coisa não é mesmo? Ainda pensando na confissão.

-Não vai conseguir me irritar.

-Claro que não, na verdade estou ... - A cautela intimidou as palavras. – Irmão, eu me preocupo com você e sua fé. Eu...

-Eu, eu, eu... – Repetiu pausadamente como se avaliasse o peso das palavras - Anda tomando o lugar do nosso Senhor nos julgamentos? Está me testando? Quanta humildade Senhor Eu, irmão... superbia.

Armani engoliu em seco, estendeu a mão e tocou nos ombros do colega.

-Não seja tão... – Suspirou antes de continuar – Nosso bom Deus testa-nos constantemente... Como agora.

Sentiu um toque leve em sua sandália, olhou para baixo, girou o pescoço e questionou-o com os olhos:

-Não vai pegar o jornal?

Ambrósio olhou a manchete, porém não se deu ao trabalho de ler a matéria.

-O irmão dificilmente alterará meu humor.

Armani retornou o olhar com a rigidez de uma máscara de cera, Ambrósio continuou:

– A notícia da hora da execução me foi passada anteontem, esta manchete é notícia velha.

Armani riu, todavia antes do padre embolar o jornal, segurou os pulsos e com um sutil movimento sugou a atenção do irmão.

-Porque não consulta a nota de rodapé? - A pergunta pairou no vazio, conquistou o espaço e penetrou nos ouvidos como acidez verbal.

Ambrósio parecia absorver o texto como um ator perdido em um drama hermético: erupções sudoríficas prenunciaram respiração irregular e espasmos musculares, sentiu as mãos fraquejarem no mesmo instante que um fluxo verbal de questionamento angustioso conquistou o silêncio:

-O que significa isso?! – Amassou o jornal e petrificou no colega como se olhasse para um mistério em negro: a calma que não era calma.

Armani abaixou o pescoço e olhou para o cesto caído no chão.

-O irmão foi descuidado o bastante para largar o cesto; maçãs amassadas, azedam a calda.

-O que é isso!

O silêncio do silêncio.

-Ora, ora irmão... Isso é o que é: você foi o escolhido para levar um pouco de conforto ao réu antes da execução, deveria se sentir...

- Vi em seus olhos, em sua voz... Ele é inocente! - Ambrósio abaixou a cabeça como se sentisse o peso das palavras.

-Viu? O que você ouviu não difere em essência, ainda que seja um clamor de inocência, de outras confissões .– Pausou - O irmão fraqueja em fé, desafia o voto e questiona o Senhor. – Pausou olhando nos olhos - Duvida, fraqueja... – Mordeu uma maçã vermelha. -... e peca.

-Você, você...

-Que Deus ilumine seu coração.

Foi a última coisa que falou, antes de partir em um brusco movimento de monotonia dogmática.

***

A serenidade da sacristia não foi interrompida antes que o padre Armani a adentrasse com passos firmes e um olhar que denunciou mais que escondeu. Ambrósio, escorado no vestuário de cabeça baixa, cruzava os dedos nervosamente.

-Isso é vergonhoso, patético... Os fiéis estão curiosos, o conselho tem feito perguntas, estamos...

-Desculpe, eu sei...

-Não, não sabe! O padre Germiniano não rezará a sua missa ad infinitum!

A torrente de palavras resvalou no muro do silêncio e despedaçou como impotentes fragmentos verbais. Ambrósio suspirou, mas não reagiu.

-Hoje precisei sair... –Armani procurava novas vias de acesso. – ...fui à prisão.

As palavras sugaram a atenção do colega como um imã em espiral.

-Como?

-Conversei com o diretor...e o condenado.

Girou o pescoço e olhou para Armani com se sondasse um labirinto sem centro.

-Sim?

-O irmão está correto em suas conjeturas.

-Ele confessou inocência?

-Sim.

Armani não continuou: estudou.

-E o que vamos fazer?

-O que vamos fazer? Você não entende; na verdade; melhor seria dizer ... O que eu vou fazer. Amanhã convocarei...

- Você acabou de me dizer que ele é inocente!

-Não fraqueje nem coloque palavras em minha boca! Eu lhe falei que ele jura inocência e não que eu o considere como tal. Você se guia pela emoção, constrói suas convicções em subjetividades e as sustenta em pés de barro. – Armani pausou como se as palavras o intoxicassem; suspirou, tocou-o nos ombros e continuou:

-Irmão, você se envolveu demais nesse caso, está confuso e atordoado. – Encarou o colega. – Às vezes posso ser duro, mas nunca injusto. Sempre fui fiel às...

-Fiel ao seu ego de gelo e monstruoso coração demoníaco!

-Cale-se!

-Ele é inocente!

-Amanhã vamos ver quem é fiel ao bom Deus e...demoníaco.

Ambrósio, ajoelhado, segurava o crucifixo como se agarrasse a própria vida.

“Inocente...inocente...inocente.”

***

– ... livrai-nos do mal:

AMÉM!!

Os fiéis se cumprimentaram e esvaziaram os assentos. Padre Armani apertou o passo e antes de alcançar o corredor lateral, se viu cercado por fiéis: “O irmão pode ter suas fraquezas e inconstâncias, mas seu carisma é inegável.”, pensou.

-Como tem passado o padre Ambrósio?

- A virose está sob controle... Nosso bom Deus tem cuidado do irmão, muito em breve ele retornará.

-O padre Germiniano nos falou que ele ...

-Irmãos, desculpem abandoná-los, o Senhor me chama. Em breve nosso estimado retornará para a missa dominical, fiquem com Deus.

“Fiéis, fiéis, sempre... fiéis.”

Alcançou as escadas quando uma pressão em seu ombro o obrigou retornar:

-Padre Armani.

-Desculpe irmão estou com pressa, como falei preciso...

O padre estacou quando o tom de voz o obrigou a sondar o fiel.

-Sr. Carvalho, o que o traz aqui? – Falou em tom de surpresa.

-Se Maomé não vai a montanha...

Armani não assimilou o tom jocoso do diretor do presídio.

-Nada muito importante, só queria tratar de alguns pormenores com o padre Ambrósio antes da execução. Um fiel me falou que ele foi acometido de uma forte virose.

-Sim, mas já está... recuperado; acompanhe-me por favor.

***

O diretor seguia os passos apressados do religioso como uma sombra perdida à procura de carne.

- Tem chovido aos cântaros, muita lama por aqui. Vamos contornar pelo fundo do campanário.

-É uma área muito bem cuidada.

-O Senhor tem abençoado nosso pomar. É o lugar predileto do irmão Ambrósio em suas horas de...

-Sim?

Não continuou.

-Chegamos.

Abriu a cerca e observou:

-Vamos por aqui, se bem o conheço , ele estará colhendo maçãs em nossa macieira mais frondosa.

-Não vemos mais pomares como esses. – Carvalho absorvia o cenário com um misto de nostalgia e estupefação. – Ali à frente, são jaqueiras?

Armani tocou a testa com se uma memória abandonada clamasse território; balançou a cabeça e sinalizou para o diretor o seguir.

-Como pude me esquecer. A cozinha se ocupa com os sucos e sobremesas... ele deve...

-Como?

-Desculpe, estava pensando alto. O irmão Ambrósio deve estar selecionando jacas para a cozinha.

-Por aqui? – O tom era de curiosidade.

-Sim, pelo fundo do pomar gastaremos o dobro do tempo com o risco de atolarmos no lamaçal...O Senhor foi generoso com a vida líquida.

-Neste caso... – Carvalho colocou as mãos nos joelhos sondando o universo ramoso à sua frente.

- Cuidado com os galhos.

***

O caminho de terra batida costurava o pomar de maçãs com curvas bruscas e sinuosidades excêntricas como um design de um labirinto alquímico; dedos esqueléticos com unhas de folhas ressecadas e anéis de flores multicores, acariciavam testas e couros cabeludos desenhando nas bochechas mapas de riscos e arranhões: Carvalho desbravava a rede ramosa como um peixe cativo no ato do escape: galhos esquálidos e massas frondosas ofereciam um parco refresco ótico em meio à mesmice visual de troncos, raízes e maçãs, mas quando a monotonia rebelou e a natureza, em um grito estridente de verde-vivo-agressivo, inundou seu senso de visão com uma cortina de troncos e jacas, outro grito, igualmente agressivo e não menos vivo, escapou da boca de Armani com a pressão de um desejo reprimido:

-Nããããoooo!

Carvalho, absorto na contemplação de uma jaqueira gigante, não percebeu que aos pés do padre, uma sombra longa manchava a luminosidade com movimentos lentos e irregulares: Ambrósio, com cabelos desgrenhados e membros rígidos, pendia do tronco de uma jaqueira com olhos inchados e pescoço destroncado, enquanto a língua roxa tocava a corrente do crucifixo que balançava em sincronia com o corpo inchado, como um pêndulo orgânico em contagem regressiva para a Dança das Trevas.

-Minha nossa.

-Não, não, não...

Armani pressionava o crucifixo em agonias de estupor culposo.

-Meu Deus, meu Deus...

O diretor encarava os padres com movimentos alternantes.

- Sem dúvida suicídio. – Carvalho encarou-o – Por quê?

- Por quê? Porque, porque o Senhor... O Senhor Bom Deus... E eu...eu...

-O senhor precisa se acalmar, antes de buscarmos auxílio.

-Sim, sim...O Senhor Bom Deus... E eu...

-Não, não fale. Depois conversaremos. O Senhor retorna comigo e quando se acalmar nós discutiremos a melhor maneira de conduzir o caso. Vamos.

-Vá irmão, me deixe um pouco a sós.

-Tenho contatos influentes. Vou cuidar pessoalmente do caso, não se preocupe.

Carvalho partiu sem insistir.

***

-Como têm passado padre Armani?

O diretor entrou na sacristia sem anunciar.

-Sr. Carvalho?! – Girou o pescoço com um misto de surpresa e cautela - Desculpe pelo meu comportamento da última sexta. Padre Ambrósio era uma figura carismática e nossa ordem tem enfrentado problemas com os fiéis. Você sabe... Muitas perguntas.

- Temos um problema delicado... Ainda mais em se tratando do suicídio de um padre.

-Como se saiu o padre Gustavo durante a execução?

-Um pouco nervoso, mas é compreensível.

- Sim, bem... Quero dizer, algo transpareceu?

-Não, apenas as perguntas de praxe.

-Dos males o menor... Situações delicadas exigem cautela em dobro, o senhor sabe... Fiéis são pessoas sensíveis, assim como o Ambrósio, e nem sempre dispõem dos meios necessários para lidar com a realidade em determinadas situações...Verdade e conforto são coisas distintas ... e distantes.

-Às vezes o senhor não me parece falar como um padre. – Carvalho pausou encarando Armani - Mas entendo o que quer dizer. Minha mãe é uma católica fervorosa.

-Fidelidade ao Senhor nos engrandece e fortalece Sr. Carvalho. A notícia da transferência do Ambrósio para a Europa está bem alicerçada?

-Fizemos o possível.

-Agora só nos resta pedir ao Senhor Bom Deus que ilumine o nosso caminho.

Carvalho se levantou e estendeu a mão.

-Até mais.

-O caso está encerrado e é de vital importância que o Sr. não retorne a igreja.

-Claro... Até mais.

-Não Sr. Carvalho... Adeus.

Com um gesto brusco, Armani cumprimentou o diretor e se dirigiu ao confessionário.

II

Não era o acúmulo de tarefas que preocupava Armani, nem as insistentes perguntas dos fiéis, mas como as semanas se arrastavam, pesando penosamente em sua rotina, transformando dias e noites em martírios de culpa e ansiedade e lá no fundo, no vazio, no mais silencioso dos silêncios, o clamor: padre, eu não matei.

Deitado no colchão de folhas em frente à jaqueira, Armani contemplava uma sombra móvel ferindo a luminosidade, como um intrusivo fragmento de recordação: movimentos bruscos obrigaram-no a desviar o olhar, porém antes que a imagem de uma corda cristalizasse em sua mente, olhos salientes e uma língua roxa invadiram uma recordação com a subtaneidade de uma descarga elétrica: “Não, não tive...”

-Irmão Armani?

-Não! Não fui eu!! Não tive...

-Como?

-Desculpe, estava pensando alto irmão Germiniano. - Suspirou fundo como se procurasse foco.

-Os fiéis estão te esperando no confessionário.

Por um momento achou estar conversando com Ambrósio: fechou os olhos, massageou a testa e respondeu com um olhar.

-Vou falar aos fiéis que o Sr. está indisposto.

-Obrigado irmão.

-Vem comigo?

-Sim.

-Quer cortar pelo pomar de macieiras ou vamos pelo lateral enlameada?

Armani não pensou duas vezes antes de optar pela lateral; sabia da necessidade de fugir das lembranças, mas por algum impulso desconhecido sempre retornava ao pomar, e agora, com a batina enlameada e memórias pressionando seu escudo de esquecimento, olha para cima e sente os primeiros pingos de chuva escorrer pelo rosto.

-Precisamos correr.

Um estrondo de trovão seguido de uma violenta tromba d’água desceu do céu como a soma das fúrias celestes, obrigando Germiniano a procurar abrigo na periferia do pomar de macieiras, enquanto o colega o seguia de cabeça baixa como uma sombra carente.

-O Sr. tem nos ouvido com sua benção líquida.

Armani, abrigado em uma macieira ao lado do colega, não respondeu.

***

Os pingos de chuva tocavam o solo como inchadas gotas de chumbo, sulcando-o com orifícios, curvas e sinuosidades excêntricas; Armani olhava para os sulcos como se tentasse decifrar um mapa metafísico, enquanto o vento castigava o pomar com mãos invisíveis: talos ressecados, intimidados por galhos nervosos, obrigavam macieiras raquíticas a desistirem de suas crias com a relutância de mães inconformadas.

O escudo de galhos e folhas amortecia a força da chuva, porém não era suficiente para mover Germiniano de sua introspecção beatífica, nem o companheiro do estado catatônico, concentrado que estava nas ondulações e sinuosidades do lamaçal: Armani ouviu o ruído úmido de duas maçãs em atrito com o solo pastoso e abaixo delas um sulco semi-ovóide, semelhante a uma boca, contorcia-se pela pressão da água como um verme em agonia; desviou os olhos num impulso involuntário, todavia antes de uma nova imagem tomar sua visão, a lembrança de Ambrósio na mesma macieira invadiu sua memória o obrigando, em um impulso de auto defesa, retornar a atenção ao lamaçal: olhares em brasa e uma boca suplicante o fulminaram com sinuosidades lamentosas: olhos sulfúricos, em maçãs enlameadas, o dominavam como uma implacável rede sensória, enquanto a boca em sulco se perdia em contorções bruscas como um vulcão nervoso.

-O que..o que v-você quer... Quem é vo-voc...

Armani encarava a face pastosa como uma abstração pictórica de lama e carne, porém antes de concluir a pergunta, erupções verbais de angústias lamentosas jorraram do sulco bucal como a soma de todas as dores:

“Padre eu não matei!”

- Nãããoo!

Olhares de fogo úmido encarando o medo em olhos de carne: água em gotas obesas sulcando uma boca com consistência de lama: lamentos escondidos em ventos, ventando injustiças em ouvidos abertos:

“Padre eu não matei!”

-Aaaahhh!

Os estrondos da vida líquida encobriam os gritos como uma manta anti-som.

“Padre eu...”

-Não, não tive culpa!

-Irmão, irmão... O que está acontecendo! Com quem está falando?!

-Não, não...

-Com quem está falando, quem, quem...quem!

Armani se vira para o colega:

-Com, com... Ninguém. – Abaixou a cabeça.

-Vamos embora.

Armani respondeu com um fincar de unhas no ombro do companheiro, e antes do primeiro passo sentiu os joelhos vacilarem no mesmo instante que os braços de Germiniano o ampararam do desmaio.

***

-Boa noite irmão Armani, está melhor?

O silêncio do confessionário retornou as palavras como um eco raquítico.

-Acho que sim.

-O que aconteceu no pomar?

-Acho que...Talvez...Não sei.

- Nosso Sr. bom Deus nunca, jamais nos abandona, mas precisamos fazer nossa parte. – Germiniano não alimentou o silêncio. – Talvez você precise de uma licença ou...um tratamento psicológico.

-Vá dormir irmão.

Germiniano esbarrou no tom do colega e retornou por outra via:

-Quase me esqueci, anteontem o irmão Sobera me pediu...

-Como? Você também?! Já não basta o falecido Ambrósio com suas ironias e agora o Sr...

-Não estou te entendendo irmão.

-Não?!– Armani encarou Germiniano. –Jamais tente me... – As palavras afogaram na saliva – Quando se dirigir a mim jamais use palavras como soberba. – Armani fulminou Germiniano com os olhos.

O silêncio do silêncio.

-O irmão está abalado e estafado, precisa de um afastamento por tempo indeterminado. – Germiniano prosseguiu com a cautela de um soldado em campo minado - Eu quis te dizer que o nosso irmão Sobera me pediu para lhe agradecer por tê-lo substituído na última segunda.

Armani abaixou a cabeça como uma incerteza estafada.

-Desculpe irmão. Acho que estou...

-O irmão está aturdido. Amanhã iremos...

-Não, venha... Preciso lhe mostrar algo. – A ansiedade mostrou a cartas.

Germiniano seguiu os passos apressados e entrou na sacristia.

-Então?

-Então o que?

-Alí, ao lado do vestuário.

Germiniano encarou a parede: o espanto congelou as palavras.

-Precisava mostrar a alguém.

-O-o que significa...Porque fez isso?

-Não fui eu.

-Não? Então quem foi? – Germiniano estacou.

Armani agarrava o crucifixo como se tentasse arrancar respostas de um objeto inanimado: na parede, na parte inferior do vestuário, o lamento escrito em letras vermelhas escorria pela parede como lágrimas petrificadas.

-Irmão, porque fez isso?!

-Já lhe falei que não fui eu. Aqui, veja!

Agarrou o colega e abriu a bíblia em Êxodo 20:2:17.

-Chegamos no limite irmão. – A face de Germiniano adquiriu rigidez de cera. – Providenciaremos água e sabão agora mesmo e apagaremos esse... vexame de nossa casa, e o Sr. ficará afastado até ...

A estupefação de Germiniano foi interrompida quando o colega direcionou seu olhar para a bíblia: na segunda metade da folha, uma mancha de rigidez crespa borrava o quinto mandamento como uma massa de sangue coagulado e em seu centro, duas órbitas salientes e uma boca em alto relevo pareciam transmitir clamores petrificados: emudecidos que estavam na prisão silenciosa do coágulo.

-Herege, herege! Você passou dos limites. Chega de constrangimentos!

-Não tive culpa! Não, não fui eu!

-Como ousa! Acha que somos cegos? Até os fiéis notaram.

-Não fui eu! Não...

Germiniano suspendeu a manga da batina agarrando-o pelo braço.

-Isso!

Armani emudeceu quando uma série de coágulos e lacerações no antebraço direito reavivou sua memória: olhos surpresos e uma mente em espiral explodiram em atordoamento e paranóia associativa: a vertigem da vertigem.

-Não fui eu! Alguém... Algo...

O silêncio expirou seu vapor gélido e congelou o tempo por segundos a fio.

Germiniano olhou para o companheiro, suspirou fundo e antes de abandonar a sacristia apontou para o segundo e oitavo mandamentos e falou:

-Reflita e descanse um pouco, amanhã pela manhã limparemos a parede e conversaremos.

Foi a última coisa que ouviu, antes da batina de Germiniano dissolver na escuridão do corredor.

***

“... visitei o condenado... jura inocência ... o irmão Ambrósio fraqueja...porque não entende..., padre eu não..., ...não ...tive culpa... tive... matei... culpa... padre... padre eu...

-...não matei! Irmão...não tive...

Armani despertou de sonhos vermelho-carmim, sentou-se na cama massageando as têmporas como se procurasse foco. O farfalhar da cama de campanha lhe lembrou onde estava e das palavras de Germiniano antes de abandonar a sacristia; sabia que precisava de descanso, talvez um afastamento; sentiu-se confuso e vazio, precisava da palavra. Tateou abaixo do travesseiro à procura da bíblia, tocou o interruptor, porém antes da luminosidade pastel clamar território, se viu afogado pela existência escarlate pulsando na parede como um agonizante coração em súplica: olhou para os lados em busca de proteção, à procura de brancura e conforto, mas o lamento contaminou sua visão como pinceladas rubras em um canvas branco:

“Padre...”

Letras pulsantes de vermelho brilhante, perfurando lembranças com ângulos cortantes.

“...eu...”

Egos sem culpa de inocência sem manchas, ardendo em chamas por culpados sem nome.

“...não...”

Negativas sombrias de lamentos nervosos, enegrecendo questões com certezas em negro.

“...matei!”: Armani fechou os olhos em auto-defesa, mas antes da escuridão descortinar por completo sentiu um peso quente umidificar o seu corpo, abriu os olhos em agonia e se viu cercado pelas letras, cores e sons do lamento exclamatório, inundado pela realidade escarlate revestindo-o como uma manta parasitária de sangue, e lamento.

Rubros, carmins, escarlates: vermelhos ribombavam nos ouvidos como badalos monótonos: Armani fugia da cor dentro da cor, do som no som: mãos, faces, cordas, pescoços, paredes, inchaços e vozes, fundidos numa única abstração de monotonia monocromática, um previsível círculo sonoro de convulsões lamentosas: padre eu não...

-Nãããããoooo!

Armani negou o lamento com o próprio lamento, mas a insuficiência sonora ecoou como um alerta de auto defesa: tampou os ouvidos, suspendeu o pescoço e com olhos turvos vislumbrou uma brancura opaca emanando do corredor como um túnel vaporoso: se era uma emanação branca manchada de negro ou um negrume dissolvendo para o branco não sabia, todavia a idéia de distanciamento da existência monocromática reavivou-o, impulsionando-o ao objetivo: aproximou-se do corredor com passos medidos agarrado ao crucifixo; girou a cabeça e notou que o negrume manchando o vapor, nada mais era que sua sombra estendida no corredor, e por algum motivo que não soube explicar, olhou para a emanação branca como se contemplasse uma indefinição cristalizada em esperança.

***

Armani cambaleou como uma escuridão à procura de luz, aproximou-se da porta e antes de atravessar o umbral, sentiu um abrandar das pulsações que foi reforçado pelo seu sentido de visão: de um antes caos convulsivo de vermelhos gritantes e estridências caóticas, agora a chaga escarlate o afetava como a pressão de uma pluma opaca, protegido que estava pela indefinição vaporosa que o cercava como um escudo de fé .

Olhou para baixo e notou sua pele adquirir a antiga coloração, e sua audição, antes um confuso labirinto sonoro, agora abarcava a quietude do corredor como um silencioso e discreto devorador de pecados. Suspendeu o pescoço: andou, suspirou, parou, rezou ... Vislumbrou um feixe prata cortando o soalho na curva para o confessionário e quando tentou prosseguir, sentiu uma solidificação o pressionar como uma força contrária, imobilizando-o na emanação vaporosa que agora o oprimia como uma tentação reprimida; sentiu sua coluna gelar e o escudo de defesa ruir quando a essência da emanação se fez presente, revelando-lhe a Realidade da Realidade: uma sutil artimanha em vapor, uma armadilha em branco escondendo um objetivo em negro, dominando-o, arrastando-o para a luminosidade do confessionário como se manipulasse uma isca no anzol. Armani olhou para frente, mas a intensidade da luz retraiu sua visão para o conforto escuro das pálpebras; ouviu um ruído indistinto que ganhou solidez à medida que se aproximava do confessionário, a solidificação sonora pulsava em seus tímpanos como um estridente badalar infernal, tentou se proteger com as mãos, porém quando a força contrária fincou as garras em sua vontade, um estrondo sonoro explodiu em seus tímpanos com a força das fúrias celestes: padre, eu não matei! Padre...

-Aahhhhhh!

Armani sabia que lutava, e sabendo que tentava...lutou: fincou as unhas no soalho jogando o corpo para o lado, todavia o esforço lhe retornou como um enfraquecimento muscular seguido de uma intensa pressão contrária que o arremessou para o centro do confessionário, ao âmago do mysterium tremendum: abriu os olhos e à sua frente, queimando a luminosidade como uma lava convulsiva, uma ciclópica forma oval contorcia-se, aproximando com a leveza de um balão a gás, e em seu centro, abaixo de duas cavidades em brasa encarando-o com olhares de abismo, uma fenda escarlate reforçou seu lamento com outro lamento: padre eu não pequei!! Padre...

-Não! Não!

Gritos de agonia derretiam no calor, parindo suores repentinos como erupções de fungos cutâneos; enrijeceu os músculos em uma tentativa de escape, mas a mesma névoa que impedia os movimentos agora congelava sua visão na face de lava.

Padre eu não...

-Não! Nããooo!

Padre, eu não pequeiiii!

-Meu D...

O grito queimou na garganta no mesmo instante que o lamento penetrou nas narinas como uma imensa língua de calor: labaredas intensas cobriram o seu corpo como um parasita de fogo, enquanto fios de calor escapavam dos poros como raios solares emanando de um sol de carne em agonia; Armani, paralisado, não reagiu, e com o último suspiro, em meio ao inferno de caos, culpa e calor, escutou: padre... eu não matei.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 14/05/2011
Código do texto: T2969230
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