OS DEVANEIOS DE PAMELA

Não havia qualquer certeza na vida de Pamela, mas dentre todas as inquietações que afligiam sua alma juvenil, a de que ela não era uma menina comum se destacava como nenhuma outra. Com pouco mais de duas décadas de vida, ela já achava que não haveria acontecimento algum que fosse capaz de surpreendê-la, não importando a forma. Trancada numa cela por ela delineada, esperava que seus devaneios pudessem levá-la a um lugar distante, onde conseguisse encontrar a si mesma dentro da realidade que a cercava.

Mas, até mesmo as mentes mais sonhadoras podem e, inevitavelmente, são nubladas por instantes de instabilidade. Como resultado, as mãos insistem em não dar vazão ao que o cérebro deseja vislumbrar. E, quando isso ocorre, os castelos desabam como se suas torres fossem feitas de poeira, ao passo que o mesmo vento que os derruba se mostra incapaz de mover as róseas nuvens por um centímetro que seja. O coração de Pamela sangra. Seu desejo é de que o rubi sobre as pétalas das rosas compartilhe desta mesma dor, um jardim a derramar o líquido da vida sobre a grama outrora verde. Um tapete escarnado a enlaçar os pés descalços, seus pés, que correm livres pois não sentem mais o frio do orvalho, pelo contrário, dançam sobre o calor das poças vivas. As pétreas nuvens convertem-se em chuva, rubras lágrimas sobre seu corpo. Ela as recebe de bom grado. O sangue lava a pele, umedece os lábios e escorre pela garganta ressequida. Pela primeira vez em sua vida, Pamela encontra razão para viver...

O despertador dispara, assim como seu coração. Ela confere o próprio rosto, mas o líquido que encharca sua pele é salgado e frio, algo bem diferente do que seus delírios mais íntimos poderiam supor. O chamado da realidade é triste e inevitável.

Enquanto caminha rumo às obrigações mundanas, Pamela mal percebe o ir e vir ao seu redor. Para ela, a vastidão verdejante que a cerca nada proporciona além de uma amálgama cinzenta e insípida. As pessoas nada podem lhe oferecer, pelo menos não do jeito que gostaria. Seu corpo anseia pela libertação da voracidade latente que lhe incendeia a alma, e o problema em nutrir tão ardentemente um determinado desejo é que, às vezes, pode aparecer alguém que esteja disposto a atendê-lo.

No início, Pamela achou que fosse mais um dos seus sonhos enquanto acordada. A cidade estava enfeitada por flores e morangos, mas o aroma de setembro trazia muito mais, havia no ar uma leve percepção acre, um odor discreto, mas suficientemente presente para fazer com que os devaneios oníricos da menina aflorassem para além de sua estrutura corpórea.

Parada no meio do Parque das Águas, Pamela perscrutou por entre eucaliptos e viveiros de plantas. Porém, ela sabia que o aspecto irrepreensível do astro rei intimidaria a presença marcante que tanto ansiava encontrar. Inconformada, ela correu, como se o movimento de suas pernas pudesse acelerar a rotação do planeta e, consequentemente, fosse capaz de trazer, com a noite, o alento necessário para tamanha aflição.

No entanto, Pamela era mortal. E, como tal, estava sujeita às limitações inerentes à fragilidade de sua existência. Ela não era capaz de realizar feitos improváveis, embora fosse inegavelmente diferente de todas as pessoas que conhecia. Resignada, ela deixou que seu corpo encontrasse o conforto da relva, enquanto os olhos lacrimejados buscavam os contornos inconfundíveis dos visitantes que subiam e desciam no teleférico sobre o lago. Ela se perguntava quando teria a oportunidade de mergulhar em seu próprio destino, não numa viagem ordinária, mas sim em verdadeiras peregrinações, onde, do local visitado, não colheria alegria ou estupefação, traria consigo algo muito mais valioso: o combustível necessário para atravessar as eras.

Como uma Banshee enclausurada, Pamela queria gritar. Mas sua voz ecoaria num vazio existencial, como nos limites de uma galáxia distante, uma inalcançável Andhromeda. Ela estava ali, sozinha, mesmo cercada por muitos. E, lentamente, os muitos se tornaram poucos, e, os poucos diluíram-se em nada. Ninguém.

Pamela estava sozinha. Embora pudesse jurar ter ouvido um apito da maria-fumaça, ela sabia que estava distante demais da ferrovia histórica, não era possível que qualquer ruído pudesse chegar-lhe aos ouvidos. Mas o silvo estava lá, mesmo com os pássaros já recolhidos a seus ninhos. A menina ergueu o tronco, já não havia qualquer claridade no parque, mesmo os postes se negavam a emprestar suas luzes artificiais.

Silêncio. Apenas o palpitar em seu peito quebrava a morosidade do momento. Um novo silvo, mais próximo a um sibilar reptiliano. Pamela não estava mais só, e sabia disso. De pé, de braços abertos, ela esperava pela chegada do visitante. A acidez em suas narinas lhe dizia que ele estava perto. Uma voz arrastada chamava seu nome. “Fale-me dos seus sonhos, Pamela. Conte para mim o que você quer.”

À distância, a voz se insinuava, como se já soubesse de cada anseio, até o mais reservado. Posta de joelhos, entre lágrimas e soluços, a menina respondeu: “Deixe-me provar do néctar da vida. Tire-me daqui. Faça-me igual a você, por favor!”

Uma lufada de vento trouxe um repentino ardor, gotas rubras tocaram a relva, um risco disforme maculava a carne de um dos braços da garota.

“Prove!”

Instintivamente, a menina levou o ferimento à boca, sorvendo com sofreguidão o líquido precioso. Filetes vivos escorriam pelo delicado queixo. O gosto passava longe da doçura idealizada, mas ela não teve tempo para apreciar as particularidades de sua própria essência. Num piscar de olhos, Pamela foi tomada por um impacto causado por uma força sem precedentes. Em instantes, era movida de maneira tão rápida que o cenário ao redor circulava como uma sucessão de imagens desconexas, o mundo não passava de um borrão zombando da realidade.

“Tiro-te daqui!”

Pamela estava zonza, já não sentia a terra sob os pés. Ela estava no próprio quarto, de onde queria fugir, mas, ao mesmo tempo, do local que conseguia vislumbrar a vida conforme idealizava. Não havia ninguém com ela e, por alguns instantes, questionou-se se tudo não passava de mais um devaneio. No entanto, o aroma peculiar corroborava para que os fatos estivessem a seu favor.

“Sei que você está aqui. Sei que você é real. Faça-me igual a vo...”

Uma mão pesada sufocou-lhe as palavras. Braços retorcidos apertaram, ao mesmo tempo, pescoço e ventre. Não havia delicadeza naqueles movimentos. Os olhos de Pamela injetaram-se de horror.

Como garras de aves mortas, as unhas do visitante ameaçaram cair inertes, porém, como num pesadelo recorrente, sem prévio aviso, revigoraram-se num fulgor tétrico enquanto seguiam ao encontro da boca chorosa da menina, apertando-a com furor. A carne lisa dos lábios e língua é arrancada pela mão ensangüentada, ao passo que a face de Pamela esperneia num sorriso permanente. Não havia poesia naqueles traços, não havia vestígio de glamour naquela silhueta. Absolutamente, não era com aquilo que ela havia sonhado.

O visitante enterrou um par de linhas alvas e aguçadas na maciez tenra do pescoço da garota, enquanto ela se debatia em franco desespero. Não havia espaço para arrependimentos. A língua áspera roubava o viço da menina com chicotadas ágeis no líquido viscoso. Presa e entregue, Pamela sufocava e esperava com ansiedade pela morte que não vinha. O vazio que tanto a incomodava era preenchido pela dor, a mesma dor que a lembrava que ainda estava viva.

“Eu...não...não quero isso...para...para..mim...”

Ela balbuciava da melhor maneira que podia, sibilando como uma serpente por entre os dentes expostos, implorando pelo abraço definitivo da morte. No entanto, ela não se lembrava de que vez ou outra alguns apelos são ouvidos e um ou outro desejo é atendido...

Com a cabeça pendendo para o lado, por conta do pescoço dilacerado, ela sentiu o toque gelado do sangue negro escorrendo por onde antes ficavam seus lábios. Ela tentou regurgitar, mas a licor da morte já comprometia de modo irreversível todo o seu paladar.

“Morra e seja igual a mim, para que eu possa matá-la de novo, e fazê-la igual a mim mais uma vez. Então a mato novamente e a trago uma vez mais e a...”

Pamela, ao ser tocada por seu desejo mais íntimo, percebeu que alguns devaneios deveriam ficar restritos a leitos de insanidade, somente. Pois a realidade, assim como a percepção de imortalidade, pode ser muito mais nociva do que a imaginação é capaz de supor.

*Para você, Vampirinha.

Flávio de Souza
Enviado por Flávio de Souza em 27/06/2011
Reeditado em 27/06/2011
Código do texto: T3060407
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