Orgasmicídio

Minha vida sempre foi cheia de insopitáveis sensações.

Mas, e qual não é?

Talvez as minhas fossem mais singulares, então. Tudo bem, eu teria que conhecer, literalmente, todo o mundo para que a afirmação fosse coerente.

Mas, e daí?

Vamos fazer assim: aquilo que conheci da vida, até hoje, sustenta minha asserção, tudo bem?

Garanto, pois, as poucas chances de entorpecer-me o espírito, e deste modo brilhar-me os mais insólitos desejos, as bastas prateleiras que residiam no corredor da casa onde meus pais, ainda hoje, moram.

Pelo que fartas?

Livros! A pulular! A se espremerem por um cantinho nas estantes! E, lógico, ao aviso peremptório, dos meus progenitores, para que eu usasse destes conjuntos de folhas de papel, escritas ou impressas, soltas ou cosidas, em brochura ou encadernadas!

Lugar comum que o discurso pouco pode contra a postura. Sempre em luta com esse vicio excessivamente humano, meus pais punham-se a ler. Tanto, que chego a lembrar duma personagem de um conto do bruxo do Cosme Velho , que lia antes de ler e lia depois de ler.

Assim as peculiares sensações, que me recheavam a alma, alimentavam suas fantasias nada exorcizáveis, naturais, até, à vida que costuma dar-nos medo.

A primeira (e relevante à este relato, necessário frisar) reminiscência que me chega, resoluta, impassível, desta época de iniciação e descoberta, daquilo que podia, que podemos todos, é o balançar de quadris daquela que fulgurou insuperável nas minhas elucubrações durante anos.

Com provocações pequenas, mas indeléveis, Imaculada descia a Rua Dois, serpenteando como a mais lasciva das criaturas.

Infere você, a ler-me, que este adjetivo é fruto das emoções que eu desperdiçava ao perder tempo com esta prenda. Bovary , a madame, passeava, à época, em minhas sugestões, e eu ia a ver todas as gurias como minhas potenciais Emmas.

Mas faltava-me a coragem daqueles que estão aqui para qualquer viagem. A literatura folgou em falhar-me esta virtude, ao menos se descontextualizarmos esta como a firme e constante disposição do espírito em nos induzir a prática do bem e a combater o mal.

Mas, eu queria o mal! Aquele que os puritanos reprovavam, e as carolas enrubescem apenas com sua menção!

Pois, dito isso, fiquem sabendo que corria sempre, tresloucado, de volta à minha casa, assim que Imaculada chegava perturbadoramente perto. Da janela, uma nesga de fresta fazia-me o favor de esconder o escrutínio rigoroso que, diligentemente, eu calculava em suas formas!

E Imaculada passou, literalmente. E na metáfora chegou a doer. Rasguei couros com dentes pueris, beijei rosas, e me machuquei. Mas não durou muito. A ausência causa costumes inconseqüentes, curiosamente.

Deveria? Depende. É relativo, claro. Se esta senhora lhe foi cruciante, sem ressalvas, sim, causa.

Estava na livraria em que me faço cliente há muito, e ela barafusta, esguia, carnes rijas, sobrancelhas em arcos diamantinos, com um volume a balouçar nervosamente em uma das firmes mãos. Impossível sopitar os sentimentos que me assaltaram com a contundência dos açoites intolerantes aos enamorados de fraca memória.

Intumescidos, os lábios rutilavam lubricamente, enquanto uma série de verbos emprestava dulcíssimas sentenças ao livreiro.

Ah, Imaculada!

O póstumo cheiro da memória ergue-se do seu tumulo, reivindicando-me toda a luxúria omitida nestes anos de separação! E as práticas habituais, levantadas no começo do parágrafo, resultado da sua carência, Imaculada, enganaram-me diligentemente.

Penso, e danço.

Não muito o primeiro, mais o segundo. Muito mais. E ela desabrocha o mais cândido dos sorrisos, na volumosa boca, dona de possível maciez devastadora.

Colocamos a conversa em dia. O afastamento fortuito revela-nos decisões corriqueiras, e tanto mais graves, como obriga os costumes. Vamos por onde nos interessa a conversa e chegamos às nostalgias prazerosas.

Eu, dela. Ela, de tudo que podia exibir àquela época.

Façamos assim: saiba que, depois de tudo, juntamo-nos os detalhes e pusemos mais coisas em dia. Para mim, refestelei-me na pujança das suas carnes, já não era sem tempo! Para ela, fico com a incógnita dos motivos.

Em cima, os espasmos, as impudicícias, enchiam-me as retinas de vislumbres. Quando eu por cima, as mesmas respostas, mas desta vez recrescidas por gemidos, acredito, que respondiam à pressão que colocava, alegre, sobre seu ventre.

Naquele quarto, eles estavam jogados, atulhados, amontoados, enfileirados, ao nosso lado, expectadores ávidos, escondidos, encabulados. De todos os jeitos, e com todos os seus trejeitos de tomos.

O paraíso pedia licença e encostava-se à beirada da cama que batia sôfrega, na parede, num ritmo cadenciado e denunciador.

Ao abri-los, enxergo nádegas poderosas. Meus olhos sorriem canalhamente, e minha boca lhes faz companhia na empresa. Congelo aquela imagem nos abismos inapagáveis da memória, e relaxo o corpo esparramado, ventralmente, sob os amarrotados lençóis.

Sinto a ereção pulsando nas suas características apresentações e me viro, emprestando, e mostrando, o dulcíssimo desejo à pintura impecável que se apresenta.

Imaculada mostra-me os alvos dentes, escorregando os lábios para os cantos, com aquelas covinhas inflacionando minhas intenções. Enquanto avança, vejo que algo destoa das minhas ilações. Não há lubricidade em seu sorriso. A libertinagem de poucas horas antes se foi. Naquele brilho labial, há somente o fervor de um estômago que reclama.

Imaculada, o que lhe aflige?

Das gengivas à mostra, respondem-me dentes cavalares que não estavam presentes. A saliva ressuma e os olhos espremem-se em alegria furibunda. Por um instante sou pego pelos volumes literários da estante de outrora, e dou com as ventas num tomo que versa, como iguaria, a respeito da quimera que me faz companhia.

A criatura refestelou-se em minhas ternas carnes, abrindo caminho até a alma que imiscuía-se zombeteira em seus recantos. Sou um trapo. Estou um, e não sei possibilidade de outro estado agora.

No corredor, Imaculada vislumbra os títulos dispostos verticalmente, um ao lado do outro, procurando não faço idéia. A livraria começa a cheirar. Agradável e ignorado.

Ela entra e meu nariz se contrai.

Olho para Imaculada e, de soslaio, me responde com cínico sorrisinho. Deixo estar. Avanço e me apresento.

- Oi.

- Oi.

- Posso ajuda-la?

- Você trabalha aqui?

- Não, mas conheço muita coisa sobre livros.

- Então, acho que sim, não é mesmo?

Ela solta uma bela risada, contida, mas bela.

E entendo.

Meu estômago dói.

Acho que vou adiante.