Salmos, fobias e um punhado de Zumbis. (prévia)

“Os microrganismos têm sido protagonistas centrais e narradores do nosso processo histórico. Por meio do DNA deles, se pode saber quando e como as epidemias atuais se iniciaram e de que forma elas condicionaram a existência humana, dizimando populações, estimulando conflitos, infectando combatentes, promovendo êxodos, propiciando miscigenação, fortalecendo ou enfraquecendo povos.”

Stefan Ujvari (Infectologista)

Domingo, 18 de Abril.

Tarde - Rio de Janeiro

O dia estava nublado e o clima um pouco mais ameno, mas isso não tinha qualquer importância para os dois. Afinal, o alojamento do zelador continuava escuro e abafado, quer fosse dia, quer fosse noite. As horas eram todas iguais e intermináveis. O ponteiro do relógio brincava de maneira lenta em suas voltas, como se estivesse cansado de tanto girar. O tempo caçoava com resquícios de crueldade.

Para piorar a situação, as batidas na porta eram cada vez mais fortes e intensas. O baque, seco e contínuo, irritava até mesmo as moradoras mais antigas; as formigas. O som enfadonho agia da mesma maneira que uma obra estrutural, na casa do vizinho, em um domingo de manhã – insuportável.

O jovem médico passava boa parte do dia, deitado na cama precária ou sentado na cadeira desconfortável. Ele sentia que seus músculos já haviam iniciado o processo de atrofiamento. A pele estava branca e as enxaquecas eram recorrentes. A ausência de calorias fazia com que seu corpo queimasse toda a sua massa magra. Estava literalmente definhando. Definitivamente, não era possível viver a base de bolachas e água.

Charles sofria dos mesmos males, mas, sem explicação aparente, parecia suportar a condição com menos dificuldade. Como se não fosse a primeira vez que passasse por isso. Essa inexplicável resistência parecia guardar uma relação com sua dignidade. Um sentimento elevado ao ultimo patamar, especialmente, quando alguém se dava conta de que o fim estava próximo.

A garrafa de uísque secara há dois dias, com isso o tédio monumental assumira papel de controle naquele ambiente restrito e inóspito. Gabriel já havia escutado dezenas de estórias, contadas pelo velho Charles. No começo até fora divertido. A prosa ajudava a passar o tempo. Porém, com as dores de cabeça insuportáveis, os relatos, ricamente detalhados, soavam como gongos gigantes em seu cérebro abalado.

No entanto, ainda assim, ele tentava manter o humor. Afinal, aquele velho zelador havia salvado sua vida. Gabriel sabia que provavelmente nunca iria poder pagar essa dívida, portanto, escutar as palavras de um senhor entusiasmado não era um preço muito alto a se pagar.

O único contato que tinham com o mundo exterior, era através de um radinho de pilha ultrapassado, que na maior parte do tempo permanecia sintonizado em uma rádio pirata, que por sua vez só tocava músicas antigas. A seleção ia desde Louis Prima até Stevie Wonder, o som era até bastante agradável, dada todas as circunstâncias. Porém, como a vida não era uma sinfonia, em alguns momentos a frustração se abatia. As notas viravam pregos.

Certa hora, Gabriel concluíra que a rádio deveria possuir um sistema automático, que escolhia as canções de maneira aleatória em um imenso banco de dados. O canal não possuía locutores, intervalos, tampouco comerciais. Era uma rádio artificial ou, come ele preferia pensar, uma rádio morta.

Porém, em uma das inúmeras tentativas de encontrar um outro sinal, no vai e vem manual da sintonia, eles conseguiram captar um comunicado, que parecia ser oficial. O locutor da mensagem usava um tom polido, mas alarmante. A qualidade sofrível da recepção e a estática não diminuíam em nada a força do pronunciamento, mas, em alguns momentos, tornavam o incompreensível. O comunicado, que mais parecia um conjunto de ordens, não era nem um pouco esclarecedor e, no entender do jovem médico, criava ainda mais pânico. Como um sujeito que anuncia uma bomba e pede para que todos se mantenham calmos. Ou, mais ou menos isso.

A voz grave e silábica dizia;

- Caros Cidadãos, esse é um comunicado conjunto do Ministério da defesa, do Ministério da Saúde e do (estática). Inicialmente, informamos que o novo presidente em exercício declarou, na tarde do dia 16, Estado de Sítio. Sendo assim, reiteramos o pedido para que todos permaneçam em suas casas. Não procurem em hipótese alguma hospitais, aeroportos, terminais de ônibus, escolas, quartéis ou qualquer outro local onde possam ocorrer aglomerações. As equipes nacionais de segurança estão autorizadas a usar a força para manter a ordem e a paz. Inclusive, recolhendo e encaminhando para a quarentena, as pessoas que estiverem circulando em vias públicas. Não serão toleradas (estática), bem como, (estática) podendo ser punidos com a pena de morte.

Segundo alguns estudos preliminares o surto dessa nova doença tem causas naturais. A princípio, trata-se de uma mutação do vírus (estática). Essa enfermidade foi elevada ao nível de pandemia global. Nesse sentido, o Governo repudia qualquer tentativa de imputação de responsabilidade sobre esse episódio inesperado, informando que o fato ocorrido no mês passado, conhecido como (estática), não tem qualquer relação com a (estática).

Estamos vivendo um período critico na história mundial, mas com perseverança, paciência, trabalho e fé, temos certeza que reconstruiremos a ordem social. Acreditemos no futuro e que deus nos proteja.

Logo depois de encerrada a declaração do Estado, Charles perguntara com a voz seca e sem força, demonstrando toda a sua fragilidade:

- Ei Doc. O que você acha disso?

- Não sei. Tudo está muito confuso.

- Você acha que o governo está por trás disso?

- Difícil acreditar que não – Gabriel respondeu, tentando digerir todas as informações.

- Então você não acha que pode ter sido obra de Deus, como as pragas do Egito ou o próprio Apocalipse?

- Como médico tendo a crer que o causador disso tudo seja um vírus, uma bactéria potente ou um parasita estranho. Como ser humano, sinceramente, não sei no que acreditar.

- Acho que entendo o que você quis dizer Doc – Charles concordou, coçando o queixo ossudo, marcado pelo tempo.

- Veja Charles, para mim todas as pragas do Egito possuem uma explicação científica. Por exemplo, as águas de sangue seriam causadas pela maré vermelha . A praga das rãs aconteceria por meio das rãs arborícolas, uma espécie de anfíbio que vive sobre as árvores, dando a impressão de que elas cairiam do céu. Os primogênitos teriam morrido envenenados por ergot, ou de ergotismo , um fungo que contamina o centeio e outros cereais. E por ai vai, com a peste em animais, gafanhotos, tumores, etc. – Gabriel parou de falar, ficou pensativo por alguns segundos e continuou – Mas o interessante é que isso não invalida nada, pois se Deus criou todas as coisas, de certo modo ele esteve envolvido nisso tudo. Ou seja, a pergunta não é como? Mas sim, qual o motivo?

- Às vezes, acho realmente que ele não sabe o que faz, Doc.

- Há quem discorde meu amigo. Existem pessoas que acreditam que ele sempre teve e sempre terá um plano.

- Que espécie de plano?

- Você sabia que desde a antiguidade, cada século teve sua patogenia?

- Por favor, Doc. Eu sou um velho burro, não use palavras difíceis.

- Não diga isso. Fui eu que não soube me expressar. Quis dizer que cada período teve sua doença e com ela milhares de vitimas. No século XII, por exemplo, a varíola na Europa alcançou índices de contágio elevadíssimos, propiciados pelas cidades muradas. No século XIII a lepra, muito mais virulenta do que a que conhecemos hoje, surgiu de maneira arrasadora, infectando grande parte da Europa e obrigando os portadores a permanecerem segregados da população em geral.

- A lepra é uma doença terrível mesmo, Doc.

- Tão terrível quanto à lepra, foi a peste negra ou bubônica que assolou a humanidade durante o século XIV e dizimou quase 75 milhões de pessoas, principalmente no velho continente. Um terço da população a época. Logo no inicio do Renascimento, no século XV, a sífilis surgiu de maneira avassaladora, conhecida como “a grande pústula”, ela matava indiscriminadamente homens e mulheres. A ausência de esgotos, aliada a guerras e a higiene precária da idade média, fez reinar uma doença que comia as paredes dos intestinos, provocando dores abdominais e violentas cólicas, diarréia contendo sangue, septicemia e morte. A disenteria foi o mal do século XVI. Quem dominou o século seguinte foi a tuberculose, que se propagou na pobreza das grandes cidades e na carência de uma alimentação saudável. Cem anos depois foi a vez de o tifo aniquilar tropas inteiras, dentre elas grande parte do poderoso contingente de Napoleão Bonaparte. A partir de 1800 a cólera assumiu a função de doença devastadora e vitimou pessoas de todas as partes do mundo – Gabriel parou de falar, bebeu um gole de água, colhida da pia, e continuou – No último século Charles, o vírus HIV, matou por volta de 30 milhões de pessoas, especialmente na África. Um pouco mais de três vezes o número de mortos na primeira guerra mundial. Isso sem contar com o Ebola, a febre de Lassa, a doença de Lyme, e muitas outras. Entende o que quero dizer, Charles?

- Mais ou menos, Doc.

- O que eu quero dizer é que existem teorias, que acreditam que Deus tem seu próprio controle populacional e que de tempos em tempos ele põe em prática.

- Mas pelo que nós vimos e escutamos, se isso for verdade, dessa vez ele exagerou.

- Ou estava com muita raiva – o jovem médico falou, cerrando os olhos e tomando outro gole da água não filtrada.

Com raiva ou sem raiva, o fato é que a nova doença do Séc. XXI seria a mais terrível de todos os tempos e, provavelmente, a última. Contrariando até as projeções mais pessimistas dos especialistas, 99% da população mundial estaria morta em menos de um mês, mais da metade dessa proporção de mortos continuaria andando. O resto desejaria não estar vivo.

RSollberg
Enviado por RSollberg em 20/12/2011
Código do texto: T3398927
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