Barba Azul

Escritório do centro psiquiátrico Renascer / Nove da manhã

Aquela era apenas mais uma sessão com o familiarizado rosto do doutor Frederico. Seu escritório estava mais escuro do que o habitual. Foi a primeira coisa que o chamado louco notou assim que entrou pela porta. O doutor Frederico voltou-se para o homem abatido que entrava em seu escritório. Aquela era a vigésima segunda sessão que tinha com o homem e não vira, infelizmente, nenhum avanço no problema psicológico do paciente.

— Bom dia, Juan — cumprimentou o doutor, seco.

Juan aproximou-se do divã e parou, observando.

O doutor não perdia nenhum detalhe. Cada mudança de comportamento dos seus pacientes era tratado com a mais rigorosa importância. E ele podia sentir que seu paciente estava próximo a uma epifania. Só tinha que tocar o ponto certo.

Juan acomodou-se no divã e cruzou as mãos sobre o peito. Olhava para o teto escuro do escritório. Frio, escuro, como tudo em sua mente perturbada.

— Por que as luzes estão apagadas? – indagou.

O doutor pestanejou fingindo surpresa. Levantou-se e fora acender as luzes.

— Não precisa — falou Juan —Apenas perguntei.

O doutor voltou e sentou-se em sua cadeira com um suspiro. Revirou os papéis em sua mesa — a maioria rabiscos — e encontrou seu bloco de anotações. Puxou a esferográfica do bolso do paletó e encarou o homem deitado.

— Então... — pigarreou — Pensou no que eu lhe disse da última vez que nos falamos?

— Sabe o que é insano em um hospital de loucos, doutor? São os outros que se julgam normais perguntarem se você pensa no que fez no que somos ou no que desejamos fazer quando sairmos daqui. Diga-me, o que temos pra fazer aqui que não seja pensar?

— Bem, é isso que espero de você. Está aqui justamente para isso. Refletir em sua vida até hoje. No que passou e como seguirá daqui pra frente.

O doutor rabiscou algo em seu bloco. E pela vigésima segunda vez, perguntou:

— Juan...

— Oi, doutor.

— Por que a matou?

Juan moveu-se no divã. Molhou os lábios e respondeu:

— Eu não a matei.

— Achei que estivéssemos avançado este ponto, Juan. Lembra? Do que me disse em nossa última consulta?

O paciente remexeu-se na poltrona e tapou os olhos com a mão como se sofresse de uma horrível dor de cabeça.

— Não me lembro... Tenho tido problemas para me lembrar de coisas insignificantes depois do que...

O doutor inclinou-se, ouvidos aguçados.

— Depois de que, Juan? Vamos, conte para mim. Sabe que pode confiar em mim.

Juan deu um longo suspiro.

— Fora tudo culpa dela, doutor. Você entende, não é? Ela não devia xeretar onde não devia...

“Lá vamos nós” — pensou o doutor. Ouvira a mesma história em todas as sessões passadas. Isso demonstrava que seu paciente não melhorara em nada. Talvez devesse recomendar remédios mais fortes. Ou então, dá o caso por encerrado e ordenar que internassem o paciente como o doente mental e psicótico que aparentava. Seus colegas de profissão o chamavam de assassino, psicopata. Um maníaco que deveria está atrás das grades. Contudo, para Frederico não havia nome mais adequado para chamar seu paciente que não fosse Barba Azul.

— Eu deixei claro, doutor. Que aquele era meu local de trabalho. Que as crianças e nem ela tinham permissão para entrarem — prosseguiu Juan.

— O porão — disse o doutor meio perguntando e meio respondendo.

— Eu escondia a chave — continuou Juan, olhando para o teto — Tinha duas. Uma, mantinha sempre comigo em volta do meu pescoço.

Passou a mão pelo pescoço como se procurasse pela chave, mas esta não estava lá. Ele sabia e o doutor também. Fora levada. Confiscada pelos policiais que fizeram a perícia no porão da casa.

— E a outra ficava guardada em uma velha caixa de madeira dentro de um baú na garagem. Não seria encontrada ao menos que alguém quisesse encontrá-la.

— Por que mantinha o porão trancado, Juan? — indagou o doutor muito cuidadosamente — O que fazia que fosse tão importante para ter que esconder de sua esposa e filhos?

Juan não respondeu. Limitou-se a ficar em silêncio e contemplar o teto do escritório. O que a ficha dizia era mais do que o doutor Frederico podia acreditar. Havia provas, fotos, mas ele precisava ouvir a história da fonte. Precisava descobrir de onde viera aquela história macabra e o que a causou. E somente uma pessoa poderia satisfazer esse desejo. No entanto, seu paciente se recusava a revelar os detalhes. Fantasiava, manipulava para talvez mudar o que acontecera. O que era tarde... Três mulheres mortas.

— Ele me disse, doutor. Ele me garantiu que fazendo isso ela ficaria bem.

— Ele quem, Juan? — perguntou severamente o doutor.

— O velho. Não finja que não sabe.

Juan começava a se irritar. Era naquele ponto que sua mente bloqueava. Recusava-se a aceitar a verdade e então fantasiava uma história para tentar amenizar os reais motivos do que ocorrera. Fantasiava um velho que aparentemente fora quem lhe aconselhara a fazer o que fizera. Personagem, claro, fruto de sua mente.

— Humm... — murmurou Frederico, rabiscando seu bloco de notas.

— Ele me disse que bastava unir as partes em um todo. E que depois disso ela ficaria bem.

O estômago do doutor estremeceu ao lembrar a que partes o seu paciente se referia. Ele não contara obviamente, mas estava no relatório policial.

— Faltava apenas mais uma parte — prosseguiu Juan, cerrando os dentes — E eles me atrapalharam. Malditos.

— Você tem consciência de que sua filhinha de cinco anos iria se machucar, Juan? Você a ama, não é?

— Mas é claro que sim, seu imbecil — vociferou, virando-se para olhar o doutor — Acha que eu a machucaria?

Pois ele a tinha machucado. Só não fora pior porque os policiais chegaram a tempo. A pobre garotinha teve sua mão mutilada. Os policiais disseram que ele pretendera corta-lhe o braço. Graças a Deus ele não teve tempo para isso, mas as moças...

— Ela está machucada, Juan. Você não viu?

— Não me deixam vê-la — respondeu Juan.

— Ela que não deseja vê-lo. E você sabe disso. Chega de jogos, Juan — Frederico atirou o bloco de notas do outro lado do escritório. Ele chocou-se contra a parede e caiu no tapete onde permaneceu — Deixemos o “doutor” de lado. Vamos falar de homem pra homem agora. Prometo a você que tudo que disser permanecerá em segredo.

Juan riu incrédulo. Duvidava do doutor. Duvidava dele da mesma maneira que duvidou dos policiais e os porcos na prisão que insistiam em dizer que ele era um assassino. Que matara sua esposa e mais duas jovens. E mais absurdamente sobre ter machucado sua filha, coisa que ele nunca faria.

— Ela falava comigo, doutor. Ela estava gostando. Estava melhorando. Assim que coloquei as duas primeiras partes. Ela falou comigo...

— Ela quem? — indagou Frederico, consultando seu relógio de pulso. A consulta deveria ter encerrado há vinte minutos, mas dali ele não sairia até ouvir a versão oficial daquela história que apavorara todos da cidade.

— Minha doce mulher.

— Sua esposa?

— Não seja tolo — zombou Juan — Ela não passava de um passatempo. Minha verdadeira mulher. A que eu conheci e que fora tirada de mim. A que eu faria ficar bem de novo. Ela estava machucada. Não percebe? O velho me disse que bastava eu juntar as partes para ela melhorar.

— Partes de que, Juan? — indagou Frederico, cada vez menos contendo sua ansiedade. Poderia estragar tudo se continuasse a pressionar Juan, mas não se importava. Arriscaria todo o progresso que tivera.

— Partes de todas aquelas que tentaram impedir nosso amor.

Ele se referia as duas jovens mortas. Mas em que elas teriam interferido na vida daquele homem? Até onde sabia o relacionamento com a esposa era tranqüilo.

— Eu tinha que castigá-las. Então... — Ele fez uma pausa. Passou a mão pela testa e prosseguiu friamente — Cortei-lhe os membros para dar pra minha mulher.

Frederico estremeceu, mas não era nada que ele já não sabia, contudo era a primeira vez que Juan falara pessoalmente.

— Assim que coloquei os braços nela novamente, doutor. Ela ficou feliz — contou Juan. E à luz do escritório, Frederico viu que ele sorria.

“Ela ficou feliz. Me disse que agora precisava de novas pernas. Mas ela não queria pernas comuns. Queria belas pernas, doutor. Era vaidosa, sabe?”

Frederico assentiu com um mero gesto de cabeça e então perguntou:

— E o que você fez?

— Obedeci. Eu a amava, doutor. Faria tudo por ela. Ela me disse que queria as pernas daquela vadiazinha da vizinha. A que tentava estragar nosso amor com seu corpo pecaminoso.

Frederico se lembrava do que dizia no relatório. Das pernas pregadas grosseiramente com pregos.

— Mas não era o bastante... — disse Frederico.

— Não... Ela disse que queria as mãos do fruto da outra. A princípio não entendi, mas o velho me aconselhou.

Então tentou cortar as mãos da própria filha...

— Não deu certo, não é? — perguntou Frederico, ciente da resposta. Ele não conseguira. No final não conseguiu machucar a filha.

— Sim... mas não é tarde, doutor. O velho disse que vai me ajudar a recomeçar tudo de novo.

Frederico enrijeceu-se.

— Do que está falando? Começar de novo? Você sabe que está acabado, Juan. Não finja pra mim que não se lembra da atrocidade que cometeu contra aquelas pobres moças.

— Não sei do que está falando... — negou Juan, levantando-se da poltrona.

Frederico levantou-se também.

— Oras! Chega disso, seu assassino imundo! — gritou Frederico, perdendo completamente a calma — Você as matou e sabe disso. Fica falando de um velho somente para esconder sua culpa em tudo. Você matou as pobres garotas e depois esquartejou seus corpos para colocarem seus membros naquela... naquela...

— Não ouse falar de minha mulher! — vociferou Juan, batendo com as mãos no peito do doutor.

Batidas soaram na porta do escritório. Os policias que aguardavam. Provavelmente ouviram toda a agitação. Frederico estava perdendo a chance. Era agora ou nunca. Não haveria outra sessão.

— Mulher?! Há, há, há, há! Seu lunático! Aquilo era um manequim! Um manequim velho e ensangüentado.

Batidas mais fortes soaram na porta.

— Doutor Frederico? — chamou o policial do outro lado — Está tudo bem aí?

— Você verá, doutor — falou Juan — O velho me disse que ainda temos tempo. Que tudo pode ser feito. Que ele me ajudará. Grades de prisão não vão me impedir. Ele me disse que pode ser substituído. Que o fruto jovem pode ser substituído.

— Do que diabos está falando? — indagou o doutor completamente fora de si.

Neste momento a porta do escritório fora arrombada indo bater de encontro à parede. Dois policiais entraram de armas em punho. Um deles tratou logo de agarrar Juan e algemá-lo enquanto o outro ia ver se estava tudo bem com o doutor.

— O que houve aqui? — quis saber um dos policiais.

Frederico se recompôs ajeitando o paletó e então disse:

— Meu trabalho com esse homem está terminado, senhores. Eu o declaro completamente são. Enviarei meu relatório amanhã cedo. Ele deve pagar pelo que fez. Espero que a justiça não se engane enquanto a isso.

— Certo, doutor — assentiu o policial, empurrando Juan para fora do escritório.

— Esperem! Esperem! — começou a gritar e se debater Juan. Os policiais o seguraram enquanto ele tentava se virar para o escritório.

— O que é, vagabundo? Sua terapiazinha acabou.

— Quero falar uma última coisa com o bom doutor.

Os policiais olharam para Frederico, este assentiu com um gesto de sua cabeça enquanto acendia um cigarro. Tinha uma expressão exausta no rosto.

— O velho me prometeu, doutor. Ele disse que ia me ajudar. E sabe do que mais? Ele me avisou sobre alguém que me atrapalharia no futuro. Disse-me que eu saberia quando chegasse a hora. Vejo que não me enganei.

— Do que está falando, seu traste? — cuspiu Frederico.

Juan riu.

— O fruto jovem pode ser substituído. Creio que eu não seja o único que tenha uma filha com belas mãozinhas para serem usadas. E além disso...

O telefone sobre a mesa do doutor toca.

Juan abre um largo e sinistro sorriso. Frederico leva a mão ao fone no segundo toque.

— Alô... O quê? — sua expressão muda — Desapareceu?

Tudo lhe vem à mente. Sua filha. O maldito manequim com partes humanas acopladas a eles.

— Onde está minha filha, seu maldito?! — gritou avançando para Juan.

— É melhor se apressar, doutor — disse Juan, sorrindo. Os policiais olhavam de um para o outro completamente confusos — O velho não terá tanta piedade como eu tive.

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 23/12/2011
Reeditado em 10/05/2012
Código do texto: T3403987
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