O Canibal

Uma mão cravou três flechas na grama verde.

Quatro zumbis cambaleavam com as mãos estendidas a frente com o rosto retorcido pela morte. Gemiam um coro amaldiçoado saído das profundezas das suas gargantas sem vida.

O arqueiro apoiou um joelho no chão e apanhou a primeira flecha, armando seu arco.

Disparou as três flechas rapidamente, uma atrás da outra, e elas alcançaram os alvos num zunido mortal.

Acertou a testa dos três numa precisão fora do comum. O arqueiro retirou uma faca longa e correu em direção ao ultimo, que permanecia de pé sem se importar com os companheiros caídos.

Com um golpe vigoroso, o arqueiro decepou a cabeça do zumbi restante, que rolou sobre a grama verde manchando-a de um vermelho-fuligem, já sem a cor da vida.

O arqueiro permitiu se ajoelhar no chão, arfando de cansaço. Fugia a três meses do castelo Redmont, onde a praga de zumbis alcançara. Todos do castelo estavam mortos e ele foi o único que escapou.

Como arqueiro real, lutou bravamente até o ultimo homem. E, quando viu até mesmo o rei sucumbir à loucura e atirar a rainha e as filhas do parapeito do quarto em direção a multidão de zumbis, nenhuma esperança restara aos soldados que ficaram com ele.

Halt, o arqueiro real, levantou os olhos castanhos cobertos por um capuz cinza e branco em direção a uma nova onda de zumbis a frente. Com os pulmões ardendo de estafa, voltou a correr.

Por volta do fim do dia, alcançou uma montanha de rocha limpa e de difícil escalada. As arvores ali eram escassas, olhou ao redor de si mesmo procurando alguma outra saída, mas lentamente os zumbis o cercava fechando o cerco.

- Malditos. – murmurou o arqueiro de estatura mediana.

Observou acima uma reentrância, mas era alta demais. Tentou dar alguns saltos, mas seu corpo esgotado da corrida do dia o havia deixado sem forças. Em sua aljava tinha apenas dez flechas, constatou deprimido. Encarou os mortos-vivos se aproximarem gradativamente, trazendo a morte em seus dentes e em seus dedos carcomidos. Seus olhos pálidos encaravam sua refeição.

- Ei você. Suba aqui! – gritou uma voz do alto.

O arqueiro do castelo de Redmond viu um homem na montanha. Este parecia um mendigo, cabelos negros e grandes caindo sobre a cabeça, e a pele curtida pelo sol. Ele parecia estar numa parte plana, e onde Halt estava não conseguia enxergar. Com uma onda de alivio percorrer seu corpo, ele se jogou, agarrando a mão que lhe era oferecida.

O homem ajudou Halt a se erguer. Este se jogou na parte plana, e se virou rapidamente para ver os zumbis se avolumarem, que olhavam para os dois, gemendo e rosnando, arranhando a base da montanha tentando subir.

- Meu nome é Zamboula. – falou o homem estendendo a mão.

- O meu é Halt, arqueiro real de Redmont.

- Arqueiro real? Cara, os arqueiros são considerados lendas...

Halt sabia que o povo espalhava boatos do heroísmo e da honra dos arqueiros. Ele sorriu sem mostrar os dentes, querendo achar alguma verdade nisso.

Havia algo de estranho em Zamboula. Ele continuou a falar, mas Halt já não prestava mais atenção no que dizia. Observou seus olhos negros e enrugados pelo sol, o nariz grande, os lábios cinza e ressecados, os dentes... Os dentes cerrados, semelhantes a um serrote de marceneiro? Homens com esse estranho hábito só poderia significar uma coisa: ele era um canibal. Eles costumavam amolar os dentes para facilitar a trituração da carne humana.

- ...E então conseguimos fugir do primeiro ataque dos zumbis, mas todos da minha vila pereceram.

O arqueiro fez que sim com a cabeça, escondendo seus olhos e sentimentos abaixo do capuz.

- Venha comigo, deixe-me mostrar nossos aposentos. – disse um entusiasmado Zamboula sorrindo, e o sorriso não alcançou os olhos. Parecia mais uma mascara desumana, os dentes serrilhados numa tentativa de simpatia e os olhos sérios e avaliadores.

Ele estendeu a mão, querendo que o arqueiro seguisse na frente.

Halt avaliou-o por um momento. Era grande, forte, e de braços musculosos. Algumas cicatrizes no pescoço mostravam que já lutara anteriormente.

O arqueiro deu de ombros e seguiu a dianteira.

***

Existia uma gruta, subindo um pouco a montanha por um caminho íngreme. A entrada era em formato oval, e um corredor iluminado por tochas seguia adiante.

Halt parou brevemente na entrada, mas completou o passo, decidido.

- Foi muita sorte encontrarmos você. Sorte sua também, não é? – disse o outro atrás, e sua voz ecoou pelas paredes disformes do caminho.

Halt permaneceu em silêncio.

Seus passos ecoaram. Ao longe, o arqueiro escutou barulhos de pingos d’água que vinham logo à frente. Sentiu algo agarrar seu tornozelo. Surpreso, deu um passo para o lado.

Um braço saia de um buraco de tamanho médio. Este era obstruído por uma cerca de madeira entrelaçada por grossas cordas. Uma espécie de prisão rústica.

Halt observou o dono do braço. Um homem velho de olhos tristes implorava por ajuda, jogado no chão. Viu também uma mulher sentada numa pedra, parcas roupas cobrindo sua nudez magra, a encarar o homem com olhar de suplica e levantou o toco do braço, enfaixado por panos sujos. O arqueiro voltou para o velho, e percebeu que ele não tinha as duas pernas. Os cotos estavam enfaixados pelos mesmos panos sujos.

- Por favor... – sussurrou o velho. – nos ajude.

A mulher tremeu. Ela se jogou contra a grade de madeira e permitiu que lágrimas escorressem pelo rosto imundo. Seus olhos, entre as madeixas grossas de sujeira, imploravam por misericórdia.

Penalizado, Halt observou os dois prisioneiros aleijados. Virou o rosto, e apertou o passo.

Com um sorriso zombeteiro, Zamboula encarou os prisioneiros.

- Sumam daqui! – e deu um tapa bruto na grade, fazendo a mulher cair para trás assustada.

Andaram por mais dois minutos, e Halt se viu num espaço amplo. Estalactites se espalhavam sobre o teto. Uma pequena lagoa se formava num poço pequeno perto da parede a esquerda, e pingos d’água caiam. No centro, uma fogueira alta iluminava dois homens sentados tranquilamente comendo carne.

O arqueiro cingiu os olhos ao perceber ser carne humana.

- Vejam quem eu trouxe rapazes. – gritou Zamboula, e seu grito ecoou sinistramente pela gruta. – este arqueiro quase morria nas mãos dos zumbis lá embaixo.

Os dois se levantaram rapidamente.

- Ele é tão pequeno... – avaliou um, balançando a cabeça tristemente.

- Mas ele pode durar por um mês, no mínimo, Gilan. Deixe de ser pessimista.

- Um arqueiro real... – surpreso, o outro homem deu alguns passos adiante. – pensei que todos estavam mortos depois do ataque ao castelo. Como conseguiu escapar de lá, homenzinho?

Halt permaneceu quieto, avaliando os canibais.

O de nome Gilan era alto e magro, mas compacto e parecia ser forte. O outro era grande, de ombro largo e peludo nos braços.

- Ele não é de falar muito, Crowley. Ele não precisa falar muito. Precisa é ter muita carne.

E os três caíram na gargalhada.

- Venha, Halt. Hora de fazer companhia para os seus coleguinhas de cela.

Zamboula segurou com firmeza o ombro do arqueiro. Ele, habilmente, segurou a mão do canibal, girou o corpo e a cabeça por baixo do braço dele e o torceu com força. O som de ossos se estalando chegaram ao ouvido dos quatro. O canibal gritou de dor, e foi jogado no chão de calcário bruscamente.

Gilan gritou furiosamente e correu com os punhos fechados.

Com uma rapidez que só um arqueiro real possuía, Halt pegou uma flecha, armou o arco e disparou.

Por Gilan ser alto, e o arqueiro baixo, o tiro acertou de baixo para cima no olho esquerdo do canibal, a seta varando o outro lado da cabeça. Este rodou debilmente, sem equilíbrio, caindo como um saco vazio sobre o chão.

O outro já estava próximo, e empunhava uma clava grande nas mãos. Aplicou um golpe em diagonal contra a cabeça do pequeno arqueiro. Este esquivou, baixando a cabeça no mesmo instante. Como Crowley tinha corrido, seu corpo ficou totalmente exposto, bem como o queixo.

Impulsionando as duas pernas, Halt investiu o topo da cabeça contra o queixo do oponente. Este desmaiou no mesmo instante, sendo jogado para trás.

Ofegante, o arqueiro escutou os gemidos dos canibais. Pegou a faca longa e foi até Zamboula, que estava estirado no chão.

- Por favor... Não me mate.

Silencioso como um açougueiro, Halt cortou os tendões do calcanhar dele. Um novo grito desesperado ribombou pela gruta.

- Desgraçado... – rosnou Zamboula mostrando os dentes afiados.

O arqueiro foi até Crowley e aplicou o mesmo tratamento. No susto, o homem acordou com a lâmina fria trespassando o seu calcanhar no limite de ter seu pé decepado. Chorando, levou as mãos ao ferimento.

Halt pegou o corpo de Gilan pelo pé e o arrastou pelo corredor da gruta.

- O que está fazendo desgraçado? Mate-nos logo de uma vez!

Halt passou pelos prisioneiros, levando o morto pelo tornozelo. O velho e a mulher magra se encolheram ao ouvir a cabeça do canibal bater nas pedras e seu corpo ser arrastado, puxando a carne e abrindo ferimentos nas rochas pontiagudas.

O arqueiro chegou até a beira da gruta, ergueu o corpo com seus potentes músculos, e jogou o cadáver sobre a multidão de zumbis.

Ele escutou um baque seco ao longe, quando o corpo aterrissou na cabeça deles e no chão. Logo, ensandecidos, os mortos-vivos atacaram vorazmente o corpo que ainda nutria sangue e pulsação.

Com a respiração pesada pelo cansaço, ele voltou para o interior da gruta. Ao passar pela prisão, os prisioneiros esticaram as mãos agarrando seu capuz.

- Liberte-me. Você é um soldado do rei. Por favor.

Halt golpeou os braços deles, afastando-os de suas vestes. Os cabelos brancos caíram sobre os olhos castanhos desprovidos de humanidade.

- O rei está morto. – falou simplesmente.

Dito isto, prosseguiu.

Chegou ao espaço amplo, onde os canibais se arrastaram de um canto a outro, deixando um rastro de sangue grosso no chão.

Eles estavam encostados na parede, respirando com dificuldade.

- Entendi... – murmurou Zamboula. - Você está se vingando de nós, não é? Estamos em tempos difíceis. Fazemos o que fazemos para sobreviver. Por favor, não nos mate.

Halt sentou diante do fogo, exausto. Tirou a capa e encarou os dois homens que estavam lado a lado do outro lado da gruta.

- Eu sei. – murmurou o homem de cabelos prateados. – sei que fazem isso para sobreviver.

Zamboula empalideceu. Através das chamas, viu o rosto parecido com um animal faminto nas feições do arqueiro. E, também viu os dentes serrilhados de canibal.

- Eu também faço isso para sobreviver. – disse por fim Halt.

Com um suspiro, ele se ergueu empunhando sua faca longa e caminhou em direção aos dois canibais.

davifmayer
Enviado por davifmayer em 29/12/2011
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