Uma história de Fantasma

Quando sabemos que morremos? Quando tudo fizer sentido.

Minha vida não me satisfazia. Creio que existiam pessoas que dariam tudo por ela. Eu não tinha problemas de saúde, tinha um belo apartamento, trabalho, mas faltava algo. Eu me sentia só, sem um propósito. Então no meu aniversário de vinte cinco anos nada de bolo para mim. Subi ao terraço do meu prédio e sentei na borda olhando para o horizonte de luzes e prédios a minha frente. Um vento gelado soprava meu rosto. Olhei para baixo. Três andares. Uma queda fatal sem dúvida. Creio que fiquei pelo menos uma hora sentado a pensar em minha vida. Em tudo de ruim que minha falta faria. Não encontrei nada que me impedisse. Ninguém sentiria minha falta. Nem mesmo Larissa, minha amada. Tínhamos terminado há uma semana e ela sequer retornara minhas ligações. Estava pronto para pular, mas uma voz persistia em minha cabeça, adiando, tentando me atrasar. Tentando desesperadamente encontrar uma forma de impedir aquela loucura. Tarde demais...

Lembro-me quando acordei no dia seguinte tudo parecia normal. Levantei-me, escovei os dentes e tomei uma ducha para ir ao trabalho. Se tivesse olhado para o espelho do banheiro eu veria, ou melhor, não veria minha imagem, mas pela manhã eu fazia tudo praticamente cochilando. Não sentia fome, então saí logo para o trabalho que ficava há alguns quarteirões de meu prédio.

Comecei a notar que havia algo errado quando passei pela portaria. O chato do porteiro que sempre pedia meu cartão para passar na roleta sequer olhou para mim. Tudo bem, dei de ombros e passei mesmo assim. Odiava ter que dá atenção para os outros pela manhã.

A porta do elevador se abriu e uma garota toda arrumada e um homem alto entraram.

– Segurem a porta, por favor! – gritei correndo para alcançá-la.

A garota olhava diretamente para mim e o homem para os botões do elevador. Nenhum dos dois fez menção de segurar a porta.

– Que merda – xinguei – Povo sem educação.

Olhei para uma senhora que estava ao meu lado também esperando o elevador.

– Viu isso, senhora? Não podem nem ao menos colocarem a mão para segurarem a porta.

A senhora me deixou no vácuo, irritado e constrangido. Fiquei com uma vontade tremenda de mandar todos se foderem, mas engoli a raiva e esperei o elevador chegar. Tratei de entrar rapidamente. Jenny, uma colega de sala entrou também. Vestia um terninho preto muito elegante e tinha os cabelos amarrados em um coque no topo da cabeça. Estranhei muito aquilo. Ela que sempre vinha toda à vontade, tendo toda a atenção dos homens do prédio, ir vestida daquele jeito não era normal.

A porta se abriu e saí para o corredor. Dirigi-me para minha sala e estaquei.

No centro da porta uma marca branca retangular onde devia estar o meu nome em letras garrafais sumira. Fora tirada, arrancada fora, enfiada no cu! Que se fodesse, queria explicações.

Fui para a sala da gerente e bati na porta. Eu podia vê-la pela cortina sentada a sua mesa fitando o vazio com uma caneta na mão. Não fazia menção de atender a porta. Olhei para os lados desvairados. Agarrei um garoto pela camisa.

– O que aconteceu aqui? Fui despedido?

O garoto não respondia.

– Responda, garoto.

Saí do prédio cuspindo fogo. Se tivessem me despedido sem aviso eu iria levá-los à justiça.

Fui para uma praça e me sentei. Algo me perturbava. Uma coisa que eu não me lembrava. Foi então que me toquei que estava vestido com as mesmas roupas da noite anterior. Contudo, eu me lembrava muito bem de ter vestido o uniforme para ir ao trabalho.

Abaixei a cabeça entre as pernas e fiquei assim por minutos até que...

– Primeiro dia é difícil, né?

Sem erguer a cabeça respondi:

– Você é a primeira pessoa que fala comigo hoje...

A pessoa riu ruidosamente.

– Normal. Com o tempo você aprenderá aonde ir.

– Como é? – perguntei, olhando para o homem pela primeira vez. Era gordo, careca com uma barba rala e grossa.

Ele balançou a cabeça em uma negativa e então disse:

– Eita, você não se lembra, não é?

– Me lembrar de quê?

Ele estendeu a palma da mão para mim. Eu apertei.

– Me chamo Jonas.

– Patrick – respondi.

Ele coçou a careca e entortou a boca como se o que fosse dizer fosse muito difícil.

– Escuta... – começou – Não se lembra de nada do que fez ontem?

O que ele queria? Cara estranho. Fiquei calado.

– Olha, filho. Não sei se devo te contar ou deixar que perceba por conta própria. Por mim seria melhor que você se desse conta sem ajuda, pois assim o choque é menor. Contudo, vejo que está transtornado...

– Desembucha, cara – falei, de mau humor.

– Você está morto, Patrick.

No primeiro momento eu não soube o que falar. Se eu ria, ou me levantava e ia embora, ou se colocava o pau para fora e fazia girocóptero, mas uma lembrança me fez esperar. Uma lembrança vaga, mas muito recente. Uma noite fria, um homem sentado na borda do terraço de um prédio. Oh, deus...

– Mas...

– É... – murmurou o homem – Eu sei. É estranho, mas você se acostuma. Como aconteceu? Você é jovem. Não acho que tenha sido doença. Acidente de carro? Pela aparência parece acidente de carro. Moto talvez. Correndo muito, hein...

Eu não podia falar. Estava assustado, mas ao mesmo tempo muito curioso. Eu estava mesmo morto? Tudo que me lembrava era de pular do prédio, o vento frio e então acordar pela manhã.

Olhei para minhas roupas. Estavam rasgadas em alguns pontos.

– Não pode ser...

– Tudo bem, amigo. Você ficará bem. É só uma questão de se adaptar. Logo não achará tão ruim assim. Há certas... – o homem encurvou-se para mim e falou baixo – vantagens, sabe? Atravessar portas, paredes...

–...

– Eles não podem te ver, mas você ver eles. Bem...

O homem se levantou e estendeu a mão para mim. Apertei-a, ainda desnorteado.

– Já passei dessa fase. Não há muito que me entreter aqui. Nos vemos por aí, Patrick.

– Espere! Por quanto tempo vou permanecer assim?

O homem se virou e sorriu.

– Até que entenda o que é viver, meu filho.

Abaixei a cabeça e quando levantei novamente o homem havia desaparecido. Levantei-me e olhei em volta procurando-o pela turba de gente que passava pela praça. Morto...

Vaguei pelo que me pareceram horas. Visitei lugares a que estava acostumado a frequentar. Restaurantes, lanchonetes, fliperamas e até uma boate. Não ser notado era uma sensação horrível. Percebi que eu podia tocar nas pessoas como se eu ainda fosse feito de carne e osso e não nuvem. Podia agredi-las, destruir objetos... no entanto, assim que me virava as coisas voltavam ao normal. Como se nunca tivessem acontecido. Presumi que aconteciam, porém em outro plano. Não eram reais. Assim como eu pensava que eu também não fosse.

Só havia um lugar ao qual tive vontade de ir. A casa dela. A mulher que me abandonara. Larissa contribuiu para minha desgraça. Se ao menos tivesse falado comigo. Se não tivesse se afastado tanto, talvez eu ainda estivesse vivo. Havíamos terminado. Só que isso não era motivo para ela me afastar tanto. Durante nossa última briga ela me dissera que ainda me amava, porém não podia continuar comigo. Que eu tinha mudado muito. Que não era o mesmo Patrick que ela conhecera. Portanto, o término do nosso namoro tinha sido pacífico. Sem tapas, sem roupas atiradas pelas janelas. Então por que ela não quis me ver?

Depois de vagar sem rumo durante todo o dia, voltei a minha casa assim que anoiteceu. A primeira coisa que notei foi a quantidade de carros estacionados em frente ao prédio. Pessoas, todas vestidas de preto entravam e saíam. Muitas eu conhecia do escritório. Alguns amigos de infância há muito esquecidos. Colegas de escola e parentes. Estes, só vistos durante as festas de fim de ano.

Aproximei-me de um grupo de jovens que conversavam em um círculo. Reconheci imediatamente Raquel, a bela negra de cabelos anelados. Tínhamos namorado durante três meses antes que ela se mudasse do colégio. Falávamos-nos por telefone na tentativa de manter o namoro, mas a distância atrapalhou.

– Quem diria, cara... – falou um rapaz magro – Nunca pensei que o Patrick fosse chegar neste ponto. Eu o achava tão divertido...

Ri espalhafatosamente. Eu? Divertido? Sempre me achei um chato rabugento. Odiava ouvir piadas e raramente ria.

– Pois é, mano, nem fala... – disse o outro rapaz, esse aparentava ter uns dezoito anos. Fiquei a tentar me recordar de onde conhecia aqueles dois.

– O Patrick era maior gente boa. Sempre me ajudava no escritório quando trabalhei de estagiário no ano passado. Fiz de tudo pra ser amigo dele...

Um silêncio pairou no grupo.

Raquel tinha os olhos vermelhos. Sinal que chorara. Fiquei profundamente contente por saber que mesmo depois de tudo ela ainda continha um pouco de afeto por mim. Os dois rapazes também pareciam tristes. Forcei-me a lembrar de onde os conhecia. O mais novo era o mais familiar dos dois. O que ele dissera? Que tinha feito estágio no escritório no ano passado...

– O que me deixa mais triste nessa história foi que eu não estava aqui para ajudá-lo. A gente sempre se falava. Se eu soubesse que ele estava com tantos problemas assim, eu teria feito uma força para ficar perto dele. Fui uma péssima amiga...

Se eu estivesse vivo, o que faria naquele momento seria dar um forte abraço na Raquel. Ela parecia realmente abalada. Uma lágrima solitária escorria por sua bochecha. Levei minha mão ao seu rosto e afaguei. Ela não esboçou reação nenhuma.

– Deixe disso, Raquel – falou o mais velho – Ninguém teve culpa. Quando as pessoas fazem isso geralmente têm problemas profundos. Traumas de infância... sei lá.

– É, Marcelo – respondeu ela de cara fechada – Por isso ele precisava de apoio. Amigos, parentes. Qualquer coisa para tirá-lo da tristeza.

– Foi suicídio mesmo? – perguntou o mais novo, interessado.

Repentinamente me veio à memória de onde conhecia o garoto. Fora mesmo ano passado. Durante o programa do governo para jovens aprendizes. Bati a mão na testa. Ele tinha sido designado para ser o meu aprendiz. Lembro-me que estava atolado de serviço naqueles dias e tudo que não queria era bancar a babá de um estagiário. Eu fizera de tudo para me livrar dele. Tinha sido mesquinho e pouco atencioso. Respondia mal as dúvidas dele e raramente trocava uma palavra. E agora aqui estava ele dizendo que eu tinha o ajudado e que eu era gente boa... Engoli em seco.

– Os policiais disseram que sim – respondeu o mais velho – Não havia nenhum indício que ele tinha sido empurrado. Não deixou carta nem nada. É triste, mas...

Não cheguei a ouvir o resto da conversa porque naquele instante afastei-me dali. Como eu tinha sido um idiota. Tratei mal as pessoas.

Adentrei o prédio e subi as escadas me esquivando de todos. Quando cheguei ao corredor do terceiro andar onde ficava meu apartamento encontrei meus avós. Deus, como estavam velhos! A última vez que os vira foi no ano retrasado, pois no passado não fui à festa de fim de ano onde nos reuníamos. O que eu fizera naquele natal? Ah, sim. Tinha saído para beber com alguns caras que conheci em uma balada. Eu deixara de passar o natal com meus familiares para passar com estranhos.

– Pobre garoto... – falava meu avô para minha avó. Tinha o semblante mais triste que eu já vira.

– Ele era um ótimo, neto, não é mesmo? Coitada da Marisa. Uma mãe não deveria ver seu filho morto daquele jeito.

Minha avó debulhou-se em lágrimas. Meu avô passou o braço pelo ombro dela e a abraçou.

– Vovó! Vovô! – gritei, segurando-os e forçando-os a se virarem para mim – Eu estou aqui, não fiquem tristes. Podem me ver? Podem me ouvir? Me perdoem...

Eles não responderam. Eles não se viraram. Não podiam. Comecei a chorar. Que espécime de ser humano eu fora?

Saí dali. Não podia ver aquelas expressões. Não podia. Nunca sentira tanta vergonha em minha vida.

Passei pela porta do meu apartamento ouvindo o choro. Soube mesmo antes de vê-la. Minha mãe Marisa. Ela chorava debruçada sobre o caixão onde jazia meu corpo inerte e pálido. Aproximei-me. Era estranho me ver naquele caixão se eu estava bem ali em pé. Meu cadáver estava muito diferente. Eu tinha o rosto inchado com alguns hematomas na região do nariz – que por sinal estava torto.

– Oh, mamãe...

Toquei-lhe delicadamente no ombro. Queria que ela me visse, que me ouvisse pelo menos uma última vez. Eu diria a ela tudo que não tinha dito durante aqueles últimos anos. De como a amava e de como ela era especial para mim. No entanto, agora eu não podia. Fiquei ali por minutos a observar minha mãe chorando. Ignorando completamente as outras pessoas na sala. Só ela me importava. Eu daria a alma para falar com ela uma última vez... Só mais uma vez...

– Cuidado com o que deseja, filho...

Tomei um susto com o homem parado bem ali a meu lado. Era o homem da praça. Jonas. Relaxei e voltei a fitar minha mãe. Acariciei seus cabelos.

– Eu fui um péssimo filho, seu Jonas. Na verdade, fui uma péssima pessoa enquanto vivo. Agora eu sei. Não eram as pessoas o problema... Era eu. Tinha amigos e não dei valor. Pessoas que gostavam de mim. Meus parentes, sempre dispostos a nos unir em festas de fim de ano. Todos tinham família, obrigações, mas faziam de tudo para estarem presentes.

– Você tem mais visitas, filho.

Virei-me. Uma moça linda de longos cabelos escuros chegava com um rapaz alto. Estavam de mãos dadas. Provavelmente namorados.

– Minha nossa... – murmurei, incrédulo – Aquela é...

– Sim, filho. É sua irmã. Ainda se lembra dela?

Meus olhos encheram-se de lágrimas. Saudade, remorso, culpa. Minha irmã Juliana. Estava tão crescida. Qual fora a última vez que a vira?

Não adiantava. Tudo que me lembrava era de uma garotinha marrenta que insistia que queria ser jogadora de futebol. Quando saí de casa assim que fiz dezoito anos ela chorara muito. Queria que eu a levasse comigo. Minha promessa tinha sido que eu a veria sempre em suas férias de escola. Fui em alguns anos, logo deixei de ir.

Minha irmã ao ver o caixão largou a mão do rapaz e correu para cima do meu corpo chorando copiosamente. Logo, minha mãe e familiares aproximaram-se para consolá-la. O rapaz que viera junto abaixara a cabeça sem jeito. Triste pela situação. A cena era lamentável. E eu a causara. Não percebia como era amado e querido. Deixei a todos. Causei desgraça e tristeza. Eu não os merecia. Não merecia o amor deles. Desejaria morrer naquele momento se não já estivesse morto.

– Tenha calma, meu filho. Você não é o primeiro e não será o último.

– Quem é você? – indaguei a Jonas, que para mim já deixara de ser um mero fantasma há muito tempo. Ele parecia ler meus pensamentos. Sentir minha tristeza.

– Um mero expectador, meu filho. Um mero expectador daqueles como você que interrompem o curso natural da vida.

Franzi o cenho.

– Suicidas?

– Exatamente – aquiesceu o homem.

Voltei-me para minha irmãzinha e minha mãe que ainda choravam.

– Eu... não queria nada disso. Eu não sabia... não podia saber...

– Ah, podia, Patrick. Esteve diante dos seus olhos o tempo todo. Entretanto, a raiva e sua mesquinhez lhe impediam de enxergar.

Não respondi. Estava arrependido. Envergonhado. Dei-me conta que faltava uma pessoa ali. Onde estava Larissa? Eu não a vira. Saí da sala e fui para o corredor procurando. Desci as escadas e olhei pelo saguão. Nada. Lá fora, mais pessoas se aglomeravam, contudo Larissa não estava ali. Não via seu carro estacionado...

– Ela não veio...

Nem precisei me virar.

– Por quê? – perguntei, temendo a resposta.

– Ela está feliz agora, Patrick. Lembra-se de como a tratava? Se lembra do sábado quando estavam no parque e você...

– Chega! – berrei, virando-me para Jonas – Foi só uma vez. Ela me irritou. Eu disse para ela não me irritar. Só dei um empurrãozinho. Como ia saber que ela quebraria a perna? Alguém devia processar os responsáveis pelo parque por deixar um buraco como aquele aberto.

– Você a machucou, Patrick. Sempre arranjando desculpas para seus atos. Este foi seu maior erro. Ela deixou de amar você há muito tempo. Está feliz agora.

Não agüentei e comecei a chorar. Chorei como nunca chorara na vida. Tudo que aquele homem dizia era verdade. Perdi a todos, magoei a todos. Não tinha volta. Tudo que me restava era aceitar aquela nova condição de vida. Viver como um fantasma eternamente. Sempre ali, mas nunca inteiramente.

– O que será de mim? – perguntei, entre soluços.

– Bem, bem... Percebo que você compreendeu o que é viver, filho. Acho que agora posso levá-lo...

– Me levar pra onde?

– Para sua próxima parada. Tá na hora de pagar pelos seus pecados.

Alarmei-me.

– Está falando de quê?

Jonas riu. Desta vez, soou como algo inumano, felino. Algo realmente maligno. Estremeci e quando me dei conta estava tremendo sem motivos.

– Não finja que não sabe... Teremos a eternidade para nos conhecermos. Agora vamos.

Devo dizer que não gritei. Acho que meu destino era merecido. Portanto, quando aqueles seres escuros e diminutos saíram das trevas e me agarraram não resisti. Não clamei por perdão e misericórdia. Jonas estava ali para me levar. Ele era o mensageiro. O serviçal maligno. Eu ganhara a vida e agora pagaria por tê-la tirado.

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 14/01/2012
Reeditado em 11/05/2012
Código do texto: T3440787
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.