Insanidade - Não assitam à TV!

CAPÍTULO 1

NÃO ASSISTAM À TV!

Um vento gélido soprava pelas ruas do bairro. Agitando as copas das árvores e fazendo o semáforo sobre o principal cruzamento balançar ritmadamente. A luz laranja de alerta piscava, intermitente, avisando que há muito tempo já se passara da hora de dormir. Que as crianças deveriam ir para suas casas e tomaram copos de leite antes de caírem no sono até que o velho da areia chegasse para lhe darem maravilhosos e belos pesadelos. Entretanto, ali estavam elas, nas calçadas surpreendentemente limpas a brincarem como se não houvesse amanhã.

Dois garotos sentados sobre o teto de um carro fumavam charutos ridículos de tão enormes. A camisa do mais novo estava manchada de um vermelho vivo, ocultando parte do desenho do palhaço estampado.

O mais velho, que se julgava um roqueiro – ideia reforçada pelos longos cabelos, braceletes de pontas afiadas nos pulsos e uma camisa do Iron maiden onde Eddie o mascote da banda agitava uma bandeira da Inglaterra – olhava despreocupadamente para o outro lado da rua onde duas meninas brincavam de bonecas. Uma segurava um prato tão raso que o líquido amarelado escorria pelas bordas sujando o belo vestidinho azul ao qual a garota não parecia se preocupar. A outra enchia a colher da papa e tentava enfiar a gosma goela abaixo da boneca. Como era mesmo o nome? Ah, sim. Susie sem cabelos, era o nome da boneca.

– Vamos, Sabrina, faça a comer – falou a outra, um sorriso estampado nas faces pálidas.

– Estou tentando.

Do outro lado da rua, os meninos já tinham fumado metade do charuto e ainda observavam as meninas. Meninas estúpidas. Tantas coisas podiam fazer naquela noite maravilhosa e elas ali, brincando de bonecas.

Afonso se ergueu. Atirou o toco do charuto na calçada e olhou para o final da rua. Seus longos cabelos encaracolados balançavam a mais leve brisa.

Observava depois do cruzamento com seu sinal balançando e a luz de alerta piscando, a lanchonete com seu enorme hambúrguer no topo chamava-lhe atenção. Podia ver o neon do letreiro piscando e manchando a rua com suas belas luzes. Estariam lá? Se não estivessem poderiam comer tanto quanto seus estômagos agüentassem. Sorriu.

– Ei, Diego...

O outro tossia. Nunca havia fumado, mas achava a sensação maravilhosa. Quase podia sentir-se adulto. A fumaça incomodava, mas sabia que era uma questão de técnica. Tossiu mais um pouco antes de responder:

– Que é?

– Que acha de irmos até a lanchonete? Deve está vazia. A gente pode comer tudo que quiser!

Diego tossiu e coçou os olhos. Observava as vizinhas brincando do outro lado da rua. Podia jurar que por um segundo viu a boneca abrir a boca para tomar a papa. A mais velha delas, Jeniffer, olhou para ele e ao perceber que estava sendo observada deu um enorme sorriso de dentes brancos.

– Aah, não sei... E se meus pais aparecerem? Posso me encrencar...

Afonso saltou do carro habilidosamente. Era mais velho e mais forte. O que causava certa inveja a Diego. Contudo, eram amigos. Inseparáveis. Até gostava de tê-lo como amigo apesar das encrencas que Afonso o metia. Afonso era durão, porém legal. E sempre o defendia quando precisava.

– Não seja, bichinha. Sabe que eles não virão.

Afonso e Diego riram em conspiração.

– Oi, Diego e Afonso! – cumprimentou um garoto que passava pela rua pedalando em sua bicicleta. Ele tinha amarrado uma corda no selim e na outra ponta arrastava um cachorro morto, preto e peludo. Deixava um rastro vermelho indistinto em ziguezague pelo asfalto, pois o peso do cachorro o desequilibrava vez ou outra.

Diego e Afonso acenaram e viram quando ele virou no cruzamento. Riram quando o garoto balançou-se ameaçando cair, porém conseguiu fazer a curva.

– Ele não perdeu tempo. Aquele cachorro o perturbava há tempos.

Diego sabia do que o amigo falava. Podia jurar que aquele era o cachorro da senhora Tood. O cachorro que insistia em saltar a cerca e perseguir qualquer criança que passasse pela frente do jardim da casa. Marcos tinha prometido matar aquela coisa assim que tivesse chance. E a chance tinha vindo uma semana atrás. Diego ficou verdadeiramente feliz. Julgava-se a melhor presa do animal, pois com suas pernas curtas não conseguia correr muito. Perdera a conta de quantas vezes tinha ficado preso em árvores esperando que o maldito fosse embora.

Diego jogou fora o toco do charuto e deixou que as pernas escorregassem pela borda do teto do carro. Já na calçada esticou a camisa franzindo o cenho. Tinha sujado sua camisa favorita com o sangue do rato. A mancha escondia todo o sorriso do palhaço estampado.

– O que diabos foi isso? – perguntou Afonso, que só agora se lembrava de perguntar.

– Estou ficando sem nada para comer lá em casa. Já comi quase todos os pacotes de bolacha da dispensa. Só que minha mãe costumava esconder um pacote de mim na prateleira sobre a pia. Então quando subi na pia e abri a prateleira um rato saltou no meu rosto...

Afonso riu da cara de asco do amigo.

– Não é engraçado... – repreendeu

Diego, mas não estava irritado – Tomei um baita susto e me desequilibrei pisando no triturador da pia...

Diego parou a narrativa quando reparou que as meninas tinham se levantado da calçada e atravessavam a rua indo em sua direção. Suas mãos começaram a suar. Gostava da Jeniffer.

– Oi, Diego... – cumprimentou Jeniffer. Tinha o prato em uma das mãos com o líquido que restara pingando na calçada. O vestido estava sujo na altura dos seios como se fosse ela que estivesse tomando a sopa. Suas madeixas loiras tocavam o líquido no vestido, mas ela parecia não ver ou se importar. Diego julgava as duas coisas.

Sabrina tinha a boneca Susie sem cabelos no colo. Agora de perto, os meninos podiam ver que faltavam um olho na boneca. Era estranho fixarem o olhar naquela cavidade escura. Sentiam que o olho bom da boneca se virava para eles toda vez que faziam isso.

– É... – gaguejou o garoto – Oi, Jeniffer...

– O que estão fazendo?

– Bem... – olhou para Afonso, pedindo apoio – Agora nada.

– Vamos até a lanchonete – ajudou Afonso.

Um grito assustou o trio. Perceberam de onde viera ao verem Sabrina com um gato agarrada as pernas. A menina largara a boneca no susto e pusera-se a sacudir a perna enquanto gritava. O gato permanecia firme na perna direita de Sabrina. O sangue já escorria por onde o gato cravara suas afiadas garras.

Diego e Afonso irromperam tentando ajudar, mas não conseguiam chegar perto de Sabrina que insistia em gritar e pedir para que tirassem o bicho dela. Jeniffer observava a tudo hipnotizada.

Neste instante surgiu um garoto correndo pela rua atrás de um animal preto e peludo. Afonso olhou de relance e reconheceu Marcos. Uma lâmina brilhava em sua mão. Parecia uma faca enorme de açougueiro.

– Vocês... – resfolegava o garoto, parando com as mãos nos joelhos enquanto tomava ar – Um gato preto...

Marcos interrompeu-se ao ver o gato preso na perna da menina enquanto Diego tentava tirá-lo. Diego aproveitava os momentos em que Sabrina parava de se mexer para chutar o animal. A confusão era absurda. Entre gritos de Sabrina, miados escandalosos do gato e risadas por parte de Afonso e Jeniffer que assistiam a tudo como um magnífico espetáculo.

– Ei! Esse é o lanche do meu cachorro! – reclamou Marcos, ao ver que Diego arrancara o animal da perna de Sabrina e agora o girava pela cauda como um pião humano.

Afonso conteve os risos entendendo em fração de segundos o que se passava. O bicho que vira passar correndo era o antigo cachorro da senhora Tood. De alguma forma tinha ressuscitado. A faca na mão de Marcos dizia o resto. Ele queria o gato para alimentar o cão morto-vivo.

Diego soltou o gato com um “Oh!” de espanto por parte dos presentes. O bicho voou cerca de cinco metros de altura atingindo um poste produzindo um barulho de galho se partindo. O animal caiu desacordado. Então surgiu saltando da cerca de uma casa o cão morto-vivo. Tinha parte da cabeça arrancada com seu cérebro à mostra. Rosnava incessantemente com seus longos dentes manchados de sangue. O cão morto-vivo depois de deixar bem claro que o gato morto lhe pertencia pôs-se a devorá-lo.

O quinteto assistia a tudo em silêncio.

O antigo cão da senhora Tood avançava contra a carne do gato com suas longas presas e arrancava tufos de sangue e pele. Mastigava e em seguida lançava a bocarra a frente para tirar mais carne. Enfim, satisfeito, o cão morto-vivo virou a cabeça para as crianças do outro lado da rua e uivou prolongadamente. Virou-se, e fugiu pelas ruas deixando uma mancha de sangue na calçada.

Marcos quebrou o silêncio:

– Acho que não preciso mais alimentar o cachorro...

Os outros apenas balançaram as cabeças ainda olhando para o local onde o que restara do gato permanecia.

– Vou para casa.

Ninguém disse nada por segundos. Marcos logo sumiu na próxima esquina.

– Vamos para a lanchonete, Diego – falou Afonso, fungando – Me deu uma fome danada de repente.

Sabrina e Diego aquiesceram levemente com a cabeça.

– Também vou – disse Jeniffer.

Um uivo fez-se ouvir na noite. O cão morto-vivo caçava. O som das crianças brincando pelas ruas era ouvido por toda parte. O relógio na praça mostrava três horas da madrugada. E a enorme lua erguia-se no céu.

Nas casas simples daquele pacato bairro daquela desconhecida cidade, as TV’s permaneciam ligadas nas salas. Seus expectadores assistiam, imóveis, em sofás largos e poltronas confortáveis. Olhos esbugalhados, baba escorrendo por bocas escancaradas. Ninguém teve tempo de entender o que ocorria até acontecer. Nisso uma semana se passara.

– Quero um enorme hambúrguer – falou Sabrina, animadamente.

Segurava desleixadamente a boneca Susie pelo braço. A boneca que antes ostentava um sorriso alegre agora tinha uma expressão consternada.

– Quero um cachorro-quente – disse Diego timidamente, caminhando ao lado de Jeniffer.

– Deixem de serem afobados. Podemos comer o quanto quisermos sem nossos pais enchendo as paciência.

– Afonso está certo – concordou Jeniffer – Comer tudo que pudermos.

As crianças riram e continuaram, caminhando emparelhados bem no meio da avenida principal. O semáforo piscante logo à frente.

2

INSANIDADE – O VIAJANTE

A velha caminhonete trafegava a luzes altas. Afinal, desde que adentrara as imediações da cidade não vira outro veículo sequer. Nada. Nenhum motoqueiro alucinado ou motorista embriagado. Sabia que estava tarde para qualquer dessas coisas, contudo vivia na cidade grande. Estava acostumado a ver de tudo nas madrugadas. Sentia-se cansado. A viagem até sua cidade onde encontraria sua família levaria mais cinco horas.

Passou a baixa velocidade por uma placa que dizia: VOCÊ ESTÁ ENTRANDO EM INSANIDADE, SEJA BEM VINDO. Algum moleque tinha pichado a placa com tinta vermelha logo abaixo. Dizia: AS CRIANÇAS MANDAM.

Que raios de nome era aquele? Insanidade não era nome para cidade. Nunca ouvira falar daquele lugar. Duvidava até que estivesse no mapa.

Contudo, a gasolina estava a menos de um quarto de acabar. Não vira postos pela rodovia então adentrou na cidade. E agora aquilo. Droga de emprego. Tinha que largar aquela vida. Viajar durante a noite não era para qualquer um. A última compra ia sob a lona na parte de trás da caminhonete. Quilos de roupas para sua loja. Sua mulher ficaria feliz com certeza.

O motorista coçou a barba rala conduzindo o veículo por mais uma rua deserta. Os postes lançavam seus fachos na via dando um ar fantasmagórico. O som da borracha contra o asfalto era perceptível. Quase uma afronta ao silêncio que governava as ruas.

José não era supersticioso, mas que aquele lugar causava um puta medo, isso causava. Repentinamente sentiu uma vontade louca de voltar à estrada. Por isso tratou logo de procurar o posto aumentando a velocidade dos trinta quilômetros que vinha para cinqüenta. As rodas rolavam pelo asfalto maciamente. Nunca vira um asfalto tão bem cuidado como o daquela cidade. Muito diferente de onde morava onde havia pedaços de asfalto nos buracos.

A caminhonete dobrou uma esquina. Era uma avenida. Larga e ampla de via dupla. Parecia a principal avenida daquela cidade. A avenida que cortava todos os quarteirões até chegar aos limites. Um cruzamento se aproximava. A primeira coisa que José notou foi o semáforo piscando. A luz alaranjada piscava em ritmo indicando que não funcionava. Sabia que aquilo significava que estava tarde. Jamais imaginaria crianças àquela hora nas ruas. Talvez por isso não tenha percebido os dois agachados bem no meio do cruzamento.

Os faróis da caminhonete pareciam dois olhos de um monstro enorme. Vinha a velocidade moderada para exatamente onde se encontrava as crianças. Uma delas ergueu levemente a cabeça do que fazia como se incomodada com a repentina luz. Era um carro, ou caminhão pequeno que vinha pela avenida. Algum menino mais velho teria roubado, era o que pensava. Não se moveu. Muito menos o outro, que com a mão direita concentrava-se em mirar o grupo de bolinhas de gude no triângulo desenhado no asfalto.

A luz piscante do semáforo logo acima os iluminava momentaneamente. A caminhonete aproximava-se veloz, sem jeito de parar. O garoto começou a ficar preocupado. Estava prestes a se levantar e correr quando o som da borracha queimando o asfalto ganhou o ar. Ele viu as luzes dos faróis se balançarem de um lado para o outro na via à medida que a caminhonete rabeava com seu condutor tentando controlá-la. Segundos depois o veículo parou a centímetros deles.

"São crianças". Era tudo que prevalecia na mente daquele homem no momento. Tinha visto duas silhuetas na pista assim que seus faróis potentes iluminaram. O que crianças estariam fazendo ali a uma hora daquelas?

– O que vocês dois fazem aqui? Ficaram malucos? Quase passei por cima de vocês! Onde estão seus pais?! – gritava José, enfurecido fechando a porta da caminhonete atrás de si e dando a volta na frente do veículo. Ainda tinha o receio de encontrar uma das crianças com o braço debaixo da roda dianteira, mas sabia que era apenas sua imaginação. Tinha conseguido brecar a tempo.

Os dois garotos se levantaram protegendo os olhos dos faróis que permaneciam ligados. José viu que os moleques jogavam bolinhas de gude. Nada de anormal senão fosse quase quatro da madrugada!

– Então, moleques. Onde estão os irresponsáveis dos seus pais?

– Em casa.

José espantou-se com a calma e serenidade naqueles dois. Parecia não ter ideia do apuro que correram. Estavam ali jogando bolinhas de gude bem no meio do cruzamento, quase foram atropelados e agiam como se nada tivesse acontecido.

– Sei, sei... – disse José, coçando a barba – Já vi que os dois fugiram de casa, não é mesmo? Aposto que foram vocês também que picharam a placa...

Um dos garotos saiu do centro dos faróis. Como era pálido! O garoto era de um branco absurdo. Como se nunca tivesse pegado sol na vida. Fora isso, parecia muito saudável. Muito diferente das crianças que via vagabundeando pelas ruas de sua cidade à noite.

– Não, não – prontificou-se o que falara primeiro – Aquilo foi o Estevan e o Tiago. A gente não fez nada.

O caminhoneiro não sabia o que fazer diante da situação. Achara que as crianças iam abrir um berreiro quando ele desse sua bronca. Que fossem implorar para não serem dedurados, porém nada disso acontecera.

Um som peculiar fez-se ouvir na noite.

– O que foi isso? – indagou José, olhando para a direção ao qual viera o som.

Os moleques olharam um para o outro e riram. Divertiam-se por saberem de uma coisa que o caminhoneiro não.

– É só o cão morto-vivo.

– Cão o quê?

– O cão morto-vivo da senhora Tood. Ele morreu, sabe...

José aproximou-se dos garotos e segurou-os pelos braços.

– Escutem, não quero saber de mais nenhuma traquinagem de vocês dois. Agora vão me mostrar onde moram. Tenho umas verdades para falarem para seus pais. Onde já se viu? Deixar dois moleques na rua tarde da noite. E que droga de cidade é essa que não se ver um posto policial ou uma porra de viatura?

Os moleques riam apesar do aperto do caminhoneiro. O homem tagarelava sem parar. Fazia tempo que não viam um adulto. Tinham se esquecido de como podem ser engraçados em situações como aquela. Se ele queria ver seus pais, eles mostrariam.

Os garotos balançaram as cabeças negativamente. O homem deu um suspiro cansado, passou a mão na testa e falou:

– Deixa pra lá. Peguem suas bolinhas. Vou levá-los.

– Não queremos ir pra casa – reclamaram os garotos em uníssono.

José encarou os garotos seriamente mostrando que não estava de brincadeira. Estava com sono, cansado e tudo que queria naquele momento era um lugar para dormir. Levaria aqueles dois para suas casas e procuraria um hotel. Abasteceria a caminhonete no dia seguinte e prosseguiria com a viagem.

– Não discutam comigo. Não posso deixá-los aqui. Seus pais podem ser irresponsáveis, mas eu não. Andem logo.

Os garotos obedeceram de contra gosto. Entraram na caminhonete e sentaram-se apertados na boléia. Nenhum dos dois disse nada. O caminhoneiro deu a partida e então olhou para os dois como se esperasse alguma coisa. Como nenhum fez menção de falar, perguntou:

– E então? Onde moram?

– Logo ali, virando à direita – respondeu o mais velho.

José engatou a primeira e pisou no acelerador colocando o veículo em movimento.

Minutos depois a caminhonete estacionou na frente da casa de um dos garotos.

– É aqui? – perguntou José.

– Uhum.

José olhou para o jardim da casa. Pressentia que algo não estava certo. A porta da frente estava entreaberta dando uma visão da parte de um sofá. Uma claridade mortiça iluminava parcialmente o interior do aposento e sobressaía-se iluminando o caminho de pedras que levava à porta. A janela também se encontrava aberta dando um ar ainda mais estranho a cena.

José saiu da caminhonete. Caminhou até a entrada do jardim e parou. Olhou sobre os ombros, para os garotos no banco do carona parados a observá-lo. Eles sabiam de algo que ele não sabia.

– O que vocês dois andaram aprontando, hein? Não me enganam... – resmungou José, alto o suficiente para que os meninos escutassem. O que logo percebeu que era desnecessário pelo silêncio absurdo que assolava o lugar.

– Que isso, tio – retrucou um deles – Não aprontamos nada. Você não queria conhecer meus pais. Eles estão aí dentro, oras.

José deu de ombros resmungando. Passou pela pequena portinhola de madeira que levava a um caminho de pedras pelo jardim. A cada passo que dava, o pressentimento que algo não estava certo o atiçava. Um cutucar na cabeça. Como se uma força divina o dissesse em silêncio para que desse meia-volta e desse o fora dali. José, contudo, não estava disposto a fazer papel de idiota na frente daqueles dois moleques, pois era justamente o que pensava que os dois queriam. Vê-lo de idiota.

Estava mais próximo agora. A claridade vinda da sala tremeluzia nas pedras do estreito caminho. Tentava se recordar onde vira efeito parecido.

“Não seja estúpido, José... É apenas a claridade da TV”, falava a voz à sua mente. Isso. A claridade da TV. Estava acostumado aquilo. Quando tinha que levantar na madrugada para desligar a TV porque sua filha tinha adormecido enquanto assistia suas séries de terror favoritas. Sua mocinha. Diferente das outras garotas. Chamada de prodígio pelos professores. Estaria agora assistindo suas séries agasalhada no grande sofá da sala? Oh, Deus. Daria tudo para estar em casa e não nesse lugar apavorante. Provavelmente os conhecidos traços coloridos estariam lá, indicando o fim da programação naquela madrugada... “É só a TV, José... Assista à TV”...

José só se deu conta que adentrara o interior da sala quando pisou em algo mole e se desequilibrou. Sobressaltou-se, olhou sobre os ombros. Os garotos continuavam na caminhonete assistindo a tudo. Tinha andado cerca de dez passos sem noção nenhuma. Sentia-se como se despertasse de uma sessão de hipnose.

Um calafrio percorreu sua espinha ao ver em que pisara. Tocou o bicho com o solado da botina e empurrou-o para o canto da sala. O rato fedia carne estragada ao sol. Parecia estar morto ali naquele piso há dias!

José varreu a sala com os olhos rapidamente. Passara pela TV, sim. E sim, as faixas estavam lá com o característico zumbido agudo. Contudo, por alguma curiosa razão naquela noite, José não queria olhar para aquelas faixas. “Por que, José?”

Sentia os olhos das crianças a perfurarem suas costas.

“É só uma olhadinha, José”...

Os corpos no sofá...

“Veja a maravilhosa programação que preparamos especialmente para você”.

Havia algo de errado nos corpos. O que era?

– Viu eles, tio?

Os garotos estavam ali ao seu lado. Não pareciam se importar. A voz em sua mente não calava. Incessante. Sua concentração voltando sempre aos corpos. Há algo errado com os corpos.

“Não há nada errado com os corpos, José. Você está cansado, com sono... Venha, sente-se. Assista... à... TV... José...”.

A mente de José compreendeu o que havia de errado com os corpos dos pais do garoto. No entanto, tarde demais. Ele viu o casal sentado, abraçados, cabeças juntas como se assistissem a um filme de amor. Só que no lugar de sorrisos, viu olhos esbugalhados, bocas escancaradas. Expressões catatônicas. Queria entender, mas seus olhos foram tragados como metais a imãs para à tela da TV. Enorme, colorida e chamativa.

Os garotos viram quando o caminhoneiro tombou para frente caindo de joelhos com aquela mesma cara engraçada dos pais. Fitava a TV. Logo um filete de baba escorreu pelo queixo e pingou no assoalho de madeira.

– Sabe dirigir, Batista? – perguntou o mais novo, vasculhando o bolso da frente da camisa do homem.

– Nem sei, mas a gente descobre.

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 23/01/2012
Reeditado em 09/02/2012
Código do texto: T3457585
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