TERRA MORTA - JUNDIAÍ (SP) - CAPÍTULO I

Queria poder me mover, mas não consigo. Aqui é úmido e a chuva que cai lá fora, deixa o ambiente com cheiro de cova rasa. Luz? No máximo os flashes dos relâmpagos que riscam a escuridão. Tá brabo viver nessas condições. Viver? Faz-me rir! Essa merda de espírito de sobrevivência até que deu conta de me manter em pé por alguns dias, só que dessa vez haja vontade e otimismo para tanto. Caralho! Como dói! O vento frio passa pelo meu prejuízo, e debochado fez questão de lembrar o quão humano ainda sou nesse horizonte de demônios. Onde eu me meti? Porra foram tantos lugares que nem faço idéia. Anos de ensinamentos religiosos, recheados de sermões que eu achava babaquice, para agora no auge dos meus quarenta, finalmente descobrir que o padre tinha razão. O apocalipse chegou e de nada adiantaram as risadas quando aquele velhote de saia abria a boca dizendo que Deus buscaria a nossa expiação. Desde pequeno fazia merda e o máximo que recebi foi um tiro no ombro. Modéstia totalmente a parte, só digo uma coisa para vocês que me escutam. Eu era foda.

Os socões na porta deram um tempo! Agora sim dá pra gravar melhor. Talvez aqueles vermes tenham achado outro trouxa para servir de aperitivo, já que acima do peso, com certeza sou o prato principal. Só me resta três pontos antes deste celular vagabundo apagar. Preciso ser rápido, porque além da pouca bateria também estou com um pé na cova. Um pé na cova... Até parece! Estou é de joelhos e por isso não posso dar mais bobeira. Preciso ser direto, senão jamais farei algo de útil com o que me resta de vida. Honestamente, apesar de estar envolvido em várias tretas, desde o primeiro minuto que peguei esse gravador me faltam palavras. Não tenho a mínima idéia do que dizer para vocês. Sou mais um desinformado de merda! Pouco sei sobre a origem desse pandemônio ou sequer, quais foram os verdadeiros motivos que levaram a um camarada comer o outro. Pelas ruas, uns pregadores dizem que foi experiência do governo, outros tantos afirmam que são demônios, mas tenho minhas dúvidas. A única certeza é: Se Deus decidiu me dar essa oportunidade, não serei eu que vou sacanear a mensagem.

Merda! Meu sangue escorre e o tempo é curto. A vida realmente é mais breve do que parece, então aproveitem o máximo dela. Sejam bons com as pessoas, porque se hoje estou nessa situação, acredito que esteja pagando pelas cagadas que fiz um dia. Alguns devem pensar: - Ih fodeu! Outro cristão pré-cova! Ou até perguntarão: O que esse filho da puta está dizendo? Por acaso as crianças que foram massacradas, também eram todas pecadoras? Olha... Francamente! Estou pouco me lixando sobre a vida das outras pessoas, mas tenho certeza que se hoje estou aqui, é por que eu mereço. Perdão! Pelo amor de deus, o que estou dizendo? Desculpa aí... Deve ser a falta de sangue que que me fez falar merda. Afinal, quem está a fim de ouvir os conselhos de um desgraçado que matava por dinheiro? Eu sei o que vocês querem. Respostas! Ou no mínimo algum depoimento interessante sobre tudo que passei em meio aos devoradores de gente. E querem saber, é isso que vou contar! Foda-se a expiação divina! O moribundo aqui jamais se retratará pelas pessoas que matou então o mínimo que posso fazer é morrer sendo o que sempre fui! A partir de agora vocês vão saber como foi foda sobreviver neste inferno!

Dois pontos! É agora ou nunca! Talvez um dia encontrem o meu celular e espero que escutem bem, porque tá complicado. Por motivo de força maior sou obrigado a falar baixo, mas daqui a pouco vocês ouviram as pancadas na porta e entenderão sobre que estou falando. Para começar... Meu nome é Henrique Sanzio, tenho quarenta e dois anos e neste exato momento acredito que seja o meu último dia de vida. No total, entre serviços e desavenças matei mais de duzentas pessoas sem contar esses últimos dois dias. Um número bom, quem sabe um recorde nacional? Porra... Se contar o apocalipse, até eu já perdi as contas de quantas cabeças tirei. Serio! O clima depois do fim dos homens tornou-se tão tenso, que até garrafa quebrada virou facão na hora do aperto. Acreditem ou não, mas voltamos a ser selvagens.

Antes de essa merda começar fui criado no Rio de Janeiro. Aos doze anos de idade, após perder meus pais num acidente acabei me envolvendo em algumas confusões e fui parar na Instituição Padre Severino. Lá na escola do crime, cometi o meu primeiro assassinato e alguns anos mais tarde vim formar aliança com o atual filho da puta que me deixou em maus lençóis. Nessa época, quando a justiça me pôs na rua pela maioridade, vendi o almoço pra comprar a janta. Sem escola, dinheiro ou família, largado pelas ruas a mercê da própria sorte, descobri o que era a miséria. Fiz de tudo para ganhar a vida! Podem me julgar, mas nesse mundo cão o sujeito é obrigado a lutar pelo pão de cada dia e com isso em mente caí pra dentro de tudo que pintava. Fis de tudo! Cobrei dívidas, extorqui lojistas, tratei com putas e até drogas vendi, só que nada se comparou ao trabalho de matador de aluguel. Pensem bem! A grana era firme e o mercado extenso, e o único e grande segredo era saber como matar sem ser pego. Trinta anos voaram e cá estou! Muito mais gordo e acabado pelo cigarro. Quem diria né? Logo “yo” rodei! Aquele que a profissão jamais acabaria, finalmente papou! Como pode? Era só ter duas pessoas e uma pequena discussão, que com a grana , na bsae da bala eu elegia um vencedor. Dinheiro pago é serviço feito, mas num mundo desses, infestado de criaturas sem vida notei que não passo de outro babaca. Eu que já me vi no topo da cadeia alimentar, percebi o quanto me enganei! Depois do pé de meia que fiz, a única certeza que tirei do dinheiro é que não me faltaria papel higiênico, uma vez que vivendo sobre a aridez de um solo contaminado pela morte, o maior valor existente são os alimentos.

Que saudade dela! Minha cromada cuspidora de fogo, além de fiel companheira, infelizmente hoje não pode me ajudar. A cretina está munida apenas de uma bala e largada ao chão, assiste a minha vida esvair-se num caminho tortuoso até a porta. Após encarar a morte por décadas, sem um pingo de esperança aguardo o momento de cumprimentá-la e me juntar às feras. O mundo é realmente uma caixinha fudida de surpresas! Por que logo eu? Porque fui burro, é óbvio! Depois de calejado dei mole, como recompensa ganhei um balaço na barriga! Líder de cu é rola. Vagabundo do cacete, isso sim! O verme, sem amizade alguma me deixou sentando esperando pela morte a cinco metros de distância.

Um conselho para você que quem sabe um dia ouvirá essa gravação! Não pense que sou exagerado ou um mal amado qualquer. Sério, pode parecer amargura, mas sou realista. Veja bem. O que me separa do inferno é uma corrente enferrujada presa a porta do banheiro de empregada! Há tantos anos fugindo da polícia e outros matadores, quem diria que eu seria pego logo pelos mortos? Não dá pra aceitar, ainda mais, quando pelas brechas percebo que independente da moral que conquistei caçando vidas, estou há um elo do fim mais ridículo. Talvez seja só aqui no interior, ao menos é o que espero. Porque se for ao país inteiro, não vale à pena nem respirar. Isso aqui virou um espetáculo para os carnívoros e através da mesma fenda que via o futuro, também enxergava os dedos dos famintos em meio a gemidos de dor.

A parede azulejada é fria, mas me mantendo aquecido com o sangue que escorria, luto para ganhar algumas horas. Sangue esse, que faz questão de sair até pelo ladrão, formando uma poça sobre os meus sapatos. Duas tossidas fundas, a bosta do mesmo sangue escorreu novamente, só que agora pela boca. Algo possuiu meu corpo! Tento me livrar, quando combalido sinto meus olhos virarem e uma ardência sobre-humana consumir a pele! Era só o que faltava! Deus do céu, o senhor só pode ser sacanagem! Quando a gente pensa que a coisa não pode piorar, entrando de sola vem à sede. As tremedeiras cessam, mas cadê a porra da água? É lógico! Não poderia estar em lugar melhor. Estão aqui! Próximas do meu alcance, repousando bem ao pé da porta. Bem vindo ao clube dos fudidos!

Na boa, não posso morrer assim. O que as pessoas que matei vão dizer? “Porra, que merda! Fui assassinado por esse bosta, que morreu devorado dentro do banheiro de empregada!” Mas como me livrar dessa? É brabo parceiro! Há dois passos encaro a pistola embaixo da janela e para me desolar tenho consciência que só existia uma bala da agulha. Se fosse um pente inteiro, mesmo estando na merda eu faria miséria. Bolsa de sangue de cu é rola! Era só arrumar munição que eu derrubaria esses gatos pingados. Porra! Seria molezinha... Pena que não é a realidade. Quem sabe não é um gesto de misericórdia do pai eterno? Afinal, o que eu poderia fazer com uma só bala? Deus poderia estar a fim de me humilhar, só que a cada queda de dia, durante a noite me levanto mais forte! Poderia ser devorado no dente, entretanto nem na pior das situações eu daria cabo de mim mesmo! Isso é o que os fracos escolhem e se tem uma coisa nesse mundo que eu não conheço, é a fraqueza. Jamais vou estourar a cabeça! Tenho uma reputação a zelar. Reputação? Puta que pariu... A quem estou enganando? Depois do apocalipse não existe mais nada disso...

Gruídos estranhos, mais tapões na porta e o rádio da sala é ligado! Distante, escuto a voz do meu cunhado, que abusando de certo desespero pergunta por mim! Vocês conseguem ouvi-lo? Creio que não... O som é baixinho e daqui ele jamais me escutará. Quem ligou o rádio?Será que ainda raciocinam? Porra nenhuma! Os berros aumentam. Dá pra notar que eles sentem o cheiro do meu sangue e por isso enlouquecem! Os marginais que bebiam champanhe como água, por de trás dessa porta não passam de animais podres! Outra seqüência de socos é dada, ouço mais reboliço e por gritos! Que merda está acontecendo? O barulho de alguém caindo, e sem tardar o sangue escorre por baixo da porta! Será de algum sobrevivente mal informado, ou até depois de morto o homem continua se matando? Quem sou eu pra saber! Bestas do apocalipse? Juízo final? Alienígenas? Demônios? Que se fodam todos. Tá na cara que não sou o escolhido. Imagine só! Logo eu, o escolhido pelo senhor! Cacete, não to bem mesmo, e é melhor cair na real. Com tanto galão na pista, Deus nem se lembraria de mim. Sem minhas vítimas, sou apenas mais um cretino com o papel coadjuvante, entre as milhares de histórias que se apagaram com essa desgraça sem explicação.

Esfomeados, eles forçam a porta... Nossa senhora! Dá pra ver que a dor não existe! Os malditos quebram os próprios membros para... Grande merda! Dei pra ser fresco agora? Estou perdendo sangue ou os meus culhões? Não, eles estão aqui e posso senti-los. Boas ferramentas, que um dia já fizeram um bom trabalho, e atualmente não passam de dois pesos dentro de um saco murcho. Essa foi boa, mas porque estou falando isso? Devo estar enlouquecendo de vez e é tudo culpa desse rombo que aquele viadinho me fez na barriga. A temperatura cai e para piorar o débito, nem comecei a contar o que aconteceu comigo. É melhor eu me focar nesta última missão.

No fundo eu sei que dei mole demais. Tava na cara que eu ia rodar quando a gente tirou a sorte no palitinho. No helicóptero, apenas cabiam três pessoas além do piloto e ao todo éramos cinco, A decisão de tirar na sorte foi o que pareceu mais apropriada no momento, no entanto mesmo após ganhar na sorte, enquanto eu virei às costas pra pegar meu fuzil, num disparo covarde eles me abateram! Um estrondo ecoou pela mansão, em seguida senti a fagulha atravessar meu tórax. Tentei manter-me em pé, só que o peso forçou meus joelhos para o chão. Foi uma merda! Caí de olho aberto e vi tudo embaralhado. Pensei que morreria por ali, mas o Jorge, o cara que tirou o palito menor, era um bom sujeito e apesar de ter ficado para trás, me arrastou pelos pés até aqui. Não posso reclamar, para quem não me deve nada, ele fez além do que deveria para me proteger. Ao menos é disso que me lembro. Pensando bem... Isso Por que o imbecíl não me deixou morrer? Aquele bosta poderia ter me poupado do trabalho de tentar a sorte contra essas bestas! Minha vida virou uma grande merda... Isso sim! Corro pra caralho atrás de respostas e apenas vejo meu sangue escorrer pelo ralo.

A quem estou enganando? No armário sob a pia sei que existe gaze, soro fisiológico e pó secante. Quem sabe até um antibiótico. Mas e daí? Na verdade tenho tudo que preciso para estancar o sangramento, contudo está na cara que é perda de tempo. Seria um esforço em vão. Sequer consigo me levantar, imagine fazer um curativo e encará-los no braço. Não dá... Nessa velocidade sou mais fácil de comer do que puta em despedida de solteiro. Pareço um mongolóide brincando de amarelinha e nas outras duas vezes que tentei, somei dois tombos na conta. Vamos lá Pai, só mais uma mãozinha? Pelo visto o senhor só tem a mim mesmo, então é comigo que tem que ser! Sabe... É na escuridão que sinto seu poder. Talvez eu esteja arregando e isso não me trará nada em troca. Quer saber? Vou parar de drama e lutar mais um pouco!

( Texto participante da Antologia Terra Morta, Original Tiago Toy)

(CONTINUA...)

Vittório Torry
Enviado por Vittório Torry em 30/01/2012
Reeditado em 17/04/2012
Código do texto: T3470522
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