Vocação

O chamado vibrou em meus ouvidos sem alarde. Não foi estrondoso e ensurdecedor como a ira de um Deus, como a ira de Zeus, com relâmpagos e trovões, e sim, como o canto melodioso da sereia que hipnotiza incautos pescadores. Lento, envolvente e devastador, sem que se perceba já está nas profundezas, sendo devorado por elas e observado cinicamente por Poseidon. Não tem volta. Não teve volta. Degustei os primeiros sabores dessa vocação quando ainda era criança. Foi depois que arranquei um pedaço do braço de uma prima chata, e senti um prazer inefável. O gosto de sangue na minha boca e a cara de dor que ela fazia aliado ao cheiro inebriante de medo que exalava de seu corpo, quando avancei com a boca escancarada para mais uma dentada, foram inesquecíveis. Eu não tinha nem três anos, e me lembro desse momento com detalhes extraordinários. Quando adolescente, aos doze anos, cheguei ao orgasmo depois de uma “pedrada” que acertei no olho de um colega. Estávamos, inocentemente, guerreando com estilingues, usando como munição mamonas. Eu, nada inocente, troquei a mamona por uma bolinha de gude, mirei e atirei. O urro de dor dele foi espetacular, o sangue caiu como água de cachoeira caudalosa em tempos de cheia, eu fiquei imóvel de prazer, ereto, absolutamente rígido, e quando vi sua dolorosa e desesperada expressão de pânico, não aguentei e ejaculei, ali mesmo, por baixo das calças curtas que eu ainda vestia, sem nenhum toque, somente com a deslumbrante visão do horror. Depois do gozo sucederam-se alguns agradáveis espasmos musculares que me entorpeceram. O garoto não morreu, nem cego ficou, a bolinha acertou apenas seu supercílio. Na hora da estilingada era tanto menino e tantas baleadeiras, que ninguém soube da onde veio o tiro. Saí impune. Minha cara de querubim me absolveu. Seis anos depois, aos dezoito, renasci. Morri para a pequenez da vida que levava e encontrei o real sentido da minha existência. Eu caminhava em direção ao ponto de ônibus, eram seis e trinta da manhã e eu estava atrasado para a aula de Fisiologia. Vi o ônibus vindo adiante e corri, ao meu lado também correu uma senhora, de aproximadamente cinquenta anos, ela passou por mim alvoroçada na ânsia de não perder o coletivo e atravessou a rua sem olhar, para chegar ao ponto do outro lado, infelizmente, para ela, e felizmente, para mim, ela tropeçou no salto de seus sapatos e caiu no chão, quando tentava se levantar, praguejando sua sorte, um caminhão caçamba que vinha em alta velocidade a atropelou. Isso aconteceu bem na minha frente, a pouquíssimos metros, pude ver tudo, os últimos suspiros, o grunhido que saia de dentro dos seus pulmões, o odor azedo de suas entranhas e o fim. O renascedor fim. A morte na minha frente. Entrei em êxtase, e dali em diante eu sabia exatamente o que queria fazer da minha vida. Minha vocação, o chamado, me arrebatou por inteiro. Eu queria matar, eu queria tirar a evanescente vida das pessoas e mandá-las ao desconhecido infinito. Eu estava ensandecido e emocionado. Chorei. Um choro profundo que lavou minha alma. Nunca mais chorei em toda minha vida. Antes daquele dia eu só tinha pequenos vislumbres do meu dom, da minha dádiva divina. Após aquele dia tomei plena consciência de minha missão. Eu tinha o poder transformador, eu transformaria vida em morte. Não obstante a descoberta e o encantamento daquele dia sublime, minha primeira vítima fatal, morta por minhas mãos, só aconteceu sete anos depois. Eu já estava formado em medicina, formei-me com louvor, primeiro da turma. E estava fazendo residência em clínica médica. A presa foi um colega de bebedeiras, que me acompanhava em farras pelos bares e puteiros da cidade. Ele era um arremedo de homem, um pulha, um verme. Não aguentava mais suas lamuriações sobre como a vida era difícil pra ele. A vida nunca foi difícil pra mim, a vida não poderia ser difícil pra ele. Ele, sim, é que era fraco e covarde e sua morte não seria sentida. No dia da minha despedida da residência, com a passagem comprada para voltar a minha cidade, eu o matei. Aluguei um quarto numa espelunca no centro da cidade frequentado por putas e drogados e o chamei para uma última farra antes de partir, dizendo que vinha outras pessoas e também garotas de programa. Pedi que ele chegasse cedo para ajudar na arrumação do lugar. Ele aceitou na hora. Ele era muito solícito e prestativo, como só os imbecis medíocres são. Na hora marcada ele chegou. Entrou e não desconfiou de uma lona negra que estava estendida por todo o piso da sala indo quase até o teto, cobrindo as quatro paredes do cômodo. O decrépito apartamento era uma quitinete, com sala, banheiro e uma minúscula cozinha mobiliada com fogão e geladeira, pedi para que tirassem a cama, deixando a sala vazia e espaçosa. O som ligado, no chão da sala, tocava rock. Fui até o banheiro e tirei de dentro de minha mala um grande facão, que foi caprichosamente afiado, por mim, para esse dia. Voltei para a sala com o facão na mão. Quando ele me viu segurando a imensa peixeira e de luvas calçadas, não entendeu. Fiquei olhando pra ele fixamente, então sua fisionomia mudou, compreendeu que ia morrer. Dizem que os bichos sabem quando vão morrer, ele soube, suas faces transpareciam o medo. Ah, o medo e seu delicioso perfume. Decepei seu braço direito, o sangue jorrou, ele berrou como um bezerro, a música tocava alta, no máximo, “... six, six, six, the number of the beast...” ninguém o ouviria. Decepei seu braço esquerdo, mais sangue inundou o matadouro. Seus olhos eram delirantes, ele pulava de um lado para o outro feito um cabrito e os cotocos que sobraram dos seus braços balançavam esguichando sangue por todos os lados, ele se jogava na porta do apartamento na tentativa de fugir, como dizem por aí, a esperança, é mesmo, a última que morre. Partiu em minha direção, esperei que ele chegasse bem perto e só então cravei o facão em sua gigante barriga cheia de merda, enfiei, girei a faca lá dentro e puxei, seus bofes caíram no chão, seguido do baque surdo de seu corpo. Com ele no chão e ainda respirando, rachei sua cabeça como quem abre um coco verde, três pancadas fortes e seguras no meio do cocoruto e seu crânio partiu, coloquei meus dedos entre a fenda que se formou e abri puxando uma parte pra cada lado, seu cérebro ficou a mostra. Pude ver seus pensamentos, vi suas pusilânimes idéias. Seu cérebro parecia murcho, murcho como uma uva passa, mesmo assim eu o mordi. Comi metade de seu hemisfério direito em quatro bocadas, a consistência era tenra, parecia um pêssego maduro, e a polpa de sua massa encefálica escorreu pela minha boca. Nunca senti prazer igual àquele. Quando terminei, me senti límpido, purificado, beatificado, eu estava, enfim, metamorfoseado num anjo, um anjo da morte. Não tinha pecados, expurguei-o todos. Recolhi seus pedaços e dividi em três sacolas feitas com a lona negra que estava no chão, saí do hotel pela porta dos fundos e fui para o carro alugado no nome dele. Espalhei suas insignificantes partes em várias lixeiras do Mercado Municipal. Fui embora, nunca mais retornei aquela cidade. Isso faz trinta anos, de lá pra cá já matei mais 15 pessoas. Não sou um assassino comum, estereotipado, como um serial killer de folhetim barato, eu sou, como Hades, um Deus. Não faço distinção de quem vou encaminhar para o além, não tenho preferências de sexo, cor, credo, classe social, intelecto, ou opção sexual, mato qualquer um. Nunca deixo pistas, ou bilhetes, ou recados. Não tenho uma marca, mato de todas as formas possíveis. Não quero ficar famoso por isso, já sou conhecido e rico como médico. Não permito que nada macule minha honrada vida. Não sou um doente, não sou um psicopata, sou especial, fui escolhido. A diferença entre eu e vocês, reles humanos comuns, é abissal. Sou bem casado, tenho filhos bonitos e saudáveis. Meu nome? Nunca saberão! Sei que existem outros como eu, e estamos por aí, entre vocês. Então, tenham muito cuidado.