Lucy - Insanidade

Como sempre nunca nos lembramos do começo dos nossos sonhos. Apenas me lembro de estar no meio de uma briga com um cara. Eu rolava e rolava no chão com ele sem um motivo aparente. Mas em um momento em especial ele me pediu para parar de batê-lo, pois tínhamos uma coisa em comum. Ele me disse que nós tínhamos um elo. Foi quando ele se chocou comigo pela última vez que recebi o que era meu. Um pequeno bichinho de pelúcia azul e redondo. Eu sei que eu sentia uma grande afeição por esse boneco, pois eu já o tinha visto em um outro sonho. Mas, no entanto, quando prestei atenção no boneco mais uma vez ele estava se transformando. Em questões de segundos se transformou em uma boneca de mais ou menos um metro de altura. Ela tinha os cabelos pretos lisos e longos com fitinhas azuis amarradas. Vestia um vestidinho rosa e usava meias coladas nas coxas. O rosto era todo perfeitinho, parecendo uma humana de verdade. No começo eu pensei que era apenas uma boneca comum, mas então ela começou a falar algumas coisas dependendo da situação em que nos encontrávamos. A primeira coisa que ela me perguntou era o meu nome. Depois que eu lhe disse, perguntei o nome dela. Ela me respondeu que era Lucy. Tudo bem, até aí eu achei que era apenas palavras gravadas na memória da boneca. Respostas gravadas para perguntas óbvias.

Peguei a boneca, coloquei-a de cavalinho em minhas costas – sim, ela possuía uma mobilidade humana incrível – e fui embora para casa.

No caminho, ela ia me perguntando coisas. Diversas coisas. Como, por exemplo, por que as casas aparentavam estar tão longe enquanto não nos aproximávamos dela.

Expliquei a ela que parecia como o efeito Doppler. Como ele afetava o som da sirene de uma ambulância, por exemplo. Quando a ambulância se aproximava frontalmente o som tinha maior intensidade e quando se afastava o som ficava mais fraco. Ela meneou a cabeça em consentimento como se realmente estivesse compreendendo o que eu estava dizendo.

– Me fala uma coisa – comecei – Você possui uma memória limitada?

– Limitada? Como assim?

– Não sei – pensei – Às vezes acho que você tem uma inteligência artificial, pois definitivamente você não se parece com uma boneca. Você responde a tudo que lhe pergunto de acordo com a ocasião. O que mais você faz?

Ela ficou em silêncio por um momento. Passávamos por uma ponte surreal. Em alguns pontos estava completamente alagado de modo que eu tinha que afundar meu corpo até o peito para atravessar. Nesses momentos Lucy pedia-me para deixá-la molhar os cabelos. Ela afundava a cabeça e levantava como uma criança brincando em uma piscina. Havia uma ponte secundária do nosso lado, sobre ela, corria um rio como se fosse a coisa mais natural do mundo. Do outro lado uma floresta de desenho animado se estendia até onde a vista alcançava com pássaros e trenzinhos sobrevoando-a.

– Posso fazer sexo oral em você também, se você quiser – respondeu-me ela subitamente.

Fiquei pasmo e... envergonhadamente ansioso. Não respondi de imediato. Foi nesse instante que comecei a desconfiar da boneca. E se ela fosse assassina? A possibilidade era muito grande. Tive um vislumbre de uma cena em que a boneca chupava meu P... e de repente o mordia e arrancava fora. Contudo, a boneca era tão meiga e doce que achei improvável que ela fizesse isso. Entretanto, ela não era humana. Ou pelo menos eu pensava que não fosse. Uma mulher real não faria isso, mas e uma boneca?

Os dias se passaram e para todo lugar que eu ia levava a boneca comigo. Estranho, não? Mas não era, porque havia outras pessoas que também tinham uma boneca. Na festa do escritório em que eu trabalhava não deixei de levá-la comigo. Ela me seguia para onde quer que eu fosse. E nossas conversas eram bem naturais. Agora que estou pensando bem sobre o sonho, percebo que ela possuía uma personalidade de uma mulher no corpo de uma boneca, pois achei que ela demonstrou-me um sinal de ciúmes em certo instante.

– O que aquela moça faz? – perguntou ela, apontando para Fátima.

– Ela é a secretária daqui.

– Você é amigo dela?

– Nã... Não bem amigo. Apenas colega.

Depois que respondi isso. Ela apenas murmurou em consentimento. Mas não sei por que, achei que ela estivesse tramando uma morte bem lenta e dolorosa para Fátima. Talvez fosse a paranóia da possibilidade dela ser uma boneca assassina.

Dias se passaram. Eu não os via passar, mas sabia que passavam.

Um dia desses, eu estava sentado em uma calçada de uma rua desconhecida quando chegou um garoto todo cortado.

– Caraca, cara! O que foi isso?! – perguntei para ele.

– Minha boneca – falou ele, arfando – Me atacou.

Eu não queria, mas olhei imediatamente para onde Lucy estava sentada. Ela olhou para mim e sorriu como se estivesse alheia ao garoto na minha frente coberto de escoriações.

– Como isso aconteceu?

– Ela tinha duas cabeças...

Percebi que apesar de seus olhos me encararem se voltavam para Lucy frequentemente. Diretamente para o topo da cabeça dela

– Tinha dois olhos por baixo dos cabelos – prosseguiu ele – Eles que comandavam a boneca. E...

– Por que está olhando para minha boneca? Ela não faria isso. Não é mesmo, Lucy?

Ela se levantou com seu corpinho diminuto e abraçou minhas pernas.

– Nunca faria isso.

– Eu acredito em você.

O garoto olhou para mim e de volta para Lucy com um esgar.

– Tome cuidado. Quando menos esperar ela te atacará pelas costas.

Depois daquele dia, a pulga atrás da minha orelha coçava mais do que nunca. Então coloquei Lucy sentada em meu colo e tratei logo de verificar se o que o garoto dissera era verdade.

– Quero ver uma coisa, tudo bem?

– Não precisa mentir para mim – falou ela, mas sem raiva – Eu sei que você quer descobrir se sou perigosa ou não.

– Bem, é. Quero sim.

Não era a primeira vez que Lucy me passava a impressão de poder ler mentes. Queria perguntar isso também, mas por hora estava mais curioso sobre o que o garoto dissera.

Levantei as madeixas de cabelo dela e procurei alguma coisa. Olhos, por exemplo. O simples fato de imaginar dois olhos se abrindo e me encarando me provocou calafrios. Não os achei, mas achei outra coisa. Um botão. Ele estava posicionado na posição off. O que aconteceria se eu o movesse para on?

– Tem um botão aqui, pequena. Você sabia dele?

– Não.

– Posso movê-lo?

Ela parecia pensar. Ia formular a pergunta novamente quando ela disse:

– Algo me diz que se você mudá-lo de posição mudará minha configuração. Isso pode fazer com que apague minha memória. E isso incluiria apagar a lembrança de você de minha mente. Ou talvez algo pior.

– Como assim algo pior? – indaguei, preocupado – Me matar? Foi pra isso que vocês foram feitas, não é mesmo? Para matar as pessoas?

E com a imagem daquela fábrica sinistra de brinquedos na minha mente não podia supor que nada de bom saísse dali.

– Acho que sim. Mas alguma coisa aconteceu comigo. Talvez alguém tenha descoberto esse botão e o tenha mudado. Por isso sou do jeito que sou. Não vou feri-lo. Confie em mim, tá?

– Tudo bem – eu disse, beijando-lhe a cabeça.

De fato, minha boneca Lucy jamais me feriu. No entanto, uma semana depois da festa no escritório, a nossa secretária Fátima desapareceu. A polícia investigou por meses e ninguém sabia do paradeiro de minha colega. Tampouco os habitantes de Insanidade se preocupavam. Pessoas desapareciam tanto quanto o sol nascia.

Em uma bela manhã, enquanto tomava meu café com Lucy sentada à mesa me observando, soltei a pergunta que vinha me atormentando há dias:

– Lucy, você se lembra da secretária que viu na festa naquele dia?

Ela continuou a me olhar com aqueles olhos meigos verdes-esmeralda e respondeu da forma mais serena possível.

– Obviamente que me lembro, amor. Lembro-me dos rostos de todas as pessoas que vi desde que ganhei vida naquela fábrica.

Engoli um naco de pão, tomei um gole e falei:

– Sei,... acho que você não gostou muito dela à primeira vista. Percebi isso, ou estou enganado?

Por um momento o único som na cozinha era o da TV sintonizada em um canal barato de notícias e o meu mastigar. Lucy escorregou da cadeira e seus sapatinhos fizeram um ruído no piso. Um segundo depois sua cabeça estava repousada sobre meu colo. Levei minha mão aos seus cabelos negros e sedosos e os acariciei. Estranhamente, pareciam mais curtos. Como se Lucy tivesse ela própria tentado cortá-lo.

– Pode me contar tudo, você sabe disso, não sabe? – indaguei.

Ela levantou a cabeça para me encarar. Sua pele plástica tinha um tom rosado humanamente familiar. Os lábios vermelhos eu podia jurar que estavam úmidos.

– Sei disso, amor.

Agarrei-a pelas axilas e coloquei-a no meu colo. Ouvi uma música infantil familiar e pela janela da sala vi o caminhão do sorvete passando com dezenas de crianças o perseguindo. Pobres crianças, muitas morriam antes de sequer alcançarem o caminhão. Outras não eram mais vistas. Eram tremendamente estúpidas de segui-lo mesmo depois que seus amigos não voltavam.

Um lampejo de compreensão inundou minha mente como uma pia é inundada por água.

– Você a matou, Lucy?

– Por que me faz perguntas as quais já sabe a resposta?

Foi tudo que ela disse. E o assunto morreu ali.

Um mês depois enfim o corpo de Fátima foi encontrado as beiras de um riacho. Estava em alto estado de decomposição. Dentro de sua boca óssea, foi encontrado um considerável tufo de cabelos negros. Em volta do pescoço putrefato, uma fitinha azul.

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 03/03/2012
Reeditado em 11/05/2012
Código do texto: T3533086
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