Mors Tua, Post-Vita Mea

13 de Maio de 1889,

Caro Irmão,

Consegui o trabalho que eu tanto lhe falei nas cartas anteriores, aquele de mordomo na casa do Conde. Quando estiver lendo esta carta já terei me transferido para lá (um dos privilégios que os empregados do Conde adquirem é o de morar na mansão). A casa, pelo que eu pude constatar, é um pouco velha, mas muito bem cuidada. Amanhã mesmo receberei a minha lista de obrigações e afazeres. Espero ansiosamente conseguir juntar o dinheiro necessário para poder trazer-te para morar aqui comigo e, quem sabe, trabalhar na casa como jardineiro.Mês que vem lhe mando novas notícias. Morro de saudades.

De seu irmão,

Lucas.

29 de Maio de 1889,

Caro Irmão,

Espero que esta venha a lhe encontrar em bom estado, pois esta noite tive uma péssima impressão em relação à sua saúde. E não é só isso que me preocupa, por isso o motivo para que eu lhe escreva antes do tempo previsto.

Começarei por contar-te as minhas tarefas, as quais achei algumas um tanto quanto insólitas.

O dia começa normal, devo pegar a bandeja com o café-da--manhã, normal, você diria, e realmente seria, se não fosse o caso de que o café é servido para duas pessoas. Normal, dirias outra vez, mas o estranho é que aqui vivem somente os empregados e o Conde, o qual é viúvo já há alguns anos.

Continuando, depois vem a supervisão da limpeza da casa. Porém, existe um quarto, o único que não possuo as chaves, que somente o Conde pode limpar. E me foi expressamente ordenado que não o interrompesse quando estivesse ali dentro, aconteça o que acontecer. À hora do almoço, as ordens são sempre de montar a mesa para uma refeição à dois, mesmo se ele almoça sozinho, ou é o que suponho, visto que até o momento em que se termina de servir as travessas com a comida não aparece ninguém mais. E as mesmas disposições foram dadas em relação ao jantar.

Às vezes, tenho a impressão de estar junto a um louco, mas não compete a mim julgá-lo.

Espero não estar te alarmando com estas minhas preocupações, talvez trate-se somente de uma minha banal impressão.

Estou com muita saudade de ti, meu querido irmão, e não vejo a hora de nos reencontrarmos.

De seu irmão,

Lucas.

1° de junho de 1889,

Caro Irmão,

Começo a temer pela minha segurança nesta casa, pois, ontem, ocorreu um fato que me deixou bastante apavorado. Já deveriam ser quase meia-noite, quando ouvi um barulho na biblioteca. Como mordomo, era minha obrigação descer até lá para conferir se haviam motivos para acionar a polícia local. Desci, um pouco premuroso, e de punho da pistola que me foi dada para usar nestes casos. Quando fui abrir a porta, ouvi um grito, um grito de horror, como se alguém estivesse sendo desmembrado ali dentro. Derrepente, a casa foi invadida por um vento fortíssimo, que chegou a me empurrar para longe da porta e a me derrubar no chão. Quando estava me levantando, senti algo frio envolvendo meu pescoço e apertar. Meu fôlego começou a faltar e então eu desmaiei. Acordei às três da madrugada com outro grito, este vindo do quarto do Conde. Note que os fatos que lhe relatarei agora, por mais incríveis que pareçam, não se trata de uma minha ilusão. Estou certo do que vi, não sou louco; ou, pelo menos, não ainda. Quando cheguei ao quarto, vi uma mulher em pé, defronte ao leito do Conde. Quando a vi, meu sangue gelou nas veias, pois o rosto estava todo desfigurado, parecia decomposto. Ela usava roupas brancas, porém, rotas e sujas de terra. Não sei de onde me veio forças, mas, naquele momento, gritei para que se afastasse. O ser à minha frente me olhou, com ódio que lhe faíscava pelos olhos, perguntando-me quem eu era para lhe dar ordens. Começou a caminhar em minha direção, com os braços estendidos, para me estrangular. Neste momento, comecei a rezar. Rezei com tanta intensidade, que o ser soltou outro grito, igual ao que ouvi na biblioteca, e desapareceu.

Repito, querido irmão, que não se tratou de uma ilusão nem de um pesadelo, pois, logo após o desaparecimento daquele ser, o Conde, chorando, me abraçou e pediu que não o abandonasse aquela noite. Ficamos juntos, no quarto, acordados, até que o sol nasceu e os outros empregados acordaram para começar a exercer suas obrigações. Devido ao fato ocorrido na noite anterior, o Conde liberou-me para repousar durante o dia de hoje.

Não sei se conseguirei dormir, após o terror que senti ontem e ainda sinto agora. Reze por mim, meu adorado irmão, reze pela minha segurança.

De seu irmão,

Lucas.

27 de junho de 1889,

Caro Irmão

Esta talvez possa ser minha última carta a ti endereçada, senão, a última carta que escrevo nesta vida.

Ontem, após uma série de acontecimentos absurdos decorridos durante o mês, resolvi entrar em contato com o padre da cidade, que aceitou o convite para visitar a casa. Tudo isso, claro, sem que o Conde viesse a saber, pois aproveitarei a sua ausência nesta casa durante os dias que se seguem para levar avante os meus planos.

Ah, se eu soubesse a quais consequências este meu ato portaria, não haveria jamais chamado o pobre sacerdote para bendizer esta maldita casa. Que momentos de terror inominável passamos.

Quando o padre chegou, foi como se a presença que infesta este lugar sentisse que queriamos nos livrar dela. As janelas da casa começaram a bater violentamente, enquanto ecoavam gritos por toda a casa. Gritos horríveis, os quais desejo nunca mais escutar na minha existência.

O padre percebeu o medo da criatura, aproveitando para começar os rituais de purificação ali mesmo, no hall de entrada.

À medida que íamos avançando em direção ao interior da casa, a intensidade dos gritos iam aumentando, até o momento em que nos deparamos defronte à porta trancada do quarto proibido. Como sabia que o padre iria querer bendizer também aquele cômodo, me procurei uma cópia das chaves, sem que o Conde percebesse, claro.

Abri a porta, e o cheiro que me invadiu as narinas ainda me trazem náuseas, mesmo agora. Meu Deus, como me arrependo de ter entrado lá. E mais ainda, me arrependo por ter levado o sacerdote para as garras da criatura. Ao entrarmos, a escuridão que dominava a sala pareceu se intensificar. Não conseguíamos enxergar o chão que pisávamos. De repente, a porta atrás de nós fechou-se em um estrondo ensurdecedor e uma vela acendeu-se em cima de um móvel. Meus olhos demoraram um pouco a se acostumar à escuridão, mas antes nunca ouvessem se acostumado. Quando consegui individuar algo dentro do quarto, vi que o móvel onde estava apoiada a vela era uma mesinha de cabeceira, que iluminava bem a cama, onde, meu Deus, vi a cena mais grotesca de minha vida.

Deitado por sobre a cama havia um esqueleto, vestido com as mesmas roupas que o ser que estava no quarto do Conde. Tive vontade de vômitar, mas fui forte.

Quando o padre começou a bendizer o quarto, um vento forte invadiu todo o cômodo, e uma luz forte consumiu a escuridão. Quando me recuperei, vi o corpo do padre pairando a mais ou menos dois metros do chão e o esqueleto em pé. Onde, outrora, haviam olhos, agora haviam duas chamas que crepitavam, revelando ódio. Foi neste momento que escutei uma voz distorcida, sobrenatural, e vi o maxilar do esqueleto se movendo.

"O que pretendias, mortal?" disse-me o ser à minha frente. Eu não conseguia acreditar no que meus olhos viam. Paralizei-me, com medo. "Por acaso," continuou "pensaste que este insignificável sacerdote poderia me expulsar do lugar que é meu por direito? E tu, quem pensas que é?".

Neste momento, o esqueleto apontou para o corpo do padre flutuando e começou a gargalhar. O padre começou a gritar, e seu corpo, improvisamente, pegou fogo. O esqueleto se voltou para mim e disse: "Pare de me perseguir, ou tu serás o próximo." e começou a rir. Não sei como, mas consegui forças para arrombar a porta e fugir, enquanto escutava os risos daquele ser atrás de mim.

Agora estou aqui, em meu quarto, escrevendo-te e preparando-me para destruir aquele ser. Não sei como, nem mesmo se conseguirei levar a cabo os meus desígnios. Peço a ti que reze, reze por minha alma. Espero ainda reencontrar-te.

De seu irmão,

Lucas.

Ouro Preto, 30 de junho de 1889,

Prezado Sr. Jonas dos Santos,

É com grande pesar que nós o intimamos à comparecer à Delegacia de Polícia de Ouro Preto para o ato de reconhecimento do corpo de vosso irmão, Lucas dos Santos.

Os demais detalhes de seu falecimento serão melhores explicados no momento de vossa chegada.

Grato pela cooperação e sem mais, subscrevo-me.

Dr. Hélio Alves Reis

Delegado de Polícia

Luiz Costa
Enviado por Luiz Costa em 20/01/2007
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