O Viajante - Parte II

"Eu lembro do Bud. Eu amava o Bud. Sempre que eu tacava a bola, o Bud a trazia de volta. Mas papai não gostava do Bud. Por isso o Bud ficava na rua, e eu não deixava papai ver o Bud. Se papai me visse com o Bud, ele ia ficar bravo.

Mas mesmo assim, você deixou seu pai o ver.

Eu... eu estava distraído! E-eu estava correndo olhando para o Bud, e eu não vi o papai!

Mas seu pai o viu. A culpa foi sua.

Eu n-não poderia saber! Se eu soubesse, teria escondido o Bud! Mas nunca vi papai tão bravo...

Ele o pegou.

É, ele pegou o Bud... mas eu não q-quero lembrar disso...

Ele o pegou e a culpa foi sua.

N-não, por favor...

Ele quebrou as patas dele, e a culpa foi sua.

Não...

ELE O MATOU E A CULPA FOI SUA!

NÃO!"

Kurt acordou, suando frio. Misturado com o suor, as lágrimas, que encharcavam todo seu rosto e o colchão da velha cama onde se encontrava. Atordoado, sentou-se na cama e olhou ao redor. O aposento era grande, composto apenas por três móveis: um velho guarda-roupa de mógno, uma penteadeira e a cama, na qual estava sentado. Adentrava pela janela do quarto, uma tímida luminosidade, que o informava que ainda não havia escurecido. Viu então a porta - feita de ferro, esse era o único objeto no quarto que parecia novo - caminhou em sua direção e lá ficou, gritando por ajuda. Gritou também por Paul, mas não houve êxito.

Assim que ficou rouco de tanto gritar, sem obter nenhum sinal como resposta, agachou-se encolhendo os joelhos, como uma criança, e permaneceu calado.

- Talvez eu mereça isso - murmurou, depois de um tempo.

"Você sabe que merece", disse uma vozinha em sua cabeça.

- Não - disse ele, decidido.

Kurt olhou esperançosamente para a janela. Com apenas um golpe ele a quebraria. Como foi burro de não pensar nisso antes! Levantou às pressas, esperançoso de poder dar o fora daquele lugar. Foi em direção a janela, mas parou ao lado da penteadeira, ao olhar seu reflexo no espelho.

O cachorro. Depois de anos, tinha sonhado com o maldito cachorro, e acordou chorando. Mas esse não era um dos motivos pelo qual foi infeliz? Pelo qual fazia aquilo? Agora era capaz de fazê-los infeliz, de fazê-los pagar. Mas da última vez não foi bem assim.

Ela te fez lembrar você, não foi?

"Ela não devia ter chorado. A maldita chorava igual a mim quando criança" - respondeu Kurt para o reflexo.

Mas seu monólogo não durou por muito tempo, pois o que viu o fez pular para trás e cair, após tropeçar nos próprios pés.

Num instante, era seu o reflexo no espelho. Então, de súbito, uma mulher apareceu em seu lugar. Dos olhos, negros até a região das córneas, escorria o sangue que manchava todo seu rosto pálido.

No chão, ainda apavorado com o que tinha visto, Kurt avistou algo que - por alguma razão - não melhorou as condições em que estava. Ao lado da penteadeira, encontrava-se sua mala, entreaberta.

- Não - deixou escapar Kurt - Sozinho aqui com isso, não.

Foi então que ouviu um som, um soluço de mulher vindo do interior da mala de viagem, o que o deixou ainda mais apavorado.