O Viajante - Parte V

- Não! - Kurt encolheu-se ao canto da cama, as mãos nos ouvidos. - PARE COM ISSO!

Houve então um estalo abafado, e a porta do guarda-roupa começou a ranger quando quatro dedos brancos se apoiaram em sua fresta, empurrando-a para abrir. Ao ver a cena, Kurt entrou novamente em desespero.

- NÃO! DENOVO NÃO, POR FAVOR! - gritou, correndo para um canto do aposento, na outra extremidade.

Parado ali, com as pernas encolhidas junto ao corpo, Kurt obsvervou o corpo banhado de sangue da mulher escorregar para fora do guarda-roupa, seus negros e possessos olhos em seu rosto distorcido miravam-o com fúria.

- Não posso agüentar isso - murmurou Kurt, fechando os olhos, ainda com as mãos sob os ouvidos - faço qualquer coisa para isso parar, QUALQUER COISA!

***

Sob o andar de cima, o jovem Kurt assistia seu pai espancar sua mãe. Rotina. Ele nunca soube dos motivos. Porém dessa vez as coisas tomaram um rumo diferente. Farta de apanhar, a mulher tenta revidar a agressão do marido, e esse a empurra, fazendo com que caísse e batesse a cabeça na quina ponteaguda da mesinha de centro. O sangue, espalhando-se rapidamente pelo carpete marrom da sala formando uma grande poça negra, fez o homem entrar em desespero.

A morte da mãe. A insanidade do pai. Um orfanato para Kurt.

Uma vida de pecados.

E você que odiava tanto seu pai...

"Todos ao meu redor eram felizes e isso era injusto"

Você só queria o Bud de volta, e ela queria o bebê.

"Oh, os malditos soluços! A mulher... como eu queria que as coisas não tomassem esse rumo"

Tais espectros eram os juízes de um homem morto ao nascer.

***

A mulher arrastou-se trêmula e parou sobre a mala, onde permaneceu imóvel. Olhou então para dentro do recipiente aberto, e soltou um grito ensurdecedor, que desconifgurou ainda mais seu terrível rosto, arrastando-se novamente na direção de Kurt.

Estupefato de horror - seus nervos estavam tão abalados que seus olhos pareciam estar fora das órbitas - Kurt desviou o olhar da maldita criatura, percebendo de relance, algo reluzir embaixo da cama, iluminado pela tímida luz que saía da janela naquela noite mórbida. Um revólver.

Kurt engatinhou até a cama, e agarrou o cabo da arma. Sentiu o toque glacial da mão da mulher tocar seus pés.

Aquele que se culpa e se arrepende de seus atos deve ser perdoado...

Disposto a acabar com aquele pesadelo a qualquer custo, Kurt enfiou o cano do calibre trinta e oito na boca. Engatilhou-o.

... mas não nessa vida.

Disparou.