Despertares

I

A lanchonete era surpreendentemente atraente e bem aparelhada. As chapas começaram a chiar e a lançar fumaça branca de encontro aos exaustores ronronantes, enquanto recebiam cargas de pão com manteiga e sanduíches mistos de presunto e queijo para serem aquecidos. Os sujeitos, do lado de dentro do balcão, corriam de um lado para o outro à medida que escutavam pedidos desordenados berrados por clientes famintos e sedentos. Lauro Dias empertigou-se no banco onde sentava, esticando as pernas adiante. Torceu o tronco para conseguir encarar a traseira do ônibus. Teve certeza de que estava completamente sozinho ali dentro agora, já que a parte da frente se esvaziara muito rápido. Apenas certificava-se que ninguém ficara perdido lá por trás e decidira perder a hora do recreio, assim como ele próprio.

Estava profundamente agradecido por se ver livre da algazarra que um bando de crianças vinha fazendo durante a viagem e que agora se repetia do lado de fora. Não sentia fome, mas a idéia de uma cerveja bem gelada não estaria totalmente descartada, não fosse a falta de coragem de enfrentar a bagunça que faziam aqueles pirralhos enquanto devoravam lanches gordurosos. Ademais, um daqueles garotos poderia resolver despejar um balde de refrigerante na cabeça de alguém e, ainda assim, os pais não o repreenderia. Eram daquele tipo de gente que finge não enxergar o que ocorre à sua volta. Mais ainda quando o que ocorre ao redor diz respeito às traquinagens cometidas pelos filhos impertinentes.

Fitou novamente a traseira do ônibus. Apenas a bagunça deixada pelas pessoas, mas nada de pessoas. A despeito de o ar condicionado ter funcionado bem até aqui, a murrinha que mistura banheiro usado, bagagem cansada e biscoitos amassados tomava de leve o ar. É o odor que prevalece em qualquer ônibus interestadual depois de três horas de viagem. Lauro decidiu que tiraria aqueles quinze minutos para si, ficaria ali dentro e comeria apenas a barra de chocolate que comprara na rodoviária. Daqui a pouco a turba retornaria com o bucho cheio e o sujeito da poltrona ao lado começaria a tagarelar em seu ouvido novamente sem cessar.

Pôs-se de pé e esticou a coluna. A sensação amena de descolar as vértebras uma da outra foi reconfortante e assegurou a certeza de que era possível agüentar outras três horas ali dentro. Trouxe a mochila Adidas, que estava na prateleira acima do banco, e a apoiou sobre o colo, sentando de volta no assento de número vinte. A barra de Hershey não havia derretido no compartimento externo da mochila, manteve-se surpreendentemente sólida e o gosto era doce e agradável. O ar refrigerado realmente funcionava a contento. Deixou um grande pedaço de chocolate dissolver-se dentro da boca lentamente e voltou a fitar o movimento buliçoso na lanchonete do pequeno lugarejo. A gritaria chegava até ali dentro amortecida pelos vidros espessos, era quase como um sonho. Aqueles quinze minutos gastos por cada condução para que as pessoas pudessem lanchar e esvaziar as bexigas inchadas deveria ser de grande valor para o comércio no entorno da praça. O tamanho desproporcionado da lanchonete em relação à cidade estava bem ali para provar.

Saboreou cada pedaço de chocolate bem devagar. Quando terminou o último, um comilão entrou de volta no ônibus e tomou seu lugar. Um senhor que poderia bem ter pagado por dois assentos apenas para si, pois pesava tanto quanto dois e, com toda a certeza, devorou mais de um sanduíche enquanto esteve lá fora. A camisa de malha azul mostrava grandes manchas de transpiração que quase se juntavam no meio do peito. “Se ele ficasse mais dois minutos lá fora, aquelas manchas teriam se encontrado”, pensou Lauro.

Do mesmo lugar de onde arrancou a barra de chocolate, Lauro Dias pegou a fotografia que passou a levar sempre consigo. Estavam contentes naquele dia. A praia era quase deserta, com areias extensas que alcançavam um mar muito verde. A despeito da pouca gente, um sujeito vendendo cangas e lenços passou de fronte aos dois com os panos desfraldados imitando bandeiras de encontro ao vento, agarrados aos expositores para não levantarem vôo. Aquelas cores faziam um belo contraste – destacavam-se diante do mar.

- Escolhe um. Vamos, escolha um lenço!

Nádia encarou Lauro com os olhos estrábicos. Não muito, eles eram apenas um pouquinho estrábicos. Mais do qualquer coisa, charmosos. “Endoidou”, foi a resposta que Lauro captou naquele olhar.

- Vamos, seja rápida. Escolha um, o que mais te agradar. O homem está indo embora. – De fato, ele caminhava resoluto, levantando areia farinhenta e muito branca com a sola dos pés. Já ia bem adiante.

- O que é isso, um presente?

- Um presente, por que não?

- Hummm... Muito bem. Adorei a idéia. Chame por ele, quero escolher um que combine com o meu bronzeado – Nádia falou. Parecia realmente iluminada. E não era apenas o sol. Algo mais a iluminava e era um tipo de luz que não vinha de fora. Não era o sol durante o dia, não se tratava de lâmpadas à noite. Ela estava amando.

- Não vou chamar por ele. Quero que escolha um lenço daqui de onde estamos. E aproveite, seja rápida. Quanto mais ele se afastar, mais dúvidas atormentarão sua cabeça! – Lauro agarrou a namorada e suspendeu-a nas costas. Riam como crianças. – Agora você tem uma visão privilegiada. Qual deles?

- Eu não consigo!

- Qual deles?

- Ah, meu Deus! O verde. Eu quero o verde!

Estatelaram-se no chão fofo e a pele agradeceu o contato com o macio da areia.

- Hei, você! Amigo, aqui! – Com a mão direita acenando acima da cabeça e o indicador em riste apontando o céu, Lauro se esforçava para se fazer ouvir. Era a voz dele contra a ação do vento. O mascate ainda prosseguiu uma dezena de passos antes de parar e voltar o corpo. Fitou o casal durante um ou dois segundos para abrir um sorriso logo após. Cobriu a distância que os separavam com passos decididos e saudáveis.

- Olá. Querem ver meu trabalho?

- Minha namorada quer um lenço.

- Tenho uma dúzia de padrões. Estes são pintados a mão. – Num gesto, separou uma quantidade deles para que ficassem mais expostos ao olhar. - Minha mãe. – Ele completou. – Ela é muito habilidosa.

- O verde. Eu quero o verde.

- Uma pessoa decidida. Tem certeza de que não quer escolher com mais calma? Não tenho pressa, a praia não vai sair daqui tão cedo.

- Estou decidida. É o mais bonito de todos. Não acha? – Nádia questionou o ambulante. Pegava o lenço do expositor. Alisava-o com as mãos sentindo a textura.

- É o mais bonito de todos. Boa escolha.

Depois que o vendedor foi embora, Nádia atou o lenço à cabeça e completou o efeito ao colocar os óculos escuros. Ficou de pé ao lado da barraca de praia.

- E então? Foi mesmo uma boa escolha?

- Perfeita. – Lauro se adiantou e apanhou a máquina fotográfica dentro da bolsa da namorada que estava sob o guarda sol. Apoiou-a como pôde acima de um isopor onde mantinham latas de cerveja e água mineral, conferiu o enquadramento e ajustou o temporizador. Correu e se pôs ao lado de Nádia. Estreitou-a com o braço enlaçado na cintura. Acompanharam o zumbido da máquina até que o obturador estalou. Um segundo antes de isso acontecer, a mulher afastou os óculos e fez uma careta em direção a lente. Os olhinhos estrábicos ficaram congelados na imagem, brilhando. Conferiram no visor de LCD. Estavam de fato felizes naquele dia, aquela luz estava lá e emanava de ambos. É possível a qualquer um perceber quando alguém está amando. Até mesmo através de fotos.

Lauro apanhou uma lata de cerveja e gostou do chiado manso que ela fez ao ser aberta. Gostou mais ainda do sabor refrescante e da sensação que ela causou ao aplacar o calor do sol. Sentou na areia e manteve-se ali, bebericando da latinha e observando o corpo lânguido da namorada que havia se estendido sobre uma canga.

E soube que ela ia morrer. Soube que naquele dia, mais tarde, Nádia estaria morta. Foi como se o céu trocasse de lugar com o mar, a cabeça girou como num ataque de labirinto e ele teve que se apoiar de encontro a areia. A lata caiu das mãos e ficou despejando o conteúdo amarelo devagar, gorgolejando o líquido gelado como uma torneira semi aberta.

De onde estava deitada, Nádia tirou os óculos e perguntou por trás de um sorriso – Está tudo bem por aí, uma lata já te deixou bêbado?

- Acho que sim. Está tudo bem. Cochilei por um segundo.

- Isso, aproveite e durma. À noite pretendo te dar muito trabalho. – E Lauro pode enxergar, de alguma maldita maneira impensada, dentro do peito da mulher. Enquanto ela falava, viu as coisas acontecendo lá por dentro e entendeu que algo estava muito errado. Pensou no olhar de raios-X de alguns super-heróis e acreditou que experimentava exatamente aquela sensação. Pode ver as artérias, a linha das costelas, sob a epiderme. O sangue corria veloz e era azulado. Não era exatamente vermelho, mas o que isso importava? Era azulado e corria rápido pelas pequeninas estradas que eram as veias. E aquela coisa quase no centro do peito dela, pulsando estranhamente, bombeando o fluído azulado incansavelmente em sístoles e diástoles, abrindo e fechando válvulas. Imitava uma grande cidade para onde convergem diversas rodovias. E percebeu que um dos músculos trabalhava de forma errática, indecisa, pouco vigorosa. Fazia um laudo cardiológico de Nádia enquanto ela deitava sob o sol com um repentino poder desconhecido e sabia exatamente o que enxergava. Lauro sabia que aquele músculo por baixo do peitoral da namorada não trabalhava corretamente e isto não era de hoje. Vinha da infância, era uma falha de nascença e atingiria o ápice naquela mesma noite. Levaria a namorada a um colapso cardíaco sem salvação, aquela coisa não tinha cura e era inoperável. Nádia estava condenada.

Lauro se voltou em direção ao mar, tentando disfarçar a náusea que lhe tomou o corpo. O mundo ainda girava.

- Hei, você é um sujeito de sorte.

Lauro Dias caiu em si novamente e olhou à esquerda, para o sujeito que voltara a sentar na poltrona ao lado.

- Desculpe, o que disse?

- Tem uma linda namorada. E foi esperto ao decidir não comer nenhum veneno naquele lugar ali. Fazem um péssimo sanduíche.

“À noite pretendo te dar muito trabalho”.

O sujeito fitava a fotografia nas mãos de Lauro. A foto escorregou novamente para o interior da mochila. Lauro Dias tentou mostrar que não havia gostado da intromissão e de seus olhos compridos, mas ele não percebeu.

- Ela não veio? Não a trouxe desta vez?

- Não. Ela não veio.

- Com certeza ela não está de férias, às vezes é realmente difícil conjugar datas para que tudo dê certo. Já aconteceu comigo. Não que eu tenha ficado chateado, foi uma das melhores viagens que já fiz. Surgiu um imprevisto de trabalho e minha esposa foi obrigada a cancelar as próprias férias. Não que isto tenha me aborrecido, se é que compreende.

- Não sei se compreendo. Talvez. – Lauro percebeu que todos já estavam de volta em seus lugares e o motorista havia acabado de religar o motor do ônibus. O sujeito ao lado tinha uma quantidade de farelo espalhado por cima da camisa estampada. Restos mortais do veneno que engoliu lá fora. Chegava-se exageradamente perto de Lauro quando falava, inclinando o corpo como um bêbado. As crianças retomaram a algazarra e os pais continuaram a fingir que aqueles não eram seus filhos.

- Tenho certeza que sim. Claro que o amigo me compreende. Qual o sujeito que não gostaria de um imprevisto no trabalho da esposa durante as próprias férias?

O ônibus parqueou dando marcha à ré, iniciando uma espiral na praça principal, indo na direção da rua que desemboca na BR-244. As casas e árvores transformavam-se, aos poucos, em borrões indistintos, à medida que o ônibus ganhava velocidade e aproximava-se da saída para a auto-estrada.

- Foram sete dias sem nenhum tipo de compromisso e com algumas garotas dispostas a fazer um cara feliz. Hei, tem um chocolate desses aí sobrando? – O sujeito havia visto o invólucro amassado e apertado na mão de Lauro. O ônibus diminuiu a marcha, preparando-se para dobrar e tomar a estrada. Freou até parar. Aguardava o momento certo de encarar o trânsito e fazer parte daquele fluxo interminável.

- Está me ouvindo? Está tudo bem com você?

Num sobressalto, Lauro ficou de pé como um boneco que pula de dentro de uma caixa de surpresas. Um golpe fez a mochila rodopiar e se alojar grudada em suas costas. Largou a bolinha de papel no chão, passou pelo sujeito que estava sentado ao lado e não parava de importunar, e foi ter com o motorista lá na frente.

- Por favor, poderia abrir a porta?

O motorista foi pego de surpresa. Mas aquilo deveria acontecer de vez em quando, pessoas que caíam no sono e quase perdiam o local onde saltar.

- Tem certeza?

- Sim, senhor. Absoluta. Gostaria de ficar aqui.

- Vá em frente, amigo. – Um sopro hidráulico fez a porta abrir mansamente. – Pois bem, vá em frente e boa sorte. – Repetiu o motorista.

Lauro manteve-se de pé no chão de cimento da rua, próximo da esquina da rodovia. Fitava o ônibus ouvindo o zumbido bravio dos automóveis em alta velocidade e, do outro lado, os pássaros sobre os galhos naquela rua de cidade litorânea do interior. O cara chato agora sentava na poltrona do lado da janela, a que era de Lauro. Os dois cruzaram o olhar por um curto período, quando o motorista decidiu que era seguro seguir adiante. Lauro Dias ainda permaneceu ali um tempo, olhando para a estrada, aguardando o ônibus diminuir de tamanho enquanto se afastava. Ajoelhou sobre uma das pernas e tirou fora os tênis e as meias. Quando se pôs de pé novamente, o ônibus já havia desaparecido. Segurava os calçados com a ponta dos dedos, as meias emboladas e guardadas dentro do tênis.

Não foi o sujeito chato. Não foi a bagunça das crianças. Aquele não era o destino que determinara quando comprou a passagem, mas, se fosse perguntado, Lauro Dias não saberia dizer qual o motivo que o fez saltar do ônibus naquela cidade.

II

Caminhou durante dez minutos na rota inversa a que tinha feito o ônibus, até alcançar a praça. A lanchonete estava completamente vazia, agora. Aguardava uma nova porção de turistas que viria com o próximo ônibus. Prosseguiu por mais cinco minutos por uma das ruelas que escolheu. A praia do centro surgiu na ponta da rua. Uma larga faixa de areia afastava a linha do mar das pessoas que andavam pelo calçamento tosco e um cais para embarcações pequenas era visível do lado esquerdo, junto a uma parede de rochas que o mar polia com ondas serenas.

Cruzou a extensão de areia em direção ao pequeno cais, fazendo um traçado oblíquo que o distanciava das poucas pessoas que estavam por ali. Não havia ninguém na praia, tampouco. Foi até o fim do cais. Sentou-se sobre a madeira quente e envelhecida com os pés pendurados para o lado de fora, quase tocando a superfície da água. Pôs os tênis, com as meias em seu interior, apoiados ao lado. Virou a cara em direção ao sol com os olhos cerrados, deixando-se aquecer como um lagarto o faria. O mar sussurrava seus segredos enquanto lambia as rochas do lado esquerdo e passava por baixo do cais, arrastando nos suportes de madeira. Talvez tenha ficado ali durante uma hora. Depois deste tempo, alguém falou por trás de suas costas:

- Posso me juntar ao Senhor?

Lauro olhou por cima do ombro. Não se assustou, apenas imaginou que não gostaria de outro cara aporrinhando o dia. Não respondeu. Olhou adiante tentando divisar o horizonte. O homem desamarrou os cadarços de um sapato preto e os emparelhou ao lado dos tênis de Lauro. Não usava meias. Trazia uma garrafa na mão, mas nada o sugeria bêbado. Acomodou-se a um metro de onde Lauro estava sentado, olhando sempre à frente, também. Usava bermudas jeans e camisa pólo surrada. O queixo ficava oculto por uma barba branca e bem feita.

- É um belo lugar – o velho prosseguiu - não é sempre que vemos uma praia como esta. Elas estão perecendo. Como tudo, acho. – Lauro seguiu calado.

- Não é um local badalado, isto é bom. Mantém afastados os turistas. Pelo menos aquele tipo que ouve música de péssima qualidade em altos brados e vai sujando tudo ao redor, num raio de vinte e cinco metros. Um trago? – Esticou a mão, deixando a garrafa ao alcance de Lauro. Este a pegou e deu um longo trago diretamente do gargalo. Apenas achou que era isso que deveria fazer. Espantou-se ao perceber que se tratava de uma garrafa de Ballantines doze anos. O calor do dia não pedia exatamente por uísque, mas pegou-se novamente surpreso com a sensação agradável que a bebida produziu. Aquele ônibus o deixara estressado.

- Aqui é melhor do que Palmeiras. Acho que fez muito bem em saltar daquele ônibus fedorento.

- Desculpe, como disse?

- Disse que este é um lugar danado de bom e bem melhor do que Palmeiras. Aquilo lá acabou. É apenas sujeira e pessoas de queixo empinado. Fez bem em ficar por aqui.

Lauro franziu o rosto e pela primeira vez encarou o velho por mais de um segundo. Tornou o corpo e mediu aquele senhor de pele salgada e curtida. A impressão que teve foi muito boa, apesar de estranhar o que ele acabara de falar.

- Como sabe que eu estava indo a Palmeiras? Não pretendia ficar por aqui, seguiria com o ônibus até Palmeiras.

- Eu sei.

- Hummm... O que mais sabe? – Lauro estava em dúvida entre o divertimento e a preocupação. As pessoas andam muito desconfiadas e arredias. Lauro não é diferente de ninguém, neste sentido.

- Baía das Velas.

- Como?

- Sei que depois você iria até Baía das Velas. Lá até que é bem bonito. Ainda não está completamente dizimado pela especulação e pela ganância. Faz tempo desde a última vez, mas acho que ainda deve ser um lugar e tanto. Mas aqui é melhor.

Lauro arrancou a passagem de ônibus de dentro do bolso da bermuda como quem duvida e precisa de uma prova convincente. Era uma passagem só de ida entre Palmeiras e Baía das Velas.

- Por acaso nos conhecemos? Ou seria algum amigo comum? Não compreendo de fato como sabe disso.

- Apenas sei. Não sei como sei. Existem coisas que simplesmente sei.

- Obrigado pelo trago, mas não tenho sido boa companhia ultimamente. De qualquer forma, não gosto de pessoas que têm bolas de cristal dentro de casa.

- Espíritos cansados buscam as águas, já pensou nisso? Bastam umas férias para que os estressados e os cansados procurem pela água. O mesmo se dá com os enfermos e com os desesperados. Doce ou salgada. Águas batismais. Olha isso. – Apontou o espelho de água esverdeada com um movimento do queixo. – Já pensou de verdade nesse assunto?

- Acho que não – Lauro disse – mas pensando agora creio que concordo. Águas batismais, não foi o que disse? – Esticou a mão pedindo que o senhor lhe passasse a garrafa. Este não se fez de rogado e estendeu-lhe a mão com grado. Perdeu a vontade de partir.

- Vê lá adiante – o velho inclinou o corpo de lado e esticou o braço na direção das rochas e além delas – consegue enxergar aquela coisinha branca lá?

- Uma casa?

- É. Minha casa. Moro lá.

Uma trilha surgia logo no início da formação rochosa e serpenteava para dentro de uma porção da serra do mar que resistia naquela região. Adiante e quase completamente ocultos pela vegetação, um telhado e paredes brancas que o sustentavam acusavam a presença da casinha do sujeito. Se não fosse advertido Lauro não teria percebido aquilo lá.

- Nada de vizinhos, como pode perceber – o velho prosseguiu – afora sabiás e bem-te-vis. Mas contra estes eu não tenho nada. Pelo contrário. Ajudam-me a despertar de bom humor.

- Não se sente solitário? – Lauro questionava o motivo de ter levado adiante aquele papo. Não foi capaz de achar uma resposta. Talvez aquele cara o fizesse lembrar do avô e de coisas boas que vivera na infância. Talvez algo bem diverso disso e que Lauro não era capaz de captar. Como os goles que dava no gargalo da garrafa de Ballantines doze anos e que não sabia por que o fazia. Apenas fazia e achava que isto era certo.

- Não acredito nisso. Não creio na solidão. Vizinhos não fazem um sujeito ser menos ou mais solitário. Além do mais, não tenho escolha. Preciso ficar só. É algo como uma sina. Pelo menos na maior parte do tempo e dispenso de verdade estas entidades chamadas vizinhos. Não tenho escolha e isto é tudo.

- Hummm... Sou Lauro. – Esticou a mão em direção ao velho, chamando pelo aperto.

- Prazer, meu caro. Muito prazer em conhecê-lo, de verdade.

- Posso saber seu nome?

- Não lembro.

- Tudo bem. Acho que ficamos por aqui, vou procurar um lugar para me instalar e tomar um banho. Água batismal, não é isso? Foi um prazer, senhor sem nome. – Lauro quase levantou. Apanhou o tênis, dobrando o corpo quando o sujeito apenas tocou de leve em seu braço. O toque parecia ionizado. Lauro aguardou.

- Não precisa se indignar, meu caro. A juventude implacável. O inesperado pode assustar e você sabe disso melhor do que muita gente, não é verdade? Por que não te diria meu próprio nome? Vê aquele bar ali? O pessoal de lá me chama de Capitão. Pensam que fui um oficial da Marinha e deixo que seja assim. Às vezes vou lá tomar uns tragos e jogar sinuca e todos ali me tratam por Capitão. Se não se importa, pode me chamar assim. Eu não ligo. Se não te chatear, também. Ou escolha um nome. Tenho cara de quê?

- Ok. Capitão para mim está muito bem. Acho que poderia apostar que realmente o senhor foi um oficial da Marinha. Vou acreditar nisso também. Desculpe mas acho que não tenho estado bem. O que quis dizer quando mencionou o inesperado?

- Somos singulares. Ambos. Eu aprendi a lidar com isso e temo que contigo não seja diferente. Não te caberá escolha, tampouco. Também não comprei ticket para este passeio, mas tenho que fazê-lo e não me refiro a uma viagem de férias. E não me venha perguntar como sei de tudo isso, de novo não. Existem coisas que simplesmente sei. Você conheceu o verdadeiro medo e, depois, a desilusão verdadeira. Posso ver a foto?

“À noite pretendo te dar muito trabalho”. Por um instante Nádia pareceu sussurrar de algum lugar oculto as palavras no ouvido de Lauro. Quase perguntou ao Capitão de que grande porcaria de foto ele falava. Não o fez. Apanhou-a no interior da mochila e, antes de passá-la às mãos do velho, fitou-a à luz clara do sol. Uma vez mais aquilo parecia certo e era tudo. Capitão avaliou o instantâneo durante alguns segundos e depois fitou o horizonte. Cofiou os pelos brancos da barba e então devolveu a fotografia. Lauro a pegou de volta e a escondeu novamente na mochila. Esperava algum tipo de comentário imbecil, mas o velho não era desse tipo de gente. Não era mesmo.

- Ela não sofreu. Não houve dor. Dormia profundamente no momento. Não quero melhorar algo que não é nada bom, é apenas um dado. E verdadeiro.

Lauro não sabia avaliar aquilo que ouvira. Não estava indignado. Sentia-se triste e não esperava aquela conversa maluca. Era quase como uma pessoa que fizesse parte do sonho de uma outra, não agia de acordo com o esperado. Suas reações eram novidade.

- Sei que já sentiu medo verdadeiro na vida, como poucos. Aquele dia foi danado de pavoroso – Capitão apontou a mochila referindo-se à foto. – Foi um desgraçado de dia medonho, mas você está aqui, inteiro. Não há nada que se possa fazer quanto a isso Existe um caminho duro. Mais longo do que se possa imaginar. Estou aqui quase como um anfitrião, um sujeito que espera um amigo para a festa. Esta é minha responsabilidade hoje e será a sua um dia.

- Suponho que devo ficar calado - Lauro disse. – Não faço a mínima idéia do que esteja falando e não tenho nada a falar sobre o assunto. Pelo jeito sabe da minha perda. Conhece as circunstâncias muito bem. Surpreendente. Surpreendente de fato. E não acredito que esteja brincando comigo. Nem com parafusos a menos. Incrível.

- Ainda não enlouqueci, apesar de achar que já deveria. Conheço o medo também. Sei como ele se parece. Vislumbrei as profundezas do próprio inferno, conheço suas cores. Dei a mão e valsei com criaturas que vivem onde a própria luz foi proibida de alcançar e prossigo são. É uma vitória. Mas é assim que somos.

- Somos?

- Ambos. Eu e você. Existem outros, mas isso não importa agora. Sabe do que falo, não sabe muito, mas um pedaço. Não saltou daquele ônibus fedorento à toa, garoto.

Lauro recordou aquele miserável dia. O poder que possuía terrivelmente revelado. Lembrava do rosto de Nádia sorrindo sob o escuro dos óculos enquanto o coração dela avisava que não prosseguiria viagem, que saltaria no próximo ponto e desistiria de se mover. Quase podia ouvir a lata despejando cerveja gelada na areia, em espasmos ritmados, como um coração saudável. Saudável. Avaliou a possibilidade de se levantar e tomar aquele banho numa pousada aconchegante. Já sofrera bastante.

- Não vai levantar-se agora. Sei que não.

- Meu deus – disse Lauro – Meu santo Deus! – Tomou outro trago. Precisava.

- Será uma maldição? Existem coisas que sei, outras não. Hoje começo a ter medo novamente. Aliás, ele jamais me abandona, sempre ao meu lado, como minha própria sombra. A grande diferença é que ele continua presente, mesmo na ausência da luz. Mas hoje sinto que é um dos dias. O dia. Apenas olhando as linhas que cruzam o céu brilhando em direção ao horizonte eu sou capaz de adivinhar, ou avaliando determinadas mudanças em meu corpo. Será hoje, novamente. Representamos o impossível em pele, carne e osso.

- Devemos ir ao ponto. Não vou me levantar, mas acho que basta de enigmas. Não vejo linha alguma no céu. Não sinto nada em meu corpo além de cansaço e dor nas costas.

- O que mais teme na vida, Lauro?

- O pior já me aconteceu.

- A morte. Sua ou de alguém que você ama, não estou certo? Todos são iguais quando este é o assunto. Garoto, a morte é matéria apavorante e muitos detestam mesmo mencioná-la. Jamais sabem quando ela chegará e muito menos, como. Será sofrida, repentina, suave? E o depois? Existirá o depois? Por isso tantos se agarram em religiões de todo o tipo, como mariscos presos às pedras. Porém, meu caro, existem coisas piores. Eu morro, jovem. Eu morro, você consegue entender isso? E você é um de nós.

- Todos nós morreremos, não é assim? Está doente?

- Não estou doente. Talvez isto fosse uma benção. Não lembro mais meu nome, esta é a mais pura verdade, bem como não sei há quanto tempo vago pela terra. Há muito sem dúvida. Acho que já fui chamado por vários nomes e antes deste já morei em diversos lugares. Apesar de continuar gostando muito daquela casa ali. Um dia vou me mudar novamente, mas sentirei saudade. Apesar desse seu olhar engraçado, sabe que falo a verdade. Estou aqui como um anfitrião – o homem repetiu – e vim esperar um amigo. Não está aqui por nada. Não desistiu de visitar Palmeiras e Baía das Velas à toa.

Capitão parou um instante. Estava eloqüente e o rosto tornara-se rosado. O sol deveria estar contribuindo, mas os modos veementes faziam as veias saltar na testa. Parecia acertar algo dentro da cabeça antes de prosseguir. Lauro mantinha-se quase nocauteado. Não entendia, não gostaria nem queria entender. Em alguma outra circunstância sairia dali, como fez no “ônibus fedorento”, mas não conseguia mover os pés para se levantar. Decidiu que pagaria para ver até onde aquela estrada levaria, não saltaria desse ônibus agora.

- Anoitece tarde no verão – Capitão disse. Talvez às oito horas já esteja tudo completamente escuro por aqui. E nesta noite, morrerei novamente. Sei quando acontece, sei sempre que a coisa está prestes a acontecer. As linhas no céu não mentem e esta sensação em meu corpo também não. Antes de a lua nascer. Estarei em casa e esperarei ela chegar e me tocar com os dedos gelados. Fitar os olhos que nunca piscam, enxergar lá dentro a própria eternidade. Contudo, nada disso é comparável ao que se passa depois. Não sou capaz de recordar tudo, o mergulho no caos, a perda da forma humana. Não é coisa que deveria ter retorno, a morte é apenas uma, não é assim? O tempo da eternidade nos é insuportável. E quanto ao renascer? E quanto aos despertares? A dor da terrível viajem de volta. Mas somos assim e não me pergunte por quê. Eu e você.

Agora Lauro estava certo de que deveria ter ido embora. O sujeito havia perdido os últimos parafusos e aquilo era uma grande e medonha perda de tempo. Negou quando Capitão ofereceu-lhe bebida novamente.

- Sabe que o que me fala é impossível. Uma sandice despropositada e não me interessa nada disso. – Lauro, desta vez, ficou de pé e tinha os tênis na mão. A mochila continuava presa nas costas, como um tanque de mergulho.

- Aquele dia na praia foi possível? E a confirmação daquilo que previu? E aquilo ali, acha aquilo possível? - Capitão apontou para uma lagarta verde escura, com linhas negras que havia sido pisoteada e seu interior estava completamente exposto. Uma gosma preta manchava o cais e uma grande cabeça com milhares de olhos aparecia dependurada. Uma legião de formigas marrons carregava ordenadamente a lagarta para algum formigueiro próximo.

- Acha mesmo que estão neste mesmo mundo, neste mesmo momento? Menos de meio metro de distância e nem sabem que estamos aqui. Outros corpos, outros afetos. Um mundo completamente particular.

Lauro estava paralisado e bastante assustado, agora. Fitava o cais e aquela procissão de formigas que obedeciam a ordens inexistentes de maneira muito organizada. Lembrou de uma história curta de Clarice Lispector, onde a protagonista descobre outra realidade sobre o mundo quando se depara com uma aranha e sua teia. Pensou em Nádia e no coração preguiçoso.

- Desculpe, garoto. Perdoe-me pela eloqüência, pelos modos desmesurados. Preciso ir andando e não queria atormentá-lo. Mas precisava fazer minha parte, este é o meu papel. Sou seu anfitrião. Bem vindo ao mundo irreal e lembre-se de nossa conversa quando a coisa acontecer. Você já conhece o medo e sabe que existem coisas por aí. Não saiu da condução à toa e estou aqui para te provar. Vou pra casa. É lá que tenho que estar esta noite.

Lauro ficou ali enquanto o velho calçava os sapatos e depois se afastava em direção às rochas desaparecendo por alguma trilha invisível àquela distância. A garrafa ficou apoiada sobre o cais e estava pela metade. Aquele era um bom uísque. Um desperdício ficar ali. Adiante, a floresta era densa, verde e úmida.

III

Antes de conseguir uma pousada onde se hospedar, Lauro procurou pela rodoviária. Guardara a garrafa de uísque dentro da mochila, que ficou inchada como um baiacu. Achou que passaria por bêbado ou ficaria com uma aparência tola ao rodar atrás de bilhetes de passagens e hospedaria com uma mochila agarrada às costas e uma garrafa de Ballantines na mão. A rodoviária era pequena e não cheirava a urina como as maiores. O funcionário que entregou o bilhete que Lauro pediu, uma passagem de volta para casa no dia seguinte, parecia um sujeito satisfeito. A vida em cidades menores ainda sorri, mesmo em dias absolutamente comuns. Entretanto, Lauro não queria continuar ali. Era um balneário tranqüilo, de águas extensas e tépidas, boa alimentação. Mas também era o lugar onde não gostaria mais de permanecer. Preferia subir no próximo transporte e sair dali, torcia para que o dia seguinte passasse rápido e que ele esquecesse a infeliz idéia da viagem, a conversa apalermada com o Capitão que jamais foi marinheiro e tudo o mais que acontecera com ele nos últimos meses. Deitado na cama pouco familiar da pousada sem conseguir pregar o olho durante toda a noite, fitando o bilhete numa das mãos e a garrafa de uísque pela metade sobre uma mesa de cabeceira, era nisso que Lauro pensava. Preferia sair dali.

VI

O ônibus estava partindo. No horário certo. Lauro Dias não estava lá dentro e sabia que jamais estaria. Tinha certeza que não embarcaria para casa novamente e que a realidade que vivera até então não fazia mais sentido.

De pé, encarava o mar sem enxergá-lo muito bem. A faixa de areia era longa e não havia iluminação pública suficiente. Sabia que o cais persistia obedientemente no mesmo lugar, no canto esquerdo junto às pedras. O marulho das ondas chegava amplificado até os ouvidos do homem, além de muitos outros ruídos de diversos outros locais, alguns a quilômetros de distância. Juras de amor em uma cidade vizinha, pequenos animas no meio da floresta roçando a terra com o bucho, um motor empurrando uma embarcação adiante em alto mar. Os frisos no céu imitavam meridianos destacados em mapas, faiscando. Cortavam o céu em gomos e terminavam em algum lugar próximo ao horizonte. Sabia que era o único a conseguir enxergar estas coisas e escutar outras. Ou um dentre poucos.

Caminhou até a porta da birosca onde Capitão bebia cana e jogava sinuca algumas vezes e manteve-se sob o umbral, enquanto observava a próxima tacada na velha mesa cansada. Quatro sujeitos revezavam suas habilidades ao redor dela. Por trás do balcão, o dono perguntou:

- Bebe algo?

Lauro Dias soube, apenas fitando-o, que aquele era um homem casado, a esposa estava seriamente doente, reumatismo. Dois filhos homens. Um deles envolvido em coisas das quais o pai não gostaria de saber.

- Sente-se bem, garoto? – O medo transtornava a aparência de Lauro. Estava pálido como um boneco de cera. “Existem coisas que simplesmente sei”. – Quase pôde escutar o velho sussurrando de novo.

Não respondeu, deu às costas e foi para o cais. Cruzou a areia arrastando os pés e sentou-se no mesmo lugar, com as pernas oscilando sobre o mar escuro.

Recordou aquela manhã, quando decidiu devolver a garrafa ao Capitão. Após fechar a conta na pousada, foi direto à casa do velho. Não seria nenhuma tarefa complicada chegar até lá. A trilha era mal traçada e o mato teimava em retomar seu lugar, mas era o único caminho. Alcançá-la não foi difícil, definitivamente. Ninguém atendera a porta, nem ouvira os chamados. Nenhuma pessoa viera ter com Lauro, mesmo depois da salva de palmas. Não havia ninguém ali dentro ou, se houvesse, estava no banho ou dormindo. Ou morto. Mortos não caminham para atender a porta, não é? Não se movem, não pensam. O coração deles não bate e eles têm a pele fria como a de um sapo. E eles não retornam. Não nascem de novo, não voltam um milhão de vezes. Vão para aquele lugar chamado paraíso se tiverem levado uma vida decente antes de morrer ou para o inferno se não se comportarem bem. E ficam por lá. Pelo menos era assim.

Ignoraram os chamados de Lauro, não atenderam a porta. Mas Lauro Dias resolveu entrar e checar. Afinal a porta estava somente encostada. Espichando o olhar era possível enxergar a sala e mais além. No momento que colocou os pés dentro da casa simpática, sentiu que algo estava errado, pela primeira vez desde aquele dia na praia. Como um sopro no ouvido, o homem escutou um suspiro e sabia que não vinha do interior da casa. Era o hóspede do quarto ao lado do dele na pousada que acabara de despertar num bocejo sonolento. Mas a pousada estava a mais de um quilômetro dali e Lauro nunca havia visto o sujeito. Mas sabia que era isso. Pela janela da sala da casa de Capitão vislumbrou uma fatia de céu. Lá estavam as estranhas linhas pela primeira vez. Brilhando apavorantemente.

Capitão estava deitado na única cama do único quarto. Morto como uma múmia. Sem pressão, nada de batimento cardíaco. A cor verde-azulada característica dos defuntos tomando todo o lábio e as bochechas outrora rosadas. Um odor enjoado começava a tomar o quarto devagar. Estava quente lá fora e o calor aumentava rápido na parte de dentro da casa. Jazia ali há pelo menos oito horas. Talvez um pouco mais. Lauro teve certeza de que “eles eram assim”. Ambos. Podem existir mais como eles, com a mesma sina, mas pelo menos dois Lauro Dias sabe que existem. “Lembre-se de nossa conversa quando a coisa acontecer”. Lauro sabia que recordaria e seria em breve. As linhas no céu. Coisas indizíveis acontecendo com o próprio corpo. Chegaria a hora de ele bailar com as criaturas estranhas, fitar o inferno com os próprios olhos. “Eu morro, jovem. Eu morro, você consegue entender isso? E você é um de nós”.

Mas isso tudo foi pela manhã, na hora em que Lauro decidiu que não tomaria mais o ônibus de volta para casa. Agora ele sentava no cais com as pernas indolentemente balançando na noite quente de verão. Escutou passos no madeiramento do cais que vinham em sua direção. Não olhou pra trás. Continuou fitando adiante. Pegou a garrafa de uísque do interior da mochila e deu um longo trago, enquanto atrás dele os passos cessaram e o sujeito se aconchegou a um metro de onde sentava Lauro. Este esticou a garrafa com a mão, oferecendo-a. O sujeito pegou a garrafa de scotch e imitou Lauro, apenas o gole foi um tanto maior. Ambos olhavam sempre adiante.

- Vou encontrá-la? Ela estará lá quando eu chegar?

- Talvez. É difícil dizer.

O momento estava chegando. A morte. A primeira da vida de Lauro.

- Gostaria muito de poder falar algumas coisas para ela que nunca conseguiram sair de minha garganta. Dizer a ela o quanto a amo. Fazê-la entender, se é que é possível.

Deu outro gole no gargalo. O uísque aquecia o vazio do estômago.

- Muitas coisas ficarão mais claras. Outras podem se confundir. Mas isso ela já sabe, acredite. Ela sabe. Ela conhece o tamanho do seu amor. Tem coisas que simplesmente sei.

As faixas no céu faiscaram como nunca, eram como rodovias iluminadas por néon gasoso. E Lauro sabia que em breve tudo se tornaria escuro.

Marcelo Santoro
Enviado por Marcelo Santoro em 30/01/2007
Código do texto: T363840