Lembranças do Apocalipse
 
 
- João, me deu uma vontade louca de comer aquele pudim da mamãe – disse eu só para provocar.
- Ai, ai Vanessa, você está sendo muito cruel – disse ele.
- Brincadeirinha meu amor – e comecei a rir – eu só queria saber se você me ama o suficiente para encarar mamãe.
- Ora minha linda, eu te amo tanto, você sabe disso, e amo muito também essa criaturinha aí dentro de você - disse ele beijando minha barriga logo em seguida – meu futuro ponta esquerda.
- Ou minha futura bailarina.
Ficamos os dois sentados ali na cama e, apesar do cansaço, nos divertíamos imaginando o futuro de nosso primeiro filho que crescia devagar dentro de mim, ainda faltava muito para seu nascimento, estava somente no primeiro mês de gestação, mas nossa vida já havia se transformado muito, e para melhor. Nada poderia atrapalhá-la.
- Bem amor, espero que já não tenha mais nenhum desejo impossível, o papai aqui não está aguentando mais de sono.
- Tudo bem amor, prometo não desejar mais nada, pelo menos até a meia-noite – e lancei-lhe um olhar zombeteiro – durma bem.
- Durma bem.
Nos abraçamos e nos acariciamos, senti que João já começava a pegar no sono, ele tinha o sono pesado, difícil de acordar. Eu também comecei a sentir as pálpebras mais pesadas, fechando-se vagarosamente, mas de repente algo chamou minha atenção, pensei ter visto um vulto saindo pela porta, o incrível era que a porta estava fechada.
- Ei João, acorda – chamei inutilmente pelo meu marido – não adianta, você dorme como um touro.
“Deve ser coisa da minha cabeça”, pensei comigo mesma, mas a curiosidade falou mais alto, me levantei e fui até a porta. Não sentia medo, sabia ser impossível alguém entrar em nosso quarto sem ser visto, provavelmente era apenas Charlotte, nossa cadela da raça labrador que dera um jeito de entrar e se esconder embaixo da cama.
Abri a porta, e lá estava Charlotte, deitada em cima do sofá da sala.
- Ah menina, era você né – mas ela também dormia tão ou mais profundamente que João.
Já ia me virando quando vi algo que fez meu coração quase sair pela boca, no canto da sala havia um homem, um homem tão diferente que sua visão me paralisou. Ele era alto, forte e belo, seu olhar era indecifrável e apontava diretamente para mim, era impressão minha ou aqueles olhos brilhavam? Na verdade todo o corpo do homem parecia emanar certa luminescência.
Apesar de ser óbvio gritar, eu não gritei. Ao contrário perguntei ao desconhecido:
- Quem é você? O que faz em minha casa?
- Ah Vanessa, sou portador de más notícias, muito sofrimento virá, vocês terão que ser fortes.
- Sofrimento? Como assim?
- Tudo vai começar, vai começar agora Vanessa – e de repente ele brilhou com uma intensidade ainda maior, tão forte que tive que fechar os olhos.
- Ei espere… - tentei gritar.
Mas quando abri os olhos ele havia desaparecido, na verdade quando abri os olhos ainda estava em minha cama ao lado de João.
- Foi um sonho, apenas um sonho – disse eu.
Levei as mãos a minha barriga.
- Foi um sonho, está tudo bem agora.
Mas então ouvi um barulho ao lado da cama, meu coração disparou novamente, mas logo me tranquilizei, era Charlotte.
- O que foi querida? – ela estava inquieta, gania um pouco.
- O que foi Vanessa? – João acordou.
- Nada, acho que Charlotte e eu tivemos o mesmo sonho.
- Ei veja, já amanheceu – disse João – vamos acordar.
Não senti o tempo passar. Já era dia? Peguei o controle remoto e liguei a TV para confirmar, assim que a tela se ascendeu eu e João ficamos mudos.
“Vocês estão vendo imagens de Londres”, dizia uma voz, mas o que víamos não lembrava em nada Londres, só víamos ruínas e pessoas feridas e mortas pelas ruas.
- Mas o que isso? – perguntou João.
“Atenção! Estamos recebendo novas informações de outros países: China, Alemanha, Estados Unidos, Argentina, a lista não para de crescer, várias cidades estão sendo ao que parece atacadas, mas não sabemos por quem ou pelo quê.”
Apertei os braços de João firmemente.
- O que está acontecendo querido?
- Não sei meu amor…
“Esperem, nossa repórter está no centro de nossa cidade agora, alguma coisa está acontecendo, temos imagens ao vivo.” A imagem mudou então, reconheci o centro de nossa cidade, mas estava diferente, cinzento e escuro. Vi várias pessoas correndo e gritando, no centro da imagem uma repórter apontava para alguma coisa, um buraco imenso no solo.
“Eles estão saindo dali, saindo dal…”
- Ai meu Deus, o que é aquilo? – gritei de pavor.
João olhava aturdido, a última coisa que vimos foi a cabeça da repórter ser ao que parece arrancada do corpo e seguida por um jorro de sangue, logo após a câmera caiu no chão e filmou uma grande garra.
“Letícia? Letícia? Você ainda está aí?” Gritava a apresentadora em vão. Mas não ouvimos mais nada, a TV saiu do ar e logo depois se desligou. A energia elétrica havia acabado ou fora cortada.
- João, João, o que esta acontecendo – eu chorava e tremia.
- Eu não sei – respondeu ele.
Ouvimos então gritos e correria na rua seguidos de grunhidos horríveis. Charlotte agitou-se e começou a rosnar.
- É melhor sairmos daqui – disse João – pegue aquela sua mochila de viagem e coloque algumas coisas dentro, só o essencial - disse ele levantando-se.
- Mas para onde vamos?
- Não sei, mas sinto que não devemos ficar aqui.
Rapidamente coloquei uma calça e um par de tênis, juntei alguns alimentos e um pouco de água dentro da mochila. Em um minuto estava pronta.
- Pronto João, podemos ir – mas João estava observando a janela.
- O que você está vendo? – eu podia ouvir os gritos vindo da rua, mas tinha medo de olhar.
- Não veja isso querida, não veja – ele estava tão pálido quando um fantasma.
Mas a curiosidade foi maior, olhei pela janela e imediatamente virei o rosto nos braços de João. O que eu via não poderia ser real, a rua estava infestada de criaturas horríveis, pareciam homens e cães deformados, cheios de garras e dentes afiados e o mais terrível era que eles pulavam sobre as pessoas estraçalhando-as com suas garras e suas pressas. Um mar de sangue e entranhas tomava conta da rua, via as pessoas sendo devoradas vivas.
Apesar da repugnância eu olhei de novo, não podia parar, era inevitável.
- Oh não João, veja! – disse eu enquanto via uma garotinha correr de um ser de quatro patas, mais parecido com um cão dos infernos – ele vai pega-la…
Ele a alcançou, vi sem poder fazer nada a menininha gritar enquanto o monstro lhe arrancava um dos braços e a devorava viva. Logo atrás uma mulher saiu gritando, gritava por sua filha, mas antes que alcançasse duas feras a atacaram e a mutilaram dando-lhe o mesmo destino da garota.
Chorei inutilmente nos braços de João.
- Não podemos ir lá fora, seremos devorados, devorados vivos! – soluçava eu.
Então escutamos gritos no andar de baixo. Eles haviam entrado no prédio!
- Mas também não podemos ficar aqui – disse meu marido – venha, se alcançarmos a garagem teremos alguma chance – mas ele estancou de repente e voltou a olhar a janela, parecia mirar um ponto fixo.
- O que foi? – perguntei.
- Aquele homem, ele estava em meu sonho – apontou ele.
Olhei na direção apontada e lá estava o mesmo homem que vi em meu sonho.
- Impossível, ele estava no meu sonho também, ele disse que…
- … muito sofrimento virá – completou João.
Esquecemos o homem e descemos os três, eu, João e Charlotte, para a garagem, eram só três lances de escada, mas parecia uma eternidade. Ao chegar ao segundo andar a porta de um dos vizinhos estava aberta e coberta de sangue.
- Corra Vanessa! – gritou João.
Mas nesse instante uma criatura saltou sobre nós, mas graças a Deus tínhamos Charlotte, ela atacou o monstro que recuou em um primeiro instante voltando para dentro do apartamento dando tempo de João fechar rapidamente a porta.
- Isso não vai segura-lo, boa menina Charlotte, vamos, vamos.
Corremos o mais que pudemos, ao chegar a garagem ouvimos um estardalhaço, o monstro havia quebrado a porta e vinha atrás de nós.
- Vamos! – gritou novamente João.
Ouvi grunhidos atrás de nós, Charlotte estancou e se virou pronta a atacar, mas o monstro simplesmente não tomou conhecimento e saltou sobre ela pronta a nos atacar. Escutamos então um grande estampido e vimos a criatura cair convulsivamente a nossos pés.
- João, Vanessa, vão para o carro, rápido – era Tiago, nosso vizinho, segurando uma espécie de arma na mão – eles estão em toda parte.
Vimos então que a garagem estava cheia, todos querendo fugir.
Localizamos nosso carro e entramos, Charlotte se acomodou no banco de trás.
A nossa frente dois carros tentavam sair, um deles era de Tiago e sua família.
- Andem gente, andem – João continuava tenso.
O primeiro carro saiu, Tiago era o próximo, mas assim que deixou a garagem algo pulou sobre seu carro arrancando o capô.
- Ai meu Deus não! – gritei.
Vi Tiago e Amanda, sua esposa e minha amiga, serem arrancados de seus lugares e rasgados como folhas de papel por terríveis criaturas aladas com asas de morcego.
- Papai, mamãe – gritavam Bia e Ramon, os dois filhos pequenos do casal.
- Temos que ajudá-los, temos que ajudá-los – gritei desesperada.
- Não saia! – disse João me segurando.
Então vi várias criaturas de quatro patas saltarem sobre o carro, apenas escutei impotente o grito desesperado das crianças enquanto eram devoradas.
- Isso não está acontecendo – chorava eu.
Uma das criaturas olhou para trás e nos descobriu.
- Segure-se querida – falou João enquanto pisava no acelerador, nosso carro colidiu com o de Tiago e o empurrou para fora da garagem.
Uma vez na rua João acelerou ainda mais e pudemos ouvir o gemido horroroso de várias criaturas sendo arrastadas.
- Cuidado! – gritei enquanto João tentava desviar em vão de uma mulher que invadiu a rua correndo e acenando, sentimos apenas o baque de seu corpo em nosso carro, olhei para trás e vi o corpo da mulher jogado e logo sendo atacado por aqueles seres demoníacos.
- Ai meu Deus! – desesperou-se João – o que está acontecendo?
Ele manteve o pé no acelerador. Dezenas de monstros ocupavam as ruas, muitos deles nós atropelávamos, o retrovisor já estava todo estilhaçado. A nossa frente vários carros tentavam fugir também, mas muitos deles eram parados e seus ocupantes cruelmente atacados.
- Para onde vamos João?
- Não sei, não sei…
De repente sentimos um grande impacto. Nosso carro havia batido, batido em um caminhão. Os airbags inflaram, senti minha cabeça girar junto com nosso veículo.
- Vocês estão bem? – gritou um homem do lado de fora.
João olhou para mim, senti sangue descer pelo meu rosto, mas me sentia bem.
- Estamos bem – confirmou ele.
- Então saiam rápido e entrem no caminhão, depressa – ordenou o homem e tinha toda autoridade para isso, ele era militar, era um soldado, havíamos batido em um caminhão do exército.
Saímos rapidamente do carro com a ajuda de outros soldados, enquanto isso ouvíamos uma rajada de tiros.
- São muitos, são muitos – gritavam os soldados.
- Pro caminhão, pro caminhão – gritou alguém.
João me ajudou a subir e colocou Charlotte no caminhão que já estava repleto de civis e soldados.
Um soldado olhou para João e perguntou mostrando-lhe uma arma, uma espécie de pistola:
- Sabe usar isso?
- Sim – respondeu João segurando a arma – já servi o exército.
- Pois acabou de ser reconvocado.
O caminhão partiu. Os soldados continuavam atirando. Eu não podia fazer nada a não ser me juntar a algumas outras pessoas que choravam no interior do veículo.
- Vai ficar tudo bem, eu juro – disse João segurando minha mão.
Mas então a lona que cobria o caminhão foi subitamente arrancada, olhamos para cima e vimos uma infinidade de criaturas aladas, como mil morcegos a enxamear o céu. Alguns mergulharam em vôos rasantes para cima do caminhão. Uma mulher que estava ao meu lado foi subitamente erguida no ar por uma daquelas criaturas, eu vi quando ela a levou cada vez mais alto e vi quando a saltou, meus olhos mesmo não querendo não puderam deixar de acompanhar a queda e o grito de pavor que ela emitia enquanto caia, por fim ela atingiu o chão e seu corpo se despedaçou e logo foi atacado pelas feras.
Os soldados atiravam a esmo, a cada investida das criaturas mais pessoas eram levadas, eu e João tentávamos nos proteger nos abaixando, Charlotte latiu enfurecidamente.
- Isso é um pesadelo – dizia eu baixinho sempre acariciando minha barriga – isso vai passar meu filho.
De repente o caminhão passou por cima de alguma coisa, o baque foi tão forte que alguns soldados caíram tornando-se pressas fáceis para os monstros que nos perseguiam. O motorista não pode manter a direção e colidiu com vários carros na rua até finalmente parar.
- Vanessa venha, vamos, vamos – chamou João quase me arrastando de dentro do caminhão.
Quando desci olhei em volta. Corpos mutilados por toda parte, carros, casas e prédios destruídos, nossa bela cidade havia se transformada numa horrível praça de guerra, mas havia um edifício que ainda permanecia inalterado: a Catedral. E em frente a Catedral um homem gritava:
- Venham meus filhos, venham, estarão salvos na casa do Senhor!
Eu, João, Charlotte, três soldados e dois civis, um homem e uma senhora, corremos na direção daquele chamado tão estranho mas tão cheio de esperança, a nossa volta um círculo de bestas ia se fechando apesar da chuva de balas disparadas pelos fuzis dos militares.
- Estamos quase – disse João, sim, nos íamos conseguir.
Atingimos a escadaria da igreja e um novo e terrível golpe nos atingiu. A terra tremeu, não nos aguentamos de pé e caímos todos no chão.
- Mas que diabos é isso agora? – perguntava-se meu esposo.
As criaturas que até então nos perseguiam afastaram-se todas. Então a rua começou a se abrir em uma enorme fenda, engolindo carros e casas. E pela fenda subiram grandes quantidades de fogo e fumaça, era como se o próprio inferno visitasse a Terra.
- Corram meus filhos, corram – gritava novamente o homem da igreja – as portas do inferno se abriram, o mal dominará o mundo.
Nos levantamos e subimos as escadarias da igreja, a senhora começou a ficar para trás e um dos soldados fez menção de ir ajudá-la, mas estancou no meio do caminho. Todos paramos para observar algo que só pensávamos existir no reino da fantasia.
De dentro da fenda surgiu, grandioso e medonho, um dragão, um grande dragão com duas cabeças de serpente e terríveis olhos vermelhos.
Gritei ao ver a criatura. A senhora olhava para aquele monstro aturdida, ela tentou correr mais uma vez, porém o dragão mostrou toda o seu poder e suas duas cabeças cuspiram fogo. Mais uma vez tentei não contemplar aquela cena, mas era impossível, vi a senhora se incendiar e queimar viva, gritando enquanto era consumida pelas chamas até finalmente parar e sucumbir até se tornar cinzas.
- Entrem, entrem, não esperem – gritou o homem de novo.
Entramos todos e ele fechou as portas.
- Isso não vai dete-los – disse um soldado.
- Vai dete-los por enquanto, é preciso muito poder para entrar na casa de Deus.
Ouvimos grunhidos do lado de fora e sentimos um fedor horrível e repugnante, todos sentiram náuseas e eu não pude aguentar e vomitei no chão.
- O dragão vai tentar arrombar essas portas, mas elas estão abençoadas, seu fogo não as queimará, por enquanto.
- Quem é você? – perguntou João para o homem.
- Meu nome é Octávio, Padre Octávio.
- Um Padre? - perguntou um soldado e se ajoelhou a seus pés – o que está acontecendo aqui padre, o quê é isso tudo? – e começou a chorar como um menino, me enchendo de pena e compaixão.
- Vocês estão presenciando o início das dores meus filhos – disse o padre.
- Você quer dizer que o mundo está acabando? Nunca acreditei nessas histórias – disse o outro homem que veio com a gente.
- Acredite nos seus olhos então homem – falou outro soldado – não viu tudo isso? Tem uma explicação melhor para tudo que está acontecendo lá fora?
O homem ficou mudo, todos nós ficamos. Lá fora ouvíamos gritos e berros, coisas estavam sendo destruídas, pessoas estavam sendo mortas. Não sei quando aos outros, mas eu acreditava no padre: só poderia ser o fim.


Continua...


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Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 16/05/2012
Reeditado em 19/05/2012
Código do texto: T3670621
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