Lembranças do Apocalipse
 Segunda Parte

 
A igreja escura e deserta tremia das paredes ao altar, imagens e quadros de santos caíam e se despedaçavam, a chama das velas acessas tremeluzia fazendo-nos lembrar da grande criatura de fogo que nos sitiava ali dentro. Estava cansada, as imagens horríveis daquela manhã voltavam a minha cabeça o tempo todo e eu não conseguia parar de tremer. Me sentei em um dos bancos da igreja e olhei para um grande crucifixo acima do púlpito.
- Ajude-nos, ajude-nos, por favor – pedia eu sem saber rezar.
- Vanessa – disse João – eu estou ao seu lado, e ficarei até o fim.
Abracei João com força, era bom sentir seus braços me envolvendo. Charlotte também se aproximou, sem ela provavelmente já estaríamos mortos.
- Meus filhos – falou o padre para nosso pequeno grupo de sobreviventes – vocês foram tragos aqui por algum motivo, talvez Deus tenha um grande plano para todos nós.
- Plano? – questionou o homem que estava conosco, o único além de João e eu que também era um civil – parece padre que o único plano de Deus é nos exterminar a todos da pior maneira possível.
- Qual seu nome filho?
- É Ricardo, e não sou seu filho.
- Que seja Ricardo, nós estamos presenciando coisas estranhas, talvez não seja Deus por trás disso, mas ao que parece um poder além de nossa compreensão tomou conta da Terra toda.
O padre parou de falar. Ouvimos a porta da igreja ser forçada com mais ímpeto e todos olhamos para trás.
- Chegou a hora – disse o padre – o poder deles cresceu demais, eles vão entrar.
Segurei firme em João.
- Não fique com medo – ele disse segurando a pistola que o soldado lhe entregou – se é pra morrer, morreremos juntos.
Os soldados se colocaram a nossa frente, se antes senti compaixão agora admirava a coragem daqueles três jovens.
- Meus filhos – disse o padre olhando para eles – vocês agora são soldados a serviço de um poder maior, vamos lutar com esses demônios e teremos nossa recompensa.
Enquanto isso o homem chamado Ricardo começou a tremer.
- Não quero morrer assim, não quero! – gritava ele – se é o demônio que está invadindo a Terra talvez ele aceite um acordo. Sim, todos dizem que o Diabo faz acordos.
- Não meu filho, não se engane – disse o padre Octávio.
- Calado Padre! – disse Ricardo e logo em seguida gritou: - Demônio! Pare! Eu quero segui-lo poupe-me, leve os outros, mas poupe-me!
- Miserável! – gritou João cheio de ódio.
De repente a porta da igreja parou de ser forçada, um grande silêncio se fez.
- Viram? Ele me ouviu, ele me ouviu! – dizia Ricardo.
Depois ouvimos uma voz sinistra e trovejante vinda do lado de fora:
- Ricardo, venha, junte-se as minhas hostes – ela ordenava.
- Não vá filho, não vá – tentava o padre em vão conter Ricardo, mas ele não lhe deu ouvidos e seguiu até a porta.
Observamos apreensivos enquanto aquele tolo se aproximava da grande porta da igreja, ele ia relutante, dava para ver que estava morrendo de medo, mas seu destino já havia sido selado. Quando ele estava se aproximando ouvimos um som diferente, era um zumbido que ia crescendo em volume aos poucos, mas intensamente.
Ricardo parou.
- O que é isso? – ele perguntou.
O som tornou-se ensurdecedor e rapidamente descobrimos sua origem: insetos! Insetos parecidos com moscas, mas muito mais grotescos, invadiram a igreja pela fresta da porta e todos se dirigiam em direção a Ricardo pousando em seu corpo.
- Não, não, eu vim para servi-lo, não faça isso, ai, ai, aiiiiii.... – lamentava ele tentando se livrar dos insetos que lhe devoravam a carne.
- Pobre homem, a ambição o condenou – falou o padre.
Mas logo a nuvem de insetos abandonou o corpo de Ricardo, um monte disforme de sangue e ossos, e veio em nossa direção.
- É o fim – disse eu.
A nuvem se aproximou de nós e quando parecia que iria nos devorar padre Octávio lançou alguma coisa sobre ela.
- Esta é a casa de Deus, desapareçam demônios – gritava ele enquanto jogava água benta no enxame que caia como pó ao chão.
Nossa alegria durou pouco, finalmente as portas foram arrombadas e por elas tínhamos uma visão do próprio inferno: cães demoníacos, monstros deformados, criaturas aladas e grandes dragões dominavam uma paisagem desoladora que eu um dia chamei de lar.
Charlotte estava enraivecida, eu e João fazíamos força para segura-la. As criaturas começaram a entrar na igreja, bem devagar, como se estivessem sentindo dores horríveis, os soldados então aproveitaram:
- Atirem! – seus fuzis explodiram ecoando pelas paredes grossas da igreja, as criaturas não tombavam, mas recuavam frente a chuva de balas.
- Está funcionando, está funcionando! – gritava um dos homens.
O pior ainda viria. Sem o medo das criaturas, um grande ser alado invadiu o templo, era como um cavalo diabólico, montado por um cavaleiro ainda mais diabólico.
 
Os soldados atiravam, mas mais ele se aproximava, sem tomar conhecimento nenhum das cargas que o atingiam.
- Tolos – disse o cavaleiro.
Vimos uma grande lança surgir em suas mãos e com ela ele avançou para nossos três defensores.
O primeiro soldado a ser atingido foi erguido do chão com a lança atravessando todo o seu peito. O segundo soldado tentou de
sesperadamente disparar mais uma rachada contra o cavaleiro maldito, mas este empunhou uma espada e simplesmente o cortou ao meio.
O terceiro soldado olhou seus companheiros mortos, era aquele que havia se ajoelhado aos pés do padre, ele largou sua arma e gritou:
- Vem! Vem seu capeta dos infernos!
O cavaleiro aproximou-se dele devagar e pareceu rir, ele segurou seu pesco
ço com uma das mãos e o ergueu do chão como se ele fosse feito de palha. Emudecida apenas o vi apertar cada vez mais o pescoço do soldado até sua cabeça separar-se do corpo.
Agora restavam apenas eu, João, o padre e Charlotte.
- Pode nos matar a todos – gritou o padre para o cavaleiro – mas minha fé você não vai tirar.
- Não preciso de sua fé, a vitória final será de meu senhor – disse o cavaleiro chegando perto do padre Octávio.
- Afasta-te demônio! – gritou o padre jogando água benta no cavaleiro, mas a agua ao atingi-lo apenas evaporava.
- Junte-se a seu Deus! – gritou o cavaleiro.
Padre Octávio foi alçado no ar por uma força misteriosa, seus braços foram esticados e suas pernas foram cruzadas, ele agora lembrava a imagem de Cristo crucificado e em pouco tempo suas mãos, pés e cabeça começaram a sangrar.
- Aiiiii.... – gritava ele, eu chorava desesperada, não podia aguentar mais.
- Morra! – ordenou o cavaleiro e o corpo do padre esticou-se tanto que explodiu, nos inundando com uma chuva de seus restos mortais.
O demônio virou-se e nos olhou. Seu rosto cadavérico e seus olhos fumegantes eram a pior coisa que já havia visto, a desesperança tomou conta de mim.
- Vai embora! – gritou João atirando, mas como esperado as balas não faziam efeito nenhum.
Foi então que Charlotte conseguiu se soltar e correu sem medo em direção ao cavaleiro.
- Charlotte não – chamei eu.
Mas ela já o havia o alcançado 
e abocanhou uma de suas pernas. Imediatamente minha querida cadela ganiu de dor e se contorceu toda no chão, sua boca queimava e soltava fumaça e em pouco tempo todo o seu corpo exalava vapores como se estivesse sendo cozido de dentro para fora.
- Oh Charlotte, não, não você – chorei segurando João.
Ficamos abraçados enquanto o cavaleiro se aproximava de nós. Quando ele estava bem perto João tentou atingi-lo com um soco, mas ele segurou seu braço e em um movimento brusco o quebrou deixando o osso a most
ra. João gritou de dor.
- João! João! – eu apenas berrava sem poder fazer nada – solte-o seu monstro! Solte-o.
Além de não solta-lo o cavaleiro me agarrou, segurando meus cabelos e me puxando com uma força sobre humana. Ele nos arrastou para fora da igreja, para junto de seu exército bestial.
Eu olhava para João, ele c
horava tanto quando eu, sei que como as minhas lágrimas as dele não eram de dor física, não, nossa dor era saber que perderíamos um ao outro.
Fomos jogados violentamente pelas escadas da igreja e nisso tive parte do cabelo arrancado e João o braço amputado.
- Comam! – disse o cavaleiro jogando o braço de João a seus cães.
Eles avançaram como hienas.
- Agora – disse o demônio olhando para João – terminem com o resto.
João me olhou, me olhou pela úl
tima vez e depois vi seu corpo desaparecer sobre a massa de monstros que o devoravam. Nada mais me restava, mas estava enganada.
- Eu quero o que há dentro de ti – disse o cavaleiro me olhando.
- Não, afaste-se – eu falei me arrastando.
O cavaleiro pisou sobre minhas pernas e senti seu peso imenso esmagar meus
ossos.
- Não lute – ele então mostrou-me suas garras, aproximou-se de mim e num único e doloroso golpe abriu meu ventre.
- Aiiiii... – eu gritava de dor.
Mas a dor maior foi ver o que ele fez em seguida. Ele mergulhou suas garras em minhas entranhas, o sofrimento era insuportável, e arrancou lá de dentro a semente que eu tanto amava. Vi o pequeno ser, tão pequeno quando um grão de feijão entre suas unhas.
- Meu filho... – murmurei.
Mas o demônio sem compaixão alguma jogou aquele pequeno ser no chão e simplesmente o esmagou com seus pés.
- Nãããoooo... seu maldito – eu gritava e chorava sem forças.
Ele nem me deu ouvidos, apenas se afastou. Senti então um de meus braços ser abocanhado e fui erguida no ar, estava presa por uma das cabeças do dragão, em pouco tempo senti minha perna ser abocanhada também pela outra cabeça, mas estava totalmente sem forças, apenas esperei enquanto as duas cabeças esticavam
meu corpo e em pouco tempo senti como ele se rasgava. Minha vida acabava ali.

Continua...


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Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 16/05/2012
Reeditado em 18/05/2012
Código do texto: T3671005
Classificação de conteúdo: seguro
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