O CAMPO DOS ABENÇOADOS - Parte 1

A tempestade havia chegado com muita força naquela noite. Aquele ultimo abrigo era ponto de parada quase que obrigatório para muitos alpinistas que visitavam o Himalaia. O local funcionava como uma especie de pousada com um grande salao onde todos se reuniam e trocavam experiencias que, em alguns casos, poderiam salvar vidas. Ali eles encontravam comida, bebida, um lugar para dormir e a companhia agradável de outros exploradores e alpinistas que vinham de todas as partes do mundo para explorar aquela região isolada do Himalaia.

Naquela noite um grupo de 4 alpinistas chegou ao abrigo. O grupo se preparava para subir uma cordilheira pouco explorada e que embora nao estivesse entre as mais altas, era de dificil acesso e portanto um desafio para os alpinistas. Aquele seria, provavelmente, o ultimo contato do grupo com a civilizacao por algumas semandas. Planejavam subir a cordilheira e mapear a regiao pouco conhecida. Quase nenhum alpinista conhecia aquelas velhas trilhas.

Nobert, Luiz, Joao e Allan eram amigos de longa data. Já haviam escalado outras cordilheiras e agora estavam a procura de desafios maiores. Bebiam e contavam estórias engraçadas sobre mulheres divertindo a todos no abrigo. João era o mais velho e mais experiente em alpinismo embora preso à antigas tecnicas de escalada. Era também prestativo, cordial e o mais engraçado e o elo de uniao da equipe. Norbert era muito inteligente e sempre atualizado em tudo que havia de mais novo em alpinismo. Luiz era um alpinista experiente e que sabia sair de situacoes criticas com habilidade e competencia. Allan era o mais qualificado de todos em termos de alpinismo. Era ele quem fazia todo o planejamento da escalada. Assim eram bem unidos e se divertiam naquela noite fria, antes de partiram para aquela regiao desconhecida.

Foi quando um estranho viajante chegou ao abrigo no meio da noite, abriu a porta e ficou observando a interior do abrigo, com o vento gelado soprando suas costas. Ele aparentava ter por volta de 40 anos de idade, muito abatido e estava vestido com roupas muito antigas, como se fosse de outra época. Seu semblante era de medo, de quem estava horrorizado e parecia nao acreditar que havia chegado a um local habitado por semelhantes. Ele carregava consigo um saco que segurava fortemente, como se sua vida dependesse daquilo. Nao tinha quase nenhum equipamento e seus calçados estavam aos pedaços. Era um farrapo humano. Ficou parado na entrada do abrigo por um tempo, olhando a todos assustado e observado o ambiente, como se quisesse ter certeza de que o local era seguro ou de que os ali presentes nao lhe fariam mal. Todos se puseram a ajuda-lo a entrar e se sentar perto do fogo para se aquecer, ao que o homem agora mais tranquilo, finalmente fechou a porta atras de si e concordou em entrar no abrigo. Lhe trouxeram um ensopado e pao com queijo, e ele comeu com rapidez. Com certeza aquele homem nao se alimentava há dias. Depois ficou sentado perto do fogo por um longo tempo, como que em transe, se deliciando de cada segundo aquecido pelo fogo da lareita. Foi quando o dono do 'estabelecimento' se aproximou e, com muito tato, lhe perguntou, amigavelmente, quem ele era, de onde veio e como tinha conseguido chegar ali no meio daquela tempestade. Entretanto o estranho apenas o olhou com um olhar cansado e nao lhe deu resposta alguma.

O viajante solitário parecia ser europeu, de algum país escandinavo, Noruega ou talvez Suécia, quem poderia saber? Apos se aquecer por um longo tempo, se levantou para sentar-se entao em um banco no canto do grande salão bem próximo à mesa em que estavam os quatro alpinistas e ficou calado. Os homens em volta resolveram deixa-lo em paz. Joao começou a observa-lo cuidadosamente nos minimos detalhes para se certificar de que nao representava nenhuma ameaça. Por fim, com um olhar para Luiz, Allan e Norbert, fez sinal de que estava tudo bem e que o pobre estranho nao era perigo algum. Observou que o homem trajava roupas estranhas e que falava sozinho palavras sem sentido. Norbert e Luiz olhavam calados para o homem que, subitamente, se virou para eles e iniciou uma conversa dizendo que seu nome era Albert , que era canadense, que havia cruzado as cordilheiras mais ao norte com seu grupo mas que era o único sobrevivente. Norbert perguntou se haviam sido pegos por alguma tempestade ou avalanche ao que o estranho respondeu que sim mas que seus amigos não foram mortos pela montanha mas sim pelo que vivia lá. Os 4 amigos se olharam assustados. Em todo o salão, os que estavam mais próximos ficaram em silencio.

Então o estranho disse que teria que prosseguir sua viagem para longe dali ainda naquela noite, temia que o tivessem seguido, apesar de não ter mais ouvido os uivos já há algum tempo. Allan, que era crítico, respondeu que não haviam lobos naquela região e como poderia então o estranho ter ouvido uivos. O Estranho olhou para Allan com bondade e disse que não eram lobos. Allan então olhou para os amigos como se duvidando do estranho que prosseguiu dizendo que não tinha muito tempo mas que não os deixaria sem alertá-los dos perigos daquela região, ao que todos no salão ficaram curiosos, surpresos e se aproximaram para ouvir o estranho. O estranho começou a contar uma macabra história que ficaria para sempre na memória de todos que estavam ali presentes.

O estranho disse que haviam chegado há um mês, vindos pelo outro lado do Himalaia. Disse que seu grupo era também de quatro pessoas e que também tinham experiência em alpinismo de muitos anos. Haviam alcançado o topo de uma cadeia pouco explorada de cordilheiras e estavam voltando para casa quando uma avalanche os surpreendeu. Por sorte encontraram uma fenda na rocha que lhes serviu de proteção o que lhes salvou a vida mas não impediu que um deles, Mike sofresse uma lesão na perna e ficasse bastante debilitado devido à fratura exposta. Ficarem presos por alguns dias ate conseguirem descer novamente porem agora todas as trilhas estavam encobertas e como haviam perdido parte do equipamento tinham somente a bússola para orientar o caminho de volta.

Inciaram então, com grande dificuldade, a longa jornada de volta para casa, passando por uma região que não conheciam e desceram por um dia. Mike sofria com a dor na perna e era puxado pelos amigos que se revezavam em ajudar o amigo. Durante a descida ouviram estranhos uivos naquelas montanhas esquecidas. Não eram lobos, o que então que poderiam ser? Apos seguirem por mais um dia de caminhada encontraram um vale, onde chegaram através de uma estreita passagem, escondida entre duas rochas. O vale era de difícil acesso. Pensaram que talvez fossem os primeiros estrangeiros que estavam ali apos muitos anos.

Um dos amigos do estranho, Albert, o líder do grupo, decidiu olhar mais adiante com seu binóculo e encontrou o que parecia ser uma pequena aldeia com ruínas do que parecia ser uma igreja católica no centro.

Ficaram surpresos por encontrar ali , no meio do nada, uma comunidade católica. Paul, que era o mais jovem do grupo, ficou animado e gritou aos amigos para se apressarem pois poderiam chegar na aldeia enquanto ainda era dia. Mas Mike achou estranho e não teve a mesma opinião e comentou que não havia registro de que o cristianismo tivesse chegado tao longe no oriente e disse que havia ouvido estórias estranhas sobre os habitantes das montanhas isoladas daquela região. Mesmo ferido e precisando de cuidados, Mike recomendou que tivessem cuidado com os nativos da aldeia. O grupo então desceu pela trilha e encontrou uma estranha escultura pagã como se demarcando o território da aldeia.

Prosseguiram por mais meia hora e então chegaram a uma velha aldeia no meio do vale. Perceberam que não havia ninguém nas ruas, nenhuma pessoa na aldeia. Ao se aproximarem não viram uma viva alma. Nenhum sinal de atividade produtiva, nem agricultura, nem criação de gado, nada. Não havia sinal de vida naquele lugar. Observaram que as casas eram bem cuidadas e que haviam ferramentas na varanda de uma das casas. Viram estranhas roupas brancas, estendidas no varal de varias casas. Viram também que as casas tinham as portas manchadas de sangue. Albert achou aquilo muito estranho e perguntou a David o que ele achava ao que David respondeu que também achava tudo aquilo muito estranho. Mike era o mais velho do grupo e estava muito debilitado, mas ainda assim recomendou que saíssem dali imediatamente e fossem embora, continuando a descer. Mas Albert observou que já era tarde e que logo iria anoitecer. Ali poderiam conseguir pelo menos um abrigo aquecido para passarem a noite.

Entraram em uma casa, ao que perceberam que havia fogo na lareira e com isso perceberam que havia gente morando ali. Colocaram Mike em uma cama para descansar e observaram o interior da casa. Foi quando ouviram passos do lado de fora da casa e ao saírem encontraram uma multidão de pessoas vestidas de branco e que olhava para eles com um sorriso macabro nos rostos, revelando dentes afiados como presas. Paul viu um menininho se aproximar e tentou fazer amizade lhe oferecendo um chocolate mas o menino lhe segurou o braço com incrível rapidez e força, mordendo-lhe a mão e tirando um pedaço de carne com pele.

Paul se afastou horrorizado ao que Albert recomendou não tentar mais nenhum contato com aquele povo naquele momento. Foi então que um homem se adiantou no meio da multidão, parecia ser um padre, e apos olhar fixamente para cada um do grupo, levou os olhos aos céus e pareceu agradecer a Deus pelo grupo estar ali. O estranho contou que Albert, ele e Paul tentaram se apresentar e iniciar uma conversa com o estranho padre, falando nos principais dialetos conhecidos naquela região, mas a multidão avançou rapidamente e fortes homens da aldeia os levaram para dentro da casa.

Entranhamente o padre ficou muito satisfeito ao ver Mike se contorcendo de dor na cama com a perna ferida. Em seguida olhou para os outros alpinistas e fez sinal para que não se preocupassem com o amigo. O padre fez sinal para as mulheres que trouxeram diversos artefatos. Começaram então a despir Mike e lhe deram um gole de uma estranha bebida. Em seguida o imobilizaram na cama, amarrando-o com cordas fortes, sem cuidar de seu ferimento mas apenas preocupadas em imobiliza-lo na cama.

Neste momento Albert, mesmo sem entender o idioma local percebeu que havia algo errado com aquelas pessoas e junto com Paul e David tentou afastar as mulheres mas foram impedidos pelos homens da aldeia que os imobilizaram. Os aldeões pareciam ter força sobre-humana e aparência muito primitiva, semelhante a selvagens pré-históricos.

Então, apos serem dominados, os 3 alpinistas perceberam que estavam diante de algo diferente de tudo o que haviam visto. Uma das mulheres trouxe diversos instrumentos antigos e diversas garrafas com bebidas desconhecidas. As mulheres fizeram uma mistura com as bebidas e em seguida ministraram a Mike que já estava quase desacordado. Então, retiraram grandes agulhas com tubos e começaram a enfiar as grossas agulhas em Mike para através de tubos introduzir no corpo de Mike um liquido de cor amarelada ao que Mike gritava desesperado de dor e apresentava espasmos ligeiros como se o corpo reagisse ao estranho liquido. O padre olhou para os 3 alpinistas e falou algo estranho, em uma língua que lembrava o latim, e em seguida ordenou aos homens que os levassem dali.

O estranho contou que Ele e seus amigos foram levados para uma grande sala onde foram obrigados a vestir roupas antigas, todas brancas. Tentaram reagir e lutar para escapar dali mas os homens da aldeia tinha força sobrenatural alem de serem ágeis e rápidos de forma incomum. Então foram deixados na sala e ouviram a porta ser fechada pelo lado de fora. Conversaram entre si e tentaram encontrar uma forma de sair mas as paredes eram solidas e não havia janelas na sala.

Passaram a noite na sala pensando em uma forma de escapar. Ouviam passos do lado de fora e conversar em tom baixo. Albert pensou ter ouvido algumas palavras em latim. Mas não tinha certeza. Nada ali era normal. Igreja católica ali no Himalaia? Aldeões falando latim? Muito estranho. Por volta da madrugada a porta se abriu e viram os homens da aldeia, todos encapuzados e vestidos de branco se aproximaram e os levaram para fora da casa, onde havia uma procissão de aldeões empunhando tochas acesas num ritual macabro que nada parecia as procissões católicas que Albert havia visto em suas passagens por Portugal, Espanha e Itália. Definitivamente, pensou, Deus não estava ali com eles. Todos ali estavam vestidos com a mesma roupa branca e tinham uma aparência assustadora, primitiva, parecendo homens macaco, antepassados do homo sapiens. Todos falavam uma língua desconhecida que misturavam com latim. Os três alpinistas foram amarrados e levados com a multidão. Quando a procissão começou a andar eles virão um caixão sendo carregado pelos aldeões com o padre indo a frente carregando uma estranha cruz.

A procissão segui para um campo atras da aldeia onde haviam diversas rochas. Ali o padre começou o que parecia ser uma missa agradecendo o abençoado que iria ser colocado no campo para benção de todos. Trouxeram o caixão e quando levantaram a tampa puderam ver o corpo de Mike morte com uma cor amarelada. Um a um os aldeões foram passando pelo caixão e tocavam com a mão no corpo. Ao se aproximar Paul viu uma estranha tatuagem na testa de Mike e então tocou a cabeça de Mike como se tentando acordar o amigo. Foi quando viu que o cranio de Mike estava com a consistência de uma geleia. Os ossos haviam sido alterados de tal forma que agora tinham a consistência de uma gelatina.

O padre então iniciou uma oração final, em um língua que parecia com o latim, ao que Albert, que havia estudado latim nos tempos de colégio em Londres, compreendeu perfeitamente. O padre agradeceu os abençoados que foram enviados pelo criador e que trouxeram mais uma benção para a aldeia. Agradeceu pela grande caixa, como se referia ao caixão, que sempre lhes trazia as bençãos da comida, as roupas e sapatos. E em seguida encerrou a oração. Horrorizados, Albert, Paul e David foram levados de volta à sala onde estavam sendo mantidos prisioneiros, mas não antes de verem o corpo do amigo ser esquartejado em pedaços e dividido entre os aldeões como se fosse um bolo.

O estranho contou que ele, Albert e Paul foram levados de volta e presos novamente na sala. Conversaram então entre si como poderiam escapar. Albert entao mostrou um pequeno canivete suiço e explicou que poderia usa-lo para abrir a sólida porta que era trancada pelo lado de fora. Todos concordaram que ficar ali era morte certa. Paul lembrou a Albert que deviam pegar o que sobrara dos equipamentos pois sem isso seria muito dificil a descida daquelas montanhas ao que Albert discordou e disse que o mais importante era fugir dali e que tentar pegar os equipamentos só aumentaria as chances de serem descobertos, acrescentando que estavam sozinhos ali, desarmados e com um povo pagão e que matava e devorava qualquer viajante que caísse em suas mãos, sendo portanto necessário partir dali imediatamente. Entao Albert se aproximou da porta e ficou escutando o movimento do lado de fora e quando se certificou que nao havia ninguem do lado de fora usou o canivete com a perícia de um ladrão para abrir a porta. Os tres alpinistas saíram silenciosamente do cativeiro e seguiram pelo corredor onde nao havia ninguem. Saíram rapidamente e se dirigiram para a sala quando viram uma menina da aldeia, totalmente nua, sendo possuída ali mesmo pelo padre. A menina ao perceber os três alpinistas gritou em alta voz ao que o padre voltou-se a eles falando em latim algo que parecia uma maldição. David e seus amigos partiram dali correndo e sairam na rua principal da aldeia no meio da noite, sendo perseguidos pelo padre que gritava denunciando a fuga do pequeno grupo.

Pouco a pouco, as luzes das casas se acenderam e logo os aldeões começaram a persegui-los grunindo como animais e gritando em voz alta. Os tres alpinistas correram para fora da aldeia mas foram cercados por todos os lados. Ao verem os aldeoes se aproximar Paul gritou aos outros dois amigos para correrem para a Igreja. Ao que ALbert e David o seguiram. Abriram a porta com dificuldade para enfim entrarem na Igreja ou no que sobrou dela. A multidao de aldões parou do lado de fora, como se lhe fosse proibido entrar no local, e ficou gritando enfurecida e agitando tochas acima de suas cabeças. Albert seus amigos perceberam entao que por algum motivo os aldeões nao entravam na igreja e ficaram do lado de fora. Paul entao declarou aliviado que ali estariam seguros por algum tempo.

Dentro da Igreja Albert, Paul e David perceberam que nao era uma igreja comum. Nao havia cruz e nem as imagens dos santos catolicos. Somente os bancos e o altar. Perceberam que a multidao nao os seguiu até a igreja ese perguntaram por que. Decidiram entao examinar o lugar um pouco melhor na esperança de encontrarem alguma coisa que os ajudassem na fuga.

Olhando com cuidado a mobilia perceberam que era uma igreja muito antiga, provavelmente da idade média, e se perguntaram como a Igreja catolica poderia ter vindo parar ali no fim do mundo. Albert seguiu por corredor atras do altar e encontrou duas salas. Uma vazia com alguns panos no chao. Olhou mais atentamente por estava escuro e percebeu que eram roupas, botas e equipamentos de alpinismo. Concluiu que ele e seus amigos nao eram os primeiros a sofrerem naquele lugar. Paul entao afirmou assustado que muita gente havia morrido ali. Nem todos voltaram para casa devido a montanha ou o clima. Aquelas cordilheiras escondiam perigos que ninguem poderia supor que existissem.

Albert examinou a outra sala e descobriu que parecia ter sido o escritorio. Vasculharam as estantes e encontraram registros de nascimento e de obito até a data de 2 Março de 1756. Foi quando Paul achou um registro em latim que parecia ser o diario de um antigo padre da aldeia. Albert falou dizendo que talvez ali encontrassem a resposta para toda aquela monstruosidade.

Continua...

Cronista das Trevas
Enviado por Cronista das Trevas em 13/07/2012
Reeditado em 19/07/2013
Código do texto: T3775114
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