Consciência Morta

Está tão escuro. Tento abrir meus olhos, mas sinto que já estão abertos. Tento me levantar, mas meus braços e pernas estão paralisados. Não consigo movê-los. Deus... não consigo senti-los...

Preciso manter a calma. Preciso arranjar meus pensamentos. Qual é a última coisa de que me lembro?... Amanda... Onde estará Amanda? E quem é Amanda?

Tento gritar seu nome, mas palavra alguma sai de minha boca. E esse som infernal? Que maldito som é esse? Já o ouvi antes, mas onde?

Soa como: Bip... Bip... Bip... Bip...

Oh, Deus... Será que estou na UTI? Se estou, o que me aconteceu? Onde está Amanda? Por que essa pessoa é tão importante para mim? Quero chorar, mas lágrimas não correm por meus olhos. Sequer sei quem eu sou. Estou no escuro, sozinho... Não posso me mover, não posso ver e não posso falar. A única coisa que me faz crer que não estou morto e esse som: Bip... Bip... Bip...

Minutos se passaram. Ou seriam horas? É tão difícil ter noção de tempo quando não se pode ver. Um pensamento horrível passa por minha mente: E seu estou cego? E se fiquei cego?! Calma, preciso me acalmar. Preciso tentar lembrar o que me aconteceu. Onde eu estava, quem sou eu, e quem é Amanda...

Minha cabeça dói com o esforço, porém sinto lapsos de memória voltando. Um carro... Sim! Eu tenho um carro. Disso eu me lembro. Um velho Ford Fiesta 98 barulhento. Como eu poderia esquecê-lo? Há uma mancha no banco traseiro. De que mesmo? Ah, sim. Vômito. Uma maldita mancha que não quis sair de forma alguma. Foi quando Amanda e eu fomos ao parque. Ela girou e girou naquele brinquedo horroroso chamado Kamikaze. Agora me lembro! Amanda é minha namorada.

Nossa... Eu tenho uma namorada. Lembro-me bem dela. Puxa, como ela é linda. Pele morena, cabelos castanhos claros, e arrebatadores olhos verdes. Onde ela estará? Será que está bem?

Sua voz... Estou começando a lembrar de sua voz. Na verdade, dela gritando comigo... “Cuidado, Pedro!”, Pedro... É este o meu nome? Não gosto muito.

Por que a imagem de meu Ford continua voltando. Quero me lembrar de mais alguma coisa e não só desse maldito carro. Argh, meu nariz está coçando. Tento erguer meu braço para coçá-lo, mas surpresa, surpresa! Não posso movê-los. A sensação é... perturbadora. Não sinto meus braços. É como se eles... não existissem mais.

Fiz um bom progresso. Já sei meu nome. Sei que tenho uma namorada – linda – e um carro velho e barulhento. E o que mais? O que está faltando? Ah, sim. Provavelmente estou na UTI. Sigla para: Unidade de Terapia Intensiva. Mas a UTI não é para pacientes em estado gravíssimo? Eu não me sinto tão mal assim. Bem, não posso falar nem enxergar, mas talvez isso seja o efeito de alguma droga forte. Será que estou anestesiado? Isso! Só pode ser isso. Por isso não consigo mover meus braços e pernas. Acho que isso não explicaria minha falta de visão e fala, mas...

Que barulho é esse? Ouço vozes e passos. Aleluia! Estão vindo me medicar. Sei lá, retirarem essa droga de meu sangue ou algo assim...

– O que houve com ele? – pergunta a voz grave de um homem.

– Acidente de carro... – responde secamente outra voz, esta feminina.

Peraí! Acidente de carro? O que houve comigo?

– Meu Deus... – diz a voz do homem – Como alguém nesse estado pode ter sobrevivido?

Ouço um suspiro da mulher. Eles estão ao meu lado. Posso ouvi-los e também sentir um cheiro forte. Aquele cheiro que impregna nas roupas dos médicos e enfermeiros. Meu Deus... Sofri um acidente? Quando?

– Não sei, Carlos... – diz a mulher – Eu preferiria ter morrido...

– Quem mais estava com ele? – pergunta Carlos.

– Uma jovem. Vinte e três anos. Os parentes disseram que era a namorada dele.

Era? Era, por que, sua vaca?! Por que está falando da Amanda no passado? Será que... Não Deus, não permita isso, por favor...

– Teve um sério traumatismo craniano... – conta a mulher – A pobrezinha foi jogada para fora do carro e se chocou contra um poste. Estava sem cinto com certeza...

– É uma pena, Marlene... – lamenta Carlos – Tão jovens...

Estou gritando. Gritando por dentro! Chorando! Meu peito dói! Amanda! Amanda não pode ter morrido... Não pode... Quero chorar. Molhar meu rosto de lágrimas, mas não consigo... Por que não sai lágrimas de meus olhos? O que houve comigo?

– O que houve com os olhos dele? – pergunta Carlos.

Isso, Carlos! Muito obrigado! Diga, sua vaca, o que houve com meus olhos?

Marlene resmunga e ouço seus passos afastando de onde estou deitado.

– Como vou saber, Carlos? Até onde sei, este rapaz dirigia o carro, perdeu o controle e capotou. O carro pegou fogo e explodiu jogando-o a dez metros de distância. Quando as primeiras pessoas chegaram ao local do acidente e viram o corpo, ou o que sobrou dele, do jeito que estava. Pensaram que estava morto e jogaram um pano por cima. Por muita sorte os bombeiros olharam melhor. O rapaz respirava... Dá para acreditar nisso?

– Meu Deus... – murmura Carlos – Como esse garoto vai viver assim, Marlene? Não é... humano. Acho que deveríamos...

– Deveríamos o quê? – pergunta Marlene e vejo que há tensão em sua voz – Deveríamos o quê, Carlos? Matá-lo?

O Carlos fica em silêncio. Sinto um bolo na garganta. Amanda está morta... Lembro-me perfeitamente agora. Estávamos discutindo no carro. Por uma coisa boba e sem sentido. Fiquei muito nervoso com ela. E quando estou nervoso, corro bastante. Ela começou a gritar pedindo que eu parasse o carro. Eu não quis e continuei acelerando. Furei dois sinais vermelhos e ganhei a avenida. Eu estava... inebriado. Os gritos de Amanda, a velocidade, as buzinas quando eu passava a 130 por hora... Eu sorria? Posso jurar que eu sorria. Oh, meu Deus... Eu sorria feito um louco varrido e então a curva...

– Ele pode usar próteses – argumentava Marlene – Cadeira de rodas, não sei... Pode ter uma vida normal.

– Você não está raciocinando direito, Marlene – retruca Carlos – Está querendo bancar a moralmente correta e boazinha, mas acredite que não está certo.

Estariam eles discutindo sobre o que penso que estão? Estão discutindo se devem me matar ou não?

– Ficou maluco?! – pergunta Marlene, sussurrando – Isso é um crime! Iríamos para a cadeia!

– Olha para ele, Marlene! – grita Carlos – O rapaz perdeu os braços e pernas, visão e sabe o lá o que mais. Não podemos deixá-lo assim. Pense como ele irá se sentir quando acordar e descobrir que sua namorada morreu e que está com o corpo... em pedaços.

Não quero ouvir mais. Não posso acreditar nisso. Meus braços, minhas pernas, meus olhos... Não posso falar. O que será de mim? O que será de mim? Um monstro de circo? Vejam os restos de um homem! Não posso viver assim... Não posso viver assim... Me matem, por favor. Mate-me, Carlos...

– Não vou fazer isso, Carlos – retruca Marlene – E acho melhor você esquecer a ideia ou vou denunciá-lo.

– Ninguém irá saber disso, Marlene – argumenta Carlos – Vai ficar entre nós. Não seja hipócrita. Você mesma disse que preferiria ter morrido. Se coloque no lugar dele.

Eles ficam em silêncio. Estaria Marlene ponderando se faria ou não? O som da máquina continua incessantemente: Bip... Bip... Bip...

– Não sei, Carlos... – diz Marlene – Só não parece certo isso. Um assassinato é o que estaríamos cometendo.

– A meu ver, seria uma boa ação – diz Carlos.

Bip... Bip... Bip... Bip... É isso! Uma das coisas que aprendi que julguei inúteis por toda a vida. Código Morse. Aprendi isso há muito tempo atrás enquanto ainda estava no colégio. Usava-o para comunicar com meu amigo, Leandro. Só preciso mover minha cabeça e...

Marlene solta um “Oh” de espanto.

– Ele está acordando, Carlos! Está acordando!

– Ou já estava acordado... Agora é tarde...

Não é tarde. Vocês precisam me compreender. Vamos lá, são formados. Um de vocês tem que conhecer o código...

– O que ele está fazendo? – indaga Marlene.

– Parece... Código Morse...

É Código Morse seu imbecil.

– Consegue entender isso? – pergunta Marlene.

– Não... – responde Carlos.

Essa não! Não! Mate-me, Carlos. É o que eu quero. Mate-me, por favor. Eu não posso viver assim, não quero viver assim...

– Mas conheço quem sabe – diz Carlos – Espere aqui.

Minutos se passam e eu continuo batendo minha cabeça fazendo a cama ranger em uma única palavra: Mate-me.

– Diga o que ele está tentando nos dizer, Patrícia – soa a voz de Carlos.

– Nossa Senhora – soa a voz de uma garota – O que aconteceu com ele?

– Isso não te interessa, Patrícia – diz Marlene rudemente – Apenas diga o que ele está tentando nos dizer...

– Parece que está dizendo... Mate-me... Oh, meu Jesus...

Ouço a Patrícia chorando e correndo para fora da sala.

– Está satisfeita agora, Marlene? – indaga Carlos.

– Faça você então. Juro que ficará entre nós.

Alguns minutos se passam e então sinto a respiração quente de alguém em minha orelha.

– Farei o que me pediu, meu rapaz. Espero que assim encontre a paz.

Antes que ele injete algo em mim, lhe digo uma última coisa em Morse: Obrigado...

"Escrevi este conto há muito tempo atrás. A ideia me veio quando um amigo perguntou do que eu tinha mais medo. Eu disse que nada, então imaginei essa situação. Fiquei tão horrorizado com o conto que não quis publicá-lo, pois me imaginava na situação do personagem Pedro. Perder a pessoa que mais amava e ainda descobrir que se tornara os restos de um homem era assustador demais... Real demais...

O conto está aí, não sei se está bom, mas me causa arrepios até hoje".

Abraços.

Bruno Pereira.

Sr Terror
Enviado por Sr Terror em 05/08/2012
Reeditado em 06/08/2012
Código do texto: T3815056
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