Malditos Cães!

     Ouvi o uivo ao longe e apertei mais forte o cabo do fuzil, não demorou muito e outros uivos se juntaram ao primeiro. Para minha felicidade a matilha estava se agrupando, haviam sentido nosso cheiro e corriam como loucos pelo capim alto. Mas somente eu estava feliz, os três homens que me acompanhavam tremiam de medo.
     - Vamos embora Evaristo! – esperneou Nestor – Vamos embora! Esses bichos não são obra de Deus.
     Virei o rosto e disse a ele com ódio e desprezo:
     - Fuja se quiser Nestor. Eles o alcançarão assim mesmo, e quem quiser acompanhá-lo pode ir!
     Juca e André olharam um para o outro, tremiam como bambus, mas sabiam que se corressem não teriam a menor chance. Eram uns covardes e uns imbecis, eu não pedi para estarem ali, mas já que estavam eram uma boa distração, assim aqueles malditos cães teriam com o que se distrair enquanto eu os liquidava.
     Malditos cães! Ainda me lembro de quando eles entraram na minha casa...
 
     Minha esposa estava na sala com meu filho pequeno. Recordo-me dela dizer alguma coisa sobre o noticiário da TV informar sobre a fuga de alguns cachorros de um laboratório farmacêutico próximo, me recordo também dela dizer que esses cães eram perigosos, tinham problemas de comportamento. Mas eu ignorava o quando tais criaturas eram ameaçadoras.
     Tudo começou de repente. Laika, nossa cadela, ganiu alto no quintal, após isso ouvimos apenas rosnados e latidos grotescos e os gemidos de minha cachorra. Uivos intensos enchiam o ar. Meu bebê começou a chorar. Alguns vizinhos começaram a gritar.
     Nossa porta começou a ser forçada. Era como se garras a arranhassem. Mas era uma porta de madeira maciça, não havia o que temer. Ledo engano. Foi em questão de segundos, uma figura escura e sinistra simplesmente atravessou a janela estilhaçando o vidro e logo estava dentro de minha sala.
     Mal tive tempo de deter aquele cão dos infernos. Ele avançou sobre minha esposa, queria nosso bebê!
     As lembranças são horríveis demais, ainda sinto toda a dor daquele momento. Meu pequeno filho sendo arrancado de sua mãe que gritava desesperada. Peguei uma cadeira e golpeei a fera inutilmente, ela não largava sua presa. E o pior aconteceu, outros dois terrores negros pularam a janela e atacaram minha esposa. Eu desesperado brandia minha única arma, a cadeira, de um lado para o outro tentando afugentá-los, mas o primeiro cachorro conseguiu fugir e levou meu filho com ele.
     O pesadelo não terminava. Mais dois cães entraram. A cadeira era inútil. Senti os dentes caninos penetrarem minha carne, mas meu ódio era tal que anestesiava toda dor. Usava chutes e socos para me libertar e chegar até minha esposa, a essa altura apenas um corpo retalhado e coberto de sangue. Achava que aquela luta estava perdida.
     Foi quando a porta foi arrombada e um homem armado com um fuzil entrou atirando. Eu o conhecia, era um de meus vizinhos, Gilmar, um militar reformado.
     Ele atingiu dois cães, mas outro fugiu pela janela aberta. O que sobrou não se entregou e se atirou sobre Gilmar. Gilmar era velho, não era tão ágil, por isso não teve tempo de se proteger e o cachorro o derrubou no chão e mordeu seu rosto. Ele ainda tentava socar o cão, mas não tinha mais forças.
     Eu então me arrastei até os dois e consegui alcançar o fuzil.  Atirei. O cachorro tombou sobre o corpo agonizante de Gilmar.

     Esqueci Gilmar. Pelo que vi, ele estava condenado. Fui ver como estava minha esposa. Mas também nada poderia ser feito por ela, os cachorros a reduziram a farrapos, morderam até os ossos, seu rosto antes tão belo agora não passava de um monte de carne e ossos mutilados, lhe faltava uma das mãos, seu pescoço estava aberto e esguichava sangue por todos os lados. Malditos cães!
     Armado com o fuzil de Gilmar eu sai para rua. Pessoas choravam por todos os lados. Muitos compartilhavam do meu ódio, mas poucos eram corajosos, ou burros, o suficiente para irem atrás dos desgraçados. Porém encontrei três homens dispostos a ir comigo, eram Nestor, Juca e André, três vizinhos por quem nunca senti muita simpatia, três imbecis. Mas eles também haviam perdido familiares e no momento de ódio não paravam para pensar em suas atitudes, os convenci e agora estávamos os três no meio daquele pasto no encalço de nossos inimigos.
 
     - Evaristo – falou André – o Nestor pode tá certo. Seria melhor voltarmos mais tarde com mais gente.
     - Agora não há mais tempo – disse eu.
     O três pararam para ouvir. Os ganidos e passos estavam se aproximando. Senti um cheiro de urina preencher o ar, era o pobre do Juca que estava mijando nas calças.
     Nos aproximamos de costas uns dos outros formando um círculo. Todos estavam armados, mas com revólveres, só eu tinha o fuzil e, além disso, também trazia uma faca no cinto.
     - Apareçam seus merdas! – gritei. Não via a hora de estourar a cabeça daqueles vira-latas insolentes.
     O primeiro deles surgiu. Eu atirei. Um ganido e um corpo tombado.
     Logo vieram mais. Meus companheiros atiraram também, mas o medo impedia que acertassem o alvo. De seis cães que se aproximavam só três tombaram, todos abatidos por mim.
     - A gente vai morre! – gritou Nestor e logo em seguida saiu correndo.
     Além de maricas era burro. Assim que ele deixou a roda a maioria dos cães o seguiu. Pelo menos aquele paspalho serviu para alguma coisa e eu aproveitei para abater mais alguns cachorros, mesmo assim alguns o alcançaram e o derrubaram, o devorando vivo ali mesmo.
     O mijão do Juca foi o próximo a amarelar, simplesmente parou de atirar e começou a gritar como um louco girando sobre si mesmo:
     - Isso é coisa do capeta! Coisa do capeta!
     Se era coisa do capeta ou não eu não sei, sei apenas que eles levaram Juca para o inferno junto com eles, um dos cães foi cruel e mordeu o saco do desgraçado que gritou enquanto seus bagos eram mastigados.
     - Merda Evaristo! Você matou a gente! – berrava André.
     Não dei ouvidos a ele. Lembrava apenas de minha esposa e meu bebê e dava risadas a cada bala a acertar aqueles montes de pelo. Foi então que eu o vi.
     Ele avançou depressa entre a matilha, o reconheci por algo que trazia na boca. Era um pedaço de pano, um pedaço de pano ensangüentado que pertenceu a roupa de meu filho.
     - É você que eu quero seu filho de uma égua!
     Ignorei os gritos de André, cercado pela matilha e mastigado vivo da mesma forma que Nestor.
     Mirei a cabeça daquele maldito cachorro e puxei o gatilho. O tiro não saiu.
     - Droga! – estava sem munição.
     Senti alguns dentes se cravarem em minha coxa, senti outros se fecharam sobre meu braço. Eram muitos, eu me contorcia tentando me libertar. Mas logo não resisti mais e fui ao chão enquanto as presas cortavam minha pele.
     Tentava proteger o rosto quando o vi na minha frente. A droga do cachorro que matou meu filho queria também provar da carne do pai. Ele apoiou as patas no meu peito, seus caninos cheios de sangue e fiapos de pano babavam sobre meu rosto. Não pensei duas vezes, um de meus braços ainda estava livre e com ele alcancei a faca.
     O cachorro atacou, senti sua boca sobre minha garganta, porém eu ataquei também e cravei-lhe a faca em seu tronco. O maldito ganiu, seus parceiros assustaram-se por um instante, mas logo voltaram a me devorar e aproveitaram para provar da carne de seu próprio companheiro.
     Estava vingado. Agora podiam me devorar e que se engasgassem com meus ossos, eram apenas uns cachorros fedidos.
     Malditos cães!
Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 07/08/2012
Reeditado em 07/08/2012
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