No Ir

Na noite dos desvalidos, ele sabia que o inevitável e trágico beijo da morte tocaria os seus lábios, seguido de um abraço gelado- a qualquer momento- gostava de pensar assim. Ao sair do seu cotidiano, sentia-se como uma tétrica criatura, fugindo de si mesmo, expressando-se ao infinito, esgueirando-se por cenários sombrios – onde o breu das sombras era tão necessário, quanto uma arma em punho, engatilhada. Que tom melhor haveria para o ambiente onde vivia um amigo no ir – não havia aceito o convite para entrar para a sua ” firma”, mas conservou a amizade. E as visitas eram frequentes.

Não era sonho nem pesadelo, apenas mais uma noite daquelas, de máscaras intensas de dor, de escárnio e desespero. O vento frio insistia em sussurrar a palavra morte. Uma inquietante trilha sonora de disparos, temperada com ruídos inaudíveis de palavrões, de ódio profano. Mas não recuava, insistia em ir a passos trôpegos, inseguros. Aquele não era o seu mundo, o seu refúgio – mas era o seu jogo de xadrez embebido em sensações provocantes, extasiantes.

Feições inesquecíveis o fitavam, mas tinha uma doce como as de Lauren Bacall. Pulsantes ressonâncias escondidas, com cinematográficas mortes. Esfaqueados homens pelo destino cruel de uma vida bandida. Cheiro de pólvora, orifícios na carne maculada. Cheiro de sangue e suor numa pálida noite sem luar. Dólares por tudo, para tudo – dilacerando almas perdidas. Corpos à venda por uma bagatela – para o prazer de muitos. E, ele de espectador.

O local do encontro era uma encenação da paisagem urbana mais assustadora possível daquela longa noite. Ele costumava lembrar o que o amigo lhe dizia: “ já foi tudo vivido, e aos personagens so resta cumprir o destino de defender a lei, ou o crime.” Desespero de vida e de morte. Heróis de triste fisionomia que fazem o trabalho sujo, mas com grande desculpa. Fazem isso com planos bem urdidos, absolutamente cinematográficos, no ir.

Não sabia como podia deixar a esposa em casa, seus dois filhos na tranquilidade do lar de um simples operário e sair naquela aventura – era de uma irresponsabilidade desmedida. Queria, sim saborear o perigo, repleto de adrenalina. Presenciara dívidas eternas sendo cobradas à ferro e fogo. Vira homens destinados a morrerem sem glória. Corpos perfurados pelo chumbo, corpos abertos pela navalha assassina para logo em seguida ser alvo do bisturi do legista, de lâmina gélida e suave. Órgãos pousando em suas mãos, na balança. Homens feito ratos, sem Deus nem o Diabo no coração. Um enterro num cemitério pálido, numa cova rasa – uma encenação fúnebre de poucos acompanhantes – posto numa lápide sem importância.

Notícias vermelhas estampadas nos jornais – de ações criminosas que ele presenciara a trama ser feita, planejada ao tilintar dos copos de uísque e sob a fumaça cinza das cigarrilhas. Fortunas nas mãos dos inescrupulosos desajustados sociais, de terno e gravata – com uma arma no bolso. Seguranças truculentos, assassinos frios. Noite boa para se matar e morrer.

- E, então, como foi o seu dia...

- Como sempre, a mesma monotonia de sempre. Descarrego o carro de carne, levo pro açougue, retalho e vendo. Meus clientes, os mesmos velhos e gordas senhoras, de sempre.

- A sua chegada até aqui...

-Como sempre, tensa, com aquele toque inevitável, mórbido de que seria a minha última visita, mas deu tudo certo, sucesso, cheguei vivo.

O bar funcionava num beco úmido, emporcalhado. Pairava um odor de podre no ar. Um ambiente barra pesada, daqueles. Centenas de caixas de uísque contrabandeado estavam empilhadas ás suas costas. Ali, era frequentado pela escória social. O ambiente era esfumaçado. Palavrões de todos os tipos ecoavam. Algumas bailarinas semi-nuas, ensaiavam movimentos sensuais de quadril. Seios despidos, olhares lânguidos que despertavam prazeres , de toda ordem.

Arrasto uma cadeira, sento. Acendo uma cigarrilha. Entro para o carteado. Sinto-me como se estivesse correndo riscos. Todos estão armados. A polícia poderá chegar a qualquer momento. Estou no esconderijo do meu amigo de infância. A cidade é Chicago, a cidade do pecado e dos crimes violentos. A mulher, de beleza de Lauren Bacall se insinua pra mim, aproxima-se e me beija na boca. Ele a afasta da mesa e diz:

- Ele, não, é meu amigo de infância. Deixe-o em paz.

Dou um sorriso de canto de boca, e encho os nossos copos com o uísque, de fabrico particular. Sinto-me importante pela sua amizade . Ninguém sabe, nem a minha esposa, que eu sou amigo de All Capone.

Fim

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 11/08/2012
Reeditado em 10/05/2014
Código do texto: T3824388
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2012. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.