Os Olhos do Mau

Peço a quem descobriu esse texto, e que começou, neste momento, a lê-lo inocentemente, sem ter a mínima noção do conteúdo que o preenche, para que faça uma reflexão sobre se vai prosseguir na leitura. Pois, esse escrito fala do Mau e de todo o seu poder. Se não lhe interessa saber nada sobre essa poderosa e hostil força, abandone a leitura agora. Caso contrário, siga em frente.

O misterioso acontecimento, que será exposto aqui, nos fará ver o olhar escuro, intenso e frio, de tudo que é mais nocivo e torpe. Vai mostrar a estranha face de uma força incomum, que se avoluma alimentando-se de dor, lágrimas e sangue. Esse relato, narrado em fleches, abrirá nossos olhos para o que está ao nosso lado, rondando em silêncio, imperceptível, espreitando por trás das sombras. Olhando para mim e para você, a todo instante. Não se engane! Ele, o Mau, está aí, ao teu lado, agora, só esperando uma oportunidade para abocanhar-te. O que chamamos de fatalidade é a exata expressão da maldade. A casualidade não existe, o Mau, sim.

A história que segue abaixo é escrupulosamente verdadeira, e sublinha, de forma precisa, toda a energia suja que nos circunda.

09 de setembro de 1978, cinco da tarde. A família dentro do carro, - voltando do fim de semana no sítio -, estava esfacelada.

A reunião no campo, prevista para reaproximá-los, desandou. Os três dias do feriado prolongado correram da pior maneira possível. O rancor e as cobranças cheias de fel irromperam violentamente, atropelando e matando o perdão, o bom senso e qualquer tipo de reconciliação esperada. Nessas horas de discussões descontroladas, o pequeno Sebastião, de apenas cinco anos, conseguia ver o que para seus pais e seu irmão Sócrates, de dezesseis anos, parecia diáfano. O vulto negro, com seus olhos impuros, o perscrutava em desafio. O olhar senil e decrépito, de um ser lúgubre, acompanhava enlevadamente a desavença. Aquilo deixou Tião paralisado de medo. Cada vez que seus pais gritavam trocando injúrias, mais nítida e arrepiante a imagem se tornava. Draco, o vira-lata de estimação da família, também via e latia frenética e loucamente.

A presença maléfica invisível apoderava-se do ambiente de forma silenciosa e lenta.

No último dia do feriado, - o dia do retorno para casa -, depois que todo o ódio e ressentimento foram colocados à mostra, ulcerando irremediavelmente o casamento, as coisas começaram a parecer mais calmas, no entanto, a sensação ruim pairava no ar de forma densa, quase palpável. A manhã desse dia passou silenciosa e reflexiva. Cada um dos pais de Sebastião ponderava num canto do sítio. Sua mãe, Márcia, grávida de sete meses, não parava de chorar na cozinha. Seu pai, Antônio, enfurnado na estufa de orquídeas, tornou-se ainda mais taciturno e distante. Seu irmão, indiferente a tudo e a todos, se divertia jogando videogame na sala. E Sebastião, ainda cognitivamente imaturo, tentava compreender aquela dor profunda que se anunciava.

Ás três horas da tarde entraram no carro, uma Brasília azul, ano 76. Antônio ia ao volante e Sócrates ao seu lado, no banco do carona. Márcia e Tião vinham nos bancos traseiros. Márcia atrás de Sócrates e Tião exatamente atrás de seu pai. E no meio, entre Tião e sua mãe, viajava Draco.

Tudo ocorreu numa fração de segundos. Uma sucessão de eventos que poderiam ser chamados de fortuitos, contudo, não foram.

A certa altura da viagem, Tião sentiu a presença dos olhos do mal sobre eles, e seu coração gelou. O ar dentro do carro ficou pesado. O neném na barriga de Márcia agitou-se. Antônio sentiu um frio subindo por sua espinha e teve um leve tremor. Draco começou a rosnar e ficar descontrolado. Ele pulava de um lado para o outro, enfurecido. Sócrates tentou controlar o ímpeto do cão e sofreu uma colérica mordida na mão. Assustado, num ato reflexo, puxou seu braço do ataque do cachorro, esbarrando, com muita potência, no braço direito do seu pai que segurava o volante, fazendo com que Antônio perdesse o controle do carro e invadisse a contramão. Na pista contrária vinha, em alta velocidade, um ônibus de viagem interestadual. Antes do choque, que parecia iminente, o pai de Tião conseguiu retornar para o lado certo da rodovia, ao tempo que o enorme veículo, cheio de passageiros, passava zunindo por eles. Todos suspiraram aliviados. Quando tudo parecia controlado e o pior ter passado, Antônio desviou seu olhar da estrada e direcionou ao seu estimado animal, esticando seu braço para trás, tentando confortá-lo. Neste ínterim, um caminhão que transportava vergalhões e que vinha logo a frente do carro da família, diminuiu bruscamente a velocidade. Sebastião pensou ter visto uma espécie de macabro sorriso naqueles olhos impudicos. Quando Antônio retornou a vista para frente, não havia mais tempo para a frenagem. O carro chocou-se violentamente na traseira do caminhão.

Como foi dito antes, a família que vinha dentro do carro, - voltando do fim de semana no sítio -, estava esfacelada. Ela foi, literalmente, retalhada.

Ao bater no fundo do caminhão, os vergalhões que estavam na carroceria da carreta, escorregaram com violência em direção ao carro, quebrando o para-brisa e matando os ocupantes do veículo. Antônio foi atingido no tórax e na garganta, deixando-o decapitado e com seu corpo espetado no banco do motorista. Sua cabeça foi parar há cinco metros de distância, no mesmo lugar que foi encontrado os poucos pedaços que sobraram de Draco. O mesmo vergalhão que trespassou Sócrates, na altura do osso esterno, estourando seu coração, atravessou a espessura do banco dianteiro cravando-se na barriga de Márcia, matando ela e o seu bebê. Outros dois espetos de ferro dilaceraram os braços de Sócrates. Muitas outras barras atingiram o carro, formando uma cena bastante bizarra. Como se o veículo tivesse sido atingido por um jogo de pega-varetas metálico gigante. A quantidade de sangue que maculou o veículo era espetaculosa.

Milagrosamente, Tião sobreviveu ao trágico acidente somente com cortes superficiais. O infortúnio, na visão dele, sucedeu-se em câmara lenta. Ele não conseguia tirar os olhos da força iníqua que o observava. Foi surpreendido com a imprevista brecada do carro, sendo lançado para baixo do banco do motorista. De lá, ele viu seus amados familiares serem espatifados, ao passo que a figura incógnita nas sombras, crescia e se fortalecia, mostrando a sua cara monstruosa. Quando Tião foi retirado do carro, conseguiu ver, de forma clara, o vulto negro fulgente. Ele era um velho que parecia rejuvenescer, banhando-se, alegremente, no sangue que foi jorrado.

Ninguém foi responsabilizado judicialmente pelo ocorrido. Eventualidades acontecem, assim disseram.

Sebastião, o único sobrevivente, hoje tem trinta e nove anos. O Tião, sou eu.

Hoje sou um homem maduro, comum e quase feliz. Não fosse continuar a ver aqueles olhos sinistros por todos os lados, cercando-me, eu poderia está, na medida do possível, realizado. Não consegui descobrir a razão de minha vida ser poupada, naquele funesto dia que levou toda minha família. Talvez seja para que eu conte está história pelo resto de minha existência. Quem sabe, para que eu sirva de oráculo, para orientar todos vocês, imprudentes passageiros dessa enigmática estrada, chamada de vida. Fazendo com que você fique sempre atento e não baixe nunca a guarda, para que o inesperado, desta forma, não invista contra você. A única certeza que eu tenho é que não foi fatalidade. Foi tudo premeditado por ele, pelo inimigo invisível, o Mau. Isso aconteceu comigo, entretanto, poderia ter sido com você. Por isso, fique sempre de olhos bem abertos. E tome muito cuidado.