Conto dedicado a Zeni Silveira e Julio Cezar Dosan

Chamas na Noite
 
- Você não acredita em fantasmas, acredita? – disse Andressa para mim.
- Não, é claro que não, tal coisa não existe, mas não acho certo perturbarmos o descanso dos mortos. – respondi tentando esconder o medo.
- Não seja bobo Fernando, lembre-se que estamos aqui por uma boa causa, quero saber o que realmente aconteceu com ela, é isso que você deseja também, não é?
- Sim, com certeza – respondi mais uma vez.
E sem mais delongas entramos no cemitério, era uma noite clara de lua cheia, porém muito fria e por isso não havia ninguém por perto. Eu mais do que ninguém desejava entrar lá e olhar com meus próprios olhos o corpo de Bruna, minha namorada. Sua morte foi cercada de mistério, aconteceu quando eu estava fora da cidade, me disseram que sua casa simplesmente pegou fogo e ela morreu carbonizada, quando cheguei já encontrei o caixão lacrado e nem pude ver seu corpo.
- Me ajude a subir aqui Fernando – pediu Andressa e eu a ajudei ganhar impulso para subir no muro baixo do cemitério, em seguida entreguei-lhe uma picareta e pulei também.
Dentro do cemitério o ambiente era assustador, como realmente deveria ser. Acendemos nossas lanternas e saímos a procura do túmulo de Bruna.
- Isso é uma loucura – disse eu para Andressa.
- Loucura Fernando? Acho que alegar receber mensagens de uma morta é mais loucura ainda.
- Não, pare com isso você também, eu já recebi várias ligações dela essa semana, tenho certeza que era a voz de Bruna, ela sempre diz que quer me ver de novo. Além do mais, se você duvidasse disso não estaria aqui comigo.
- Sim eu sei, mas acontece que assim como você eu não vi o corpo de minha irmã e também quero resolver esse mistério, eu amava Bruna Fernando, ela era a melhor irmã que alguém poderia ter. Mas se ela ainda está viva como você diz eu tenho que descobrir quem foi enterrado em seu lugar.
- Isso se há um corpo enterrado lá – falei.
- Logo saberemos, veja, chegamos.
Lá estava, o túmulo de Bruna, com a data de sua morte e um retrato seu. Por um momento a saudade me dominou e eu desejei mais do que nunca que aquele mausoléu estivesse vazio.
- Vamos Fernando, o que está esperando? – perguntou Andressa impaciente.
Eu coloquei a ponta da picareta entre a fresta da gaveta mortuária e a forcei como faria com um pé de cabra. A pedra moveu-se um pouco, coloquei mais força e ela finalmente cedeu por completo quase caindo em cima de mim. Imediatamente um cheiro pútrido e nauseante nos inundou, Andressa tossiu e teve ânsia de vômitos, mas resistiu. Dentro da gaveta um caixão brilhava refletindo a pálida luz do luar em sua madeira envernizada.
- Acho que a encontramos, não há dúvidas que existe um corpo aí dentro – falei.
- Espere Fernando, há um corpo aí dentro, mas para ter certeza se é o de Bruna precisamos abrir o caixão.
- Então me ajude aqui – pedi.
Andressa veio meio a contragosto, nós dois arrastamos o caixão para fora com cuidado, porém ele era muito pesado e não pudemos evitar que o pior acontecesse.
- Cuidado! – gritei para Andressa, ela ainda conseguiu pular para trás, mas o caixão despencou no chão e se abriu revelando sua carga.
O corpo estava envolvido por várias camadas de ataduras, mais parecia uma múmia, o cheiro era horrível, mas a parte mais importante, o rosto, estava coberto por uma máscara de gesso.
- Vamos ver se você realmente é quem estamos procurando – disse Andressa em um tom ríspido e logo se abaixou para retirar a máscara, eu estranhei a frieza dela, mas me mantive calado, também estava curioso.
Andressa retirou a máscara com certa facilidade e revelou uma face queimada e desfigurada com um par de olhos sem pálpebras a nos fitar e um sorriso eterno e cadavérico em uma boca sem lábios.
- A vadia está mesmo morta Fernando, alguém deve estar passando trotes para você – falou Andressa demonstrando certo alívio.
- Como pode falar assim dela Andressa? Bruna era sua irmã, nunca vi você se referindo a ela desse jeito.
- Não venha com essa Fernando, Bruna sempre teve tudo que eu quis, eu sempre fui a preterida lá em casa, agora com ela morta eu finalmente terei um pouco de atenção. Principalmente a sua Fernando.
- Minha? Do quê está falando?
- Escute Fernando, Bruna está morta. Olha, eu sempre gostei de você, estava interessado em você antes de começar a namorar minha irmã, mas ela o roubou de mim, Bruna roubou você de mim Fernando! Mas agora ela está morta, podemos ficar juntos, eu sempre fui mais bonita que ela, fique comigo e seremos felizes.
- Não sabe o que está falando Andressa, respeite a memória de sua irmã, vamos colocar o caixão no lugar e sair daqui! – falei aos gritos com Andressa.
- Deixe este caixão aí, ela vai apodrecer de qualquer forma mesmo. Bruna não importa mais meu amor, agora somos só nós dois e nada vai impedir nosso amor, nada!
Andressa pulou sobre mim querendo me beijar, ela estava completamente fora de si e eu a repeli.
- Louca! Suma daqui! Eu amava sua irmã e não vou traí-la, mesmo que ela esteja morta – disse a empurrando.
Ela caiu perto do corpo da irmã.
- Maldito! Mas se não pode ficar comigo não ficará com mais ninguém! – assim que disse isso ela se armou com a picareta que estava no chão e avançou sobre mim.
- Não faça isso Andressa! – gritei.
Me preparei para o golpe, mas ele não veio, ao contrário disso ela tropeçou e mais uma vez caiu no chão e largou a picareta.
- Mas o quê é isso? – ela perguntou olhando no que havia tropeçado.
 E tanto ela quanto eu vimos espantados a mão enfaixada de Bruna segurando sua perna, porém seu corpo ainda permanecia imóvel.
- Miserável, mesmo morta ainda me persegue! – Andressa gritou.
De repente ouvimos um ruído, uma música, era o ringtone da Nokia, meu celular estava tocando. Eu levei a mão ao bolso e o alcancei e vi o nome no display, Bruna. Mais uma vez olhei para o corpo enfaixado no chão, aquilo só poderia mesmo ser alguma brincadeira. Atendi ao telefone e antes que pudesse dizer alguma coisa eu ouço a voz doce e irreconhecível dela.
- Fernando, passe o telefone para Andressa, por favor, preciso falar com ela.
Andressa me olhava ainda do chão com um olhar de espanto, eu estendi o telefone para ela e disse.
- É ela, Bruna, e quer falar com você.
Andressa simplesmente agarrou o telefone com raiva e o atirou longe.
- Não seja estúpido Fernando, alguém está brincando com sua cara, essa puta está morta! Morta! E deve estar queimando no inferno... ai, ai, ai!
Andressa começou a gritar.
- Me solta, me solta sua maldita!
Eu olhei espantado a mão enfaixada de Bruna apertar mais forte a perna de Andressa e mais espantado ainda vi seu corpo se levantar.
- Desgraçada! – Andressa gritava desesperada – Eu matei você, coloquei fogo naquela espelunca da sua casa! Vê se morre de uma vez!
Ouvi aquilo sem acreditar. Andressa havia assassinado a irmã!
De repente ouço o som de algo se quebrando, eram os ossos da perna de Andressa se partindo, ela gritou ainda mais apavorada:
- Me ajuda Fernando!
Eu então me abaixei e falei.
- Sim, eu vou ajuda-la meu amor – mas disse isto olhando para a face desfigurada de Bruna e não para Andressa.
Eu envolvi então o pescoço de Andressa em meus braços.
- Será rápido Andressa – disse eu.
- Não Fernando! O que está fazendo? Para, par...
Ela não podia falar mais, eu apertava seu pescoço cada vez mais forte enquanto Bruna segurava o que restou de sua perna. Andressa ainda se contorceu um pouco até que ouvi seu pescoço estalar e senti seu corpo desfalecer em meus braços, eu a havia estrangulado, Andressa estava morta.
Larguei seu corpo sem vida e olhei novamente para Bruna.
- Agora acabou meu amor, ela pagou por seu crime e eu vim ver você conforme prometido.
Bruna arrastou seu corpo apodrecido e mutilado em minha direção, eu permaneci no mesmo lugar a sua espera, ela estendeu seus braços enfaixados sobre mim e eu estendi os meus, sem pensar duas vezes abracei aquela carcaça de múmia indiferente ao seu aroma cadavérico e o apertei forte.
- Fernando, eu não posso ficar aqui com você – disse ela com dificuldade movendo sua boca queimada.
- Não se preocupe meu amor, aonde você for eu irei também.
Ela fez menção de me beijar e eu correspondi, não senti o toque de seus lábios inexistentes, apenas o toque sem vida de seus dentes podres e o gosto do que restava de sua carne chamuscada, mas dentro de mim um fogo estranho se acendeu, em poucos instantes um calor maior nos envolveu aos dois e senti labaredas subirem e queimar minha pele.
Mas ao mesmo tempo em que isso acontecia as feições de Bruna iam se regenerando e ela recuperava sua bela face, o belo rosto pelo qual me apaixonei.
- Fernando – disse ela – o fogo nos separou, mas esse mesmo fogo nos unirá novamente.
A beijei mais uma vez, agora sentia seus lábios novamente. A nossa volta tudo eram chamas, não importava o meu corpo, consumido lentamente pelo fogo, mas sim minha alma, livre e finalmente junto daquela que eu tanto amava.
 


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Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 25/08/2012
Reeditado em 25/08/2012
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