TERRA SECA 1 - A INOCÊNCIA

“...Me deito de comprido na relva,

E fecho os olhos quentes,

Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,

Sei a verdade e sou feliz.”

Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)

VOCÊ ACHA QUE JÁ VIU TUDO? Acha que sabe como deve ser um apocalipse zumbi? O fim da civilização? Talvez até clame por isso, desejando uma catástrofe para que possa ser um herói, pedindo por mortos vivos para que possa saciar sua sede de morte. Mas sinto dizer que não é assim... não é nada parecido com o que eu tinha visto em filmes ou imaginado, o mundo como ele está, não transforma ninguém em herói, só em assassino, não há honra em matar, não há honra que sobreviva ou faça alguém sobreviver, não há esperança, e a cada dia que passa a vida se esvai, escorre por entre os dedos e se derrama na terra seca, vivo cada minuto como se fosse o último e me vejo mais próxima da hora em que tudo que me restara será apenas a morte por minhas próprias mãos ou o sofrimento por mãos alheias.

Somos zumbis, criaturas sem vidas mesmo antes da morte, sobrevivendo à custa do sangue de inocentes, zumbis conscientes, armados e dispostos a matar para não morrer. Nunca cheguei a ver um zumbi de verdade, embora acho que tenha existido, o que eu vejo é muito pior, monstros em pele de humanos, doentes e loucos, é isso o que sobrou do planeta azul, poeira, lixo tóxico, cinzas e morte. O cheiro de corpos em decomposição está em cada brisa de ar quente, a cada passo dado, em cada esquina, estou esgotada, não há nada pra mim, não me resta absolutamente nada.

Não consigo lembrar quanto tempo faz que caminho nessa terra seca, nesse deserto árido, apodrecendo de corpo e alma nesse mundo sujo. Desde as primeiras catástrofes até agora não se passaram muito tempo, mas foi tempo suficiente para os homens se destruírem por completo, acabarem sozinhos com a própria raça. Antes éramos um exército lutando contra os foras da lei, agora, as leis se foram, muitos se foram e nos transformamos no que chamávamos de foras da lei... cada um preso em seu mundo de solidão e dor... e eu já estava até me acostumando com a dor até ela aparecer... grandes olhos castanhos amendoados, corpo frágil, rosto sereno, tinha esquecido como era o olhar de uma criança...

O sol já tinha passado do meio do céu, quando aconteceu, quando aqueles olhos brilhantes vieram para me atormentar, trazer lembranças que há muito tempo jaziam enterradas em fundos túmulos e cobertos por cimento em minha memória. Porém desde aquele dia tive sonhos de esperança, em que matar não é mais essencial para a sobrevivência, em que não é preciso sentir diariamente o cheiro podre de lixo, sangue e corpos decompostos a céu aberto. E que céu... eu queria poder vê-lo azul ao dia e negro com pontos brilhantes á noite, não cinza o tempo todo, é até difícil respirar.

Voltando aos grandes olhos castanhos... o dia estava muito quente, como de costume, o cansaço era tamanho que mal conseguia ficar em pé, junto a um alto muro de concreto parei para tomar um ar, quando ouvi algo que parecia ser uma voz de criança do outro lado da parede, subi em um caixote de madeira para olhar por cima do muro, e lá estava ela, era mesmo uma criança... há muito tempo que não via uma, fui até ela. alguns metros de distância e fiquei olhando... era pequena, no máximo dois anos, usava uma camiseta que ia até os joelhos, andava com dificuldade e quando me viu sorriu pra mim, o sorriso mais puro e inocente do mundo. Por um segundo pensei em pegá-la no colo e protegê-la... então lembrei onde estava, qual era a realidade e lembrei-me de uma de minhas regras para sobreviver... não ajudar, em hipótese alguma.

Vocês podem estar me condenando por isso, mas não sabem pelo que passei e as coisas que vi, então puxei a velha espingarda de cartucho, por sorte ainda a tinha e sempre carregada, mirei entre os olhos da pequenina e por várias vezes hesitei, fazia tempo que não era tão difícil puxar o gatilho, ela estava parada e balbuciava qualquer coisa, eu imóvel com o sol forte batendo no rosto, sentido por alguns lances de segundos a vida em meu coração... ela novamente me olhou e veio em minha direção, passos desajeitados fizeram com que caísse e a pequenina começou a chorar. Por um impulso, até então desconhecido, quis ampará-la, mas logo lembrei-me do meu lugar nesse mundo, do meu dever.

Mirei entre os grandes olhos castanhos, o suor escorrendo em meu rosto, seu choro ecoava alertando os inimigos, pude sentir o cheiro deles se aproximando, não permitiria que a tivessem, não dessa vez... o tiro ecoou por alguns segundos, mas em minha mente ele ecoa eternamente. Pensei que o esse mundo tinha me endurecido e minhas lágrimas secado... engano meu. Desde aquele dia sonho... o pouco que durmo me transporta para aquele momento, e agora tenho medo... medo que meu castigo seja viver.

Eliane Verica
Enviado por Eliane Verica em 17/09/2012
Reeditado em 16/08/2014
Código do texto: T3886251
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