O BONECO PRETO

Olá queridos leitores!

Primeiramente gostaria de agradecer a visita de cada um e agradecer os comentários. Bom, esse conto foi baseado em um pesadelo meu e espero que gostem.

Abraços.

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Dizem que a magia negra só se concretiza a partir do momento em que acreditamos em sua força. Pois bem, eu não acreditava nessas coisas, mas depois de ter conhecido o boneco preto mudei completamente meu pensamento a respeito disso.

Meu nome é Amanda e tudo começou em um domingo a tarde. Eu estava com meus quinze anos de idade e estava no meio fio em frente ao portão de casa, juntamente com mais uma amiga. Domingo é um dia tão monótono, sem agitação, todo mundo em suas casas perdendo horas na frente da televisão assistindo programas abertos, chega a se tornar entediante e o tédio acabou despertando uma curiosidade em nós duas.

Paula era uma grande amiga de infância. Crescemos ali, naquele bairro, composto por ruas pacatas desfrutando das típicas brincadeiras de infância. Se fossemos crianças naquele domingo estaríamos andando de bicicleta ou brincando de boneca, mas tendo em vista que estávamos na adolescência ficamos sentadas no passeio tentando conversar sobre alguma coisa.

-Sabe? – ela disse despertando do silêncio. –Soube que tem um pessoal estranho morando no casarão no fim da rua.

-Estranho? Como assim? Que pessoal? –eu interroguei intrigada.

-Ah não sei bem. Mudaram-se há poucos dias. Fiquei sabendo tem um tempo, mas me esqueci de te contar. Mas o povinho de lá é bem esquisito.

-Por quê? Eles por um acaso são macumbeiros, é? – dessa vez eu disse zombando.

Paula ficou séria. Eu me recompus.

-O que foi? – perguntei. –Foi só uma brincadeira. Eles são macumbeiros mesmo?

-Não sei Amanda. Tudo indica que sim, porém ninguém sabe. – respondeu. –O senhor Pedro, que é amigo do meu pai, disse que noite eles ficam batucando em tambores, cantarolando em idiomas desconhecidos, gritando, gargalhando. Dizem que é uma algazarra total.

-Ah isso é conversa! Aquele velho é doido, Paula! – eu exclamei.

Um silêncio brotou entre nós. Milhares de coisas passavam pela mente de minha amiga e eu tentava imaginar as coisas que o senhor Pedro dizia escutar. Maluquice. Sempre tive a curiosidade, mesmo não acreditando, de ir a um terreiro e ver como funcionam os rituais, porém nunca tive coragem ou oportunidade. Dizem que se o espírito presente pedir pra ficar até o fim do ritual é obrigado a ficar, não o importa o tempo de duração.

-Vamos lá! – ela exclamou se colocando de pé.

-Aonde? – eu perguntei confusa.

-Vamos ver se o que aquele velho doido fala é verdade mesmo.

Eu fiquei indecisa. O brilho do sol já estava enfraquecendo e rua estava deserta. Não respondi e comecei a caminhar ao lado de Paula em direção ao final da rua. Parecia tão distante. Recordo-me que ela falava constantemente com euforia sobre essas coisas.

-Você acredita nessas coisas, Amanda?

-Bobagem. – eu respondi séria. – E você?

-Eu acredito. – ela respondeu parando em frente ao enorme casarão no fim da rua. –É aqui.

Um grande portão estava aberto para um corredor comprido. Ao contrário do que eu havia imaginado, estava limpo e com algumas plantas distribuídas ao longo do caminho.

-Olha só que povo estranho, onde já se viu deixar o portão aberto em pleno domingo? – Paula interrogava admirada.

Eu nada disse e permanecemos em silêncio de frente para o portão. Peguei a mão dela e entramos em silêncio no corredor e logo em seguida, uma ventania forte, bateu o portão, fazendo um estrondo ensurdecedor. Com o susto, nos abraçamos e ficamos paradas na metade do caminho.

Um batuque ao longe começou a quebrar o silêncio. Vinha do fundo do quintal.

-Será que eles sabem que estamos aqui? – eu perguntei. –É melhor irmos embora, você disse que eles são estranhos.

-Agora que entramos vamos até o final! – ela sussurrou. –Quero saber se isso é verdade.

-Paula, isso é perigoso. Estamos invadindo a casa desse povo, sabia?

-O portão estava aberto.

-E quem vai comprovar? A rua está deserta. Vamos embora que ainda dá tempo! – falei nervosa.

Eu não estava gostando nada da energia que percorria aquele corredor. O batuque se intensificou. Eu comecei a andar em direção ao portão e a a minha amiga veio atrás de mim.

-Droga! Ele está travado! – exclamei. – Eu quero ir embora daqui, Paula! Olha a emboscada que nos metemos! – disse apreensiva olhando nos olhos dela, que denunciavam seu arrependimento. – E agora? O que vamos fazer?

Meus olhos desviaram dos seus, buscando uma silhueta parada no final do corredor. Um homem negro, alto e forte, com vestes brancas nos observava. Um arrepio percorreu meu corpo de uma forma sombria.

-Hei vocês duas! Preto velho as chama para ficarem no ritual! – aquela voz grossa invadia meus tímpanos me fazendo bambear as pernas. –Andem logo! O que estão esperando?

Eu abaixei o olhar. Eu respirava com dificuldade e meu coração batia disparado.

-Vamos. – eu disse baixo.

Aquele corredor comprido me pareceu bem maior ainda. Meu corpo pareceu pesar. Eu queria sair correndo dali, mas como? Cada passo que eu dava, parecia que estava rastejando. Aqueles olhos negros me fitavam com seriedade.

Quando me aproximei daquele homem, o ar ficou mais pesado e a porta da rua me pareceu ainda mais distante quando olhei para trás.

-Me sigam! – ele disse.

Paula e eu permanecemos em silêncio e não trocamos um olhar sequer. Naquele momento tivemos a real certeza de que estávamos envolvidas em grande encrenca.

Passamos por outro corredor, porém esse era mais curto e chegamos ao quintal. Era bem amplo. Estava repleto de pessoas com vestes brancas. As mulheres com grandes colares e saias rodadas dançavam e rodopiavam em volta de um homem negro, sentado no meio de um circulo, enquanto os homens, alguns trajando somente a calça branca, outros o conjunto, ficavam batucando em tambores e cantando em língua estranha. Então tudo o que Pedro havia relatado era verídico e estávamos tirando a prova da pior maneira possível.

A música cessou e as mulheres pararam de rodopiar. O homem levantou-se e abriu a roda vindo em nossa direção. Meu olhar pesou.

-Preto Velho vê que vocês são duas intrometidas!Preto Velho viu e ouviu quando vocês chegaram! – ele exclamou nervoso. –Como invadiram território sagrado do Preto Velho sem serem convidadas, e interrompendo o inicio de um grande ritual importante, como castigo, obrigo vocês a permanecerem até o final do ritual.

Um frio me bateu a espinha. Segurei forte a mão suada de Paula. Estaria com a mesma sensação que a minha? Talvez. Não que eu acreditasse nessas bobagens, mas aquele ambiente me deixava desconfortável.

-E se eu quiser ir embora? – eu perguntei.

Um olhar furioso me invadiu a alma.

-Só vai embora quando Preto Velho mandar! – ele respondeu, logo em seguida balbuciando algo indecifrável para mim e para Paula, mas para os ali presentes, parecia ter sido um aviso para prosseguir com o ritual.

Eu não sabia como agira. Paula agora chorava constantemente e se agarrava a mim.

Agora as mulheres adentraram a casa e cada uma saiu com uma pequena bacia contendo oferendas. Todas foram postas ao chão, ao redor do preto. Algumas eu pude ver que continham farofa, bife de porco cru, charutos, cachimbos, cachaças. Enfim, começaram a batucar novamente, só que em um novo ritmo. Agora todos dançavam e cantavam, inclusive o Preto Velho que estava incorporado em um homem negro.

Lembro-me dele rodopiando e derrubando tudo em seu corpo: farofa, cachaça. Por fim, ele acendeu um cachimbo e com o litro de cachaça nas mãos pediu para o mesmo homem negro que havia aparecido no começo do relato, algo em outro idioma. O mesmo sorriu. Adentrou a casa e voltou trazendo um porco médio, vivo em seus braços. O pobrezinho de contorcia. Agora eu estava começando a acreditar.

O homem se ajoelhou diante do Preto Velho e com um punhal, fazendo alguma invocação africana, cortou a cabeça do animal, que grunhia de dor. Paula me abraçou. Naquele momento eu queria sumir. A adrenalina estava total.

Lembro-me que após esse sacrifício animal, um por um dos presentes começaram a cair desfalecidos ao chão, inclusive o médium que estava com o Preto Velho incorporado.

-É a nossa hora, Paula! Vamos pular o muro! – eu exclamei em silêncio, com os olhos marejados e cravados nas pessoas caídas ao chão.

Era tudo uma loucura. Parecia coisa de filme. De repente todos começaram a levantar e voltaram a dançar. Estavam possuídos e naquela altura, Paula e eu já estávamos tentando pular o muro que dividia o terreiro com o lote do senhor Pedro.

Buscamos apoio em uma mesa alta, onde estava várias panelas de barro com supostas oferendas. Dei um salto derrubando tudo ao chão e sentindo os cacos de vidro presos ao concreto do muro penetrando minha pele e o sangue escorrendo, pingando ao chão e despertando a fúria e a atenção das pessoas presentes.

Eu me tentava me firmar no muro e senti um puxão de cabelo. Era uma mulher morena, gorda, de unhas longas que havia arrancado um chumaço de cabelo minha e quando me firmei ao muro, olhei para a mulher, que agora sorria e meu couro cabeludo doía. Pulei caindo na grama fofa do quintal do senhor Pedro. Eu chorava. Permaneci deitada a grama por um bom tempo de olhos fechados, desejando que aquilo não passasse de um sonho, quando abri, avistei um par de pernas cabeludas e um par de olhos verdes, por trás de grossos óculos me observando.

-O que está fazendo aqui, Amanda? – senhor Pedro me interrogou admirado a me ver deitada em seu quintal, com as mãos sangrando em decorrência de cortes profundos, chorando e muito trêmula.

Não respondi nada. Estava traumatizada demais. Paula. Onde estava Paula? Olhei para os lados sentindo o olhar de senhor Pedro me observar curioso.

-Cadê a Paula? – eu perguntei.

Ele ficou mais confuso ainda. Teria ela ficado do outro lado? Me pendurei no muro novamente, sentindo os cacos de vidro penetrarem os cortes e abrirem novas feridas. O terreiro agora estava vazio. A bagunça estava repleta. A cabeça do porco desapareceu no meio da confusão e seu corpo gordo escorria um filete de sangue, formando uma poça ao redor. Panelas de barro quebradas, a mesa tombada, um cigarro de palha queimando, vários vidros de cachaças quebrados ou largados no terreiro. O silêncio era total. Onde estava Paula? A dor do caco de vidro furando a minha carne era grande, mas a preocupação com minha melhor amiga era maior e decidi chamá-la.

-Paula! – gritei.

-Desça já daí, Amanda! Não quero que esse povo me faça uma macumba.- fui repreendia pela voz rígida de Pedro.

Não me importei e gritei de novo e pude ouvir um choro baixinho vindo do portão, no corredor onde jamais deveríamos ter colocado nossos pés. Desci do muro e caminhei ao portão do quintal de senhor Pedro.

-O que estava fazendo aqui, Amanda? – ele perguntou caminhando logo atrás de mim.

-Te peço desculpas, senhor Pedro. Prometo que não invado mais o seu quintal, mas preciso ir atrás de Paula. – respondi tensa.

Abri o portão e ao chegar em frente ao portão do casarão a porta se abriu novamente e deparei-me com Paula ajoelhada ao chão, chorando compulsivamente.

Eu não ousei colocar meus pés novamente naquele lugar e chamei bem baixinho, ela se levantou e me abraçou.

-Amanda nós quase morremos! A gente vai morrer!Nós duas vamos morrer! Eles vão fazer macumba pra gente! – ela gritava chorando abraçada a mim.

-O que fizeram com você? – perguntei.

Ela levantou a blusa de frio que trajava, mostrando profundos cortes nos pulsos.

-Vão nos matar, Amanda. Nós vamos morrer.

Era verdade aquilo? Não. Eu não poderia morrer. Eu tinha tanta coisa pra fazer.

-Eu... Eu não vou morrer. Eu não... Não acredito nessas bobagens, sabe Paula? – falei insegura.

-Depois do que fizeram ali, você ainda não acredita? Nós vamos morrer Amanda!

-É só você não acreditar. – disse. –Fique tranqüila. Basta não acreditar nisso.

Voltamos à porta de minha casa. A rua ainda permanecia deserta. Fiquei reconfortando Paula, que chorava e dizia que iríamos morrer. Já era noite quando meu pai apareceu no portão me pedindo para entrar.

-Olhe meu pai já veio me chamar. Preciso ir, mas, por favor, te peço para não ficar com medo. Não acredite nisso. Nós não vamos morrer. O que aconteceu hoje será segredo nosso que levaremos para o tumulo, certo?

Ela me olhou angustiada.

-Queria ser você para não acreditar nessas coisas.

Abraçou-me forte. Coitada. Mal sabia que aquela altura eu já estava acreditando em macumba e feitiçaria. Despedimos-nos e eu entrei em casa assustada.

Fui para o banheiro onde tomei um banho morno. Havia alguns estilhaços de vidro presos nas feridas da minha mão. Na parte de trás da minha cabeça, abriu-se uma falha que foi onde a mulher arrancou o chumaço de cabelo. Ao terminar, prendi o cabelo de uma forma que escondesse a falha e desci para a sala de TV. Meus pais estavam na cozinha e meu cachorro agora latia muito e o alvoroço de crianças na rua era total. Decidi averiguar o motivo de o cachorro estar latindo e ao abrir o portão deparei com um amontoado de crianças ao redor da árvore do vizinho. A lâmpada do poste em frente estava queimada, portanto a única iluminação garantida ali era da a do luar, assim era bem fraca. O que estariam fazendo ali?

--Hei garoto! – eu chamei na tentativa de conseguir a atenção de alguma criança por ali.

Um garoto mirrado, aparentando uns seis ou sete de anos de idade mirou seus olhos castanhos em mim. Seu rosto era familiar. Era filho de um vizinho. Irmão de uma amiga.

--O que está acontecendo aqui? Meus cachorros não param de latir. Será que não da pra vocês brincarem em outro lugar? – eu disse.

--Nós não estamos brincando. - ele respondeu.

--E o que fazem aqui então? – perguntei admirada.

--Tem um homem negro, em pé em cima de um único galho lá em cima da árvore e está parado faz horas. Estamos tentando conversar com ele, mas ele não diz nada. – ele me respondeu.

Um frio me percorreu a espinha. Aquilo que o garoto havia me dito era descomunal. Homem em cima da árvore? Estranho. Mirei meus olhos por entre as frestas das folhas verdes escuras e com muita dificuldade enxerguei uma silhueta bem fina e escura em cima de um galho fino. Senti o sangue gelar e retornei para dentro de casa novamente.

E se fosse o homem do casarão que levou eu e Paula para o terreiro. Notei que minhas pernas bambearam, minha mão começou a suar, comecei a ficar tonta e cai no sofá.

--Amanda, querida! O que houve? Você está pálida. Parece até que viu um fantasma. – minha mãe disse a me ver estirada ao sofá.

Tudo ao meu redor começou a girar e desmaiei. Vi-me no canto da sala. Encolhida.Olhei para o sofá e meus pais acudiam meu corpo inerte.

-Não precisa se assustar. – uma sombra negra disse a mim. – Só está em sono profundo, mas não morreu ainda.

-Eu quero voltar para o meu corpo! – eu exclamei.

-Você irá voltar, mas antes te convido a mostrar a fúria que você e sua amiga Paula provocaram as conseqüências que irão sofrer.

Frio na alma me invadiu. Naquele momento eu me arrependi amargamente de ter entrado naquela casa. Maldita curiosidade.

Rapidamente vi minha sala se tornar outro ambiente, onde várias pessoas estavam reunidas. Vi uma mulher com barro nas mãos, uma terra preta, uma linha preta, dentes pontudos arrancados de algum animal, um copo com sangue, finos galhos de árvore e um chumaço de cabelo castanho. Era o meu cabelo e reconheci a mulher, como a mulher que me puxou o cabelo. Comecei a chorar.

-Mãe Joana irá construir um boneco vodu negro para te amaldiçoar. Se prepare. Em três dias sua amiga Paula morrerá. Pai Tomé cuidará do suicídio dela mandando entidades negativas para o incentivo. Você também irá morrer em sete dias, mas primeiro irá sofrer a fúria do Preto Velho. Sabe, não foi esperto de sua parte ter saído sem permissão do ritual. – a sombra me disse irônica.

-Paula não pode morrer! Ela não acredita! E muito menos eu! – eu exclamei.

-Nesse momento há várias entidades negativas no quarto dela. – ela disse. – Ela não vai morrer agora, mas já está encaminhando para isso. O Exu Caveira está encostado na alma dela. Uma enfermidade grave, cairá sobre ela. A dor será tão grande que dentro de três dias, ela vai se suicidar.

-Cale a boca! Isso é besteira! Não acredito nisso! – eu gritava com fúria.

-Sabe o homem que viram na árvore do vizinho?

-Não quero saber!

-Certo. Bom, eu já cumpri minha ordem. De volta ao seu corpo! – ele disse sério.

Eu retornei ao meu corpo. Já era dia. Estava no meu quarto. Minha mãe estava sentada a beira da minha cama me observando. Finalmente havia despertado do pesadelo. Meu corpo estava molhado e meu pijama impregnado de suor. Pesadelo real demais para mim. Ver a imagem de minha mãe me confortava.

-O que aconteceu? – perguntei confusa.

-Você entrou em sono profundo ontem. Passei a noite toda com você. – ela respondeu.

-Preciso me levantar e arrumar para ir ao colégio. – disse isso, mas ao tentar me levantar senti um pouco tonta.

-Não precisa ir ao colégio hoje. – minha mãe disse.

-Mas preciso conversar com a Paula, mãe! Preciso contar um sonho pra ela. – eu disse me recordando da visita da sombra.

Minha mãe ficou séria e disse:

-Filha, soube essa manhã que a Paula está muito doente. Está queimando em febre desde a noite de ontem. A mãe dela disse que está delirando e não a consegue tirar de dentro do quarto.

Meus olhos se arregalaram. Então a visita da sombra, meu corpo inerte no sofá, a mulher preparando um boneco vodu era tudo real. Eu iria morrer. Eu acreditei. Eu estava acreditando. Levei as mãos aos cabelos horrorizada e ao deslizar, vários chumaços saíram entranhados nos meus dedos.

Com medo escondi os cabelos embaixo da coberta temendo a reação de minha mãe.

-O que você faz aqui, mãe? – eu perguntei.

-Na verdade vim aqui mesmo só para te mostrar uma coisa que achei quando ia saindo hoje de manhã.

-O que você achou mãe? – eu perguntei tentando mostrar euforia, mas a quantidade de cabelo que havia saído em minhas mãos ainda me impressionava.

Ela ergueu um molambo negro e jogou ao meu colo me causando espanto.

-O que é isso, mãe? Tire isso de cima de mim! – eu gritava apavorada com um boneco negro e pesado sobre minhas pernas.

-Filha! Acalme-se! Eu achei no pé da arvore da vizinha. De certo modo é feio, mas nada que uma boa lavada conserte.

Eu resolvi virar o boneco para ver seu rosto. Sua boca estavam dentes pontudos, como os da visão, no nariz dois furos grandes e nos olhos dois botões vermelhos e na cabeça, finos fios de cabelos costurados ao pano. Era frio por conta do barro moldado e em seu pescoço, meu nome estava escrito com sangue em letras miúdas. Entrei em pânico e arremessei o boneco contra a parede.

-Mãe suma com esse boneco do meu quarto! Queime! Jogue fora! Mas tire do meu quarto! Isso é obra de macumba! – exclamei.

Pulei da cama e ainda zonza sai do quarto, deixando o boneco deitado de bruços e minha mãe veio atrás de mim.

-O que andou aprontando dessa vez?

-Nada! – eu respondi me lembrando da tarde anterior. – Só tire esse boneco dessa casa, por favor!

Ainda de pijamas fui para o portão de minha casa. Nada mais me assustava. Eu estava ficando maluca. Tudo o que a sombra me falou estava acontecendo. Será que a Paula iria morrer? Será que eu iria morrer?

Havia muitas crianças na rua brincando. O sol estava forte. Mirei meus olhos no final da rua e vi duas crianças bem negras e magrelas descendo a rua. A cabeça era maior que o corpo. Parecia pesar. Como que por encanto, as crianças que estava brincando de amarelinha e outras brincadeiras infantis, saíram do meio da rua e subiram nas calçadas, o que fez com duas viessem para o meu portão.

Quando os dois meninos negros se aproximaram do meu portão, elas disseram:

-Olha só, dois neguinhos do pastoreiro!

Por algum motivo aquilo me arrancou um sorriso. Era engraçado o modo de pensar das crianças. Ao passarem em frente ao meu portão, os negrinhos viraram a cabeça toda para trás e em suas mãos estava o crânio de um porco. Eu fiquei apavorada. Muito nervosa.

Mirei meus olhos novamente no fim da rua e de lá vi uma procissão com pessoas de branco, batucando, dançando, cantando e na frente vinha um homem moreno escuro, alto, de barba e cabelos grisalhos. Parecia ser o chefe e em suas mãos carregava a cabeça de um bode, por onde o sangue que pingava ia desenhando um filete.

Comecei a chorar e voltei correndo para dentro de casa, quando uma mão, a mesma mãe da mulher morena, me segurou.

-Sete dias! Sua alma será minha!

Aquele boneco preto em meu quarto era a minha passagem para o inferno. Sensação terrível que sentia. Arrependimento mortal. Se pudesse voltar ao tempo. Lamentações pela minha morte, por meu ceticismo ter sido tão fraco... Minha alma agora iria ir para algum lugar que nem eu mesma sei.

Nada mais me abalava. Me tranquei em meu quarto. Não tive coragem de ir até a casa de Paula ou ao menos ligar. A merda já estava feita. Nós iríamos morrer. Ela tinha razão.

No primeiro dia, meus cabelos caíram totalmente. Eu estava careca. Chorava e o sorriso daquele boneco negro, caído ao chão do meu quarto se tornava cada vez mais irônica. Pensava no medo que a pobre Paula estaria passando. Na dor que estaria sentindo...

No segundo dia meus dentes caíram todos. Eu estava irreconhecível. Não deixava minha mãe entrar ao quarto. Só sabia chorar e observar a face estúpida e medonha do boneco negro me olhando. Em breve Paula morreria. Eu não dormia. Estava com olheiras profundas.

Terceiro dia. Último para a minha doce e sonhada amiga. Eu já não chorava. Fiquei no meu quarto agora vendo minhas unhas caírem e a pele dos meus dedos trincarem saindo pus e das feridas provocadas pelo corte do caco de vidro do muro de senhor Pedro, brotar vermes que pingavam pelo meu quarto cor de rosa.

Eu ficava cada vez mais fraca e o boneco, cada vez mais irônico, forte e sorria. Eu não conseguia o destruir. Não tinha jeito, eu iria para o inferno mesmo. Bem feito, para eu aprender a não entrar onde não sou convidada e nem me intrometer. Curiosa.

Já era fim de tarde quando minha mãe bateu de leve na porta do meu quarto. Eu não respondi e ela disse que Paula havia se suicidado. Tudo o que a sombra me falou, estava se profetizando. Quatro dias para a minha morte. Surtei em meu quarto quebrando tudo o que via pela frente. Meus pais nervosos invadiram meu quarto e ao ver meu estado deplorável se assustaram. Eu pirei. Fiquei maluca. Seres sombrios estavam ao redor do meu quarto, rindo, gargalhando.

-A culpa é minha! – eu gritava. –Eu invadi o terreiro do Preto Velho! – eu gargalhava. - Eu vou morrer! Eu vou para o inferno!

Lembro que fui jogada aqui nesse quarto fétido desse manicômio. Falta um dia para a minha morte. Já não sei o que é real. Esses seres vivem a minha espreita, sorrindo. São escuros. Ninguém tem coragem de entrar no meu quarto. Como disse, estou careca, sem dentes, sem unhas, as feridas cresceram ao ponto de minha mão estar começando a cair. Vermes saem por todas as saídas possíveis do meu corpo: anus, vagina, boca, nariz, ouvido, olhos. Um cheiro insuportável de carniça abraça o ar e estou aqui, a espera da morte, do inferno para aprender a controlar a minha curiosidade.

Marsha
Enviado por Marsha em 12/10/2012
Código do texto: T3929627
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