Nunca seja um traidor

Era o fim de uma tarde e o início de uma noite quando Clarice olhou pela janela da Nissan de seu marido. Finas gotas de chuva deixavam o tempo frio e sombrio lá fora, se combinadas com a estrada deserta à frente.

- Nossa! Que fim de mundo! – comentou ela. Daniel Royal era escritor de contos eróticos, muito inspirados em sua relação sexual com Clarice. Eles sempre viajavam para dar mais ‘inspiração’ ao rapaz.

- Já sei até o início da história: “Numa estrada deserta, seguia o casal, com suas emoções à flor da pele e seus desejos queimando o sangue em suas veias.”.

- Mas tá chovendo. – Clarice brincou.

- Não na história amor. – explicou. Tornou a se concentrar apenas na estrada, que começara a ficar escorregadia.

Clarice ainda não podia ver a cidade e a chuva começara a apertar.

- Daniel, precisamos parar em algum lugar. – afirmou.

- Onde? Estamos no meio do nada.

De repente, sem ter como prever ou evitar, Daniel perde o controle do carro e vai de encontro direto com uma árvore. O cinto de segurança e o air bag é o que os salva.

- Você está bem? – pergunta Daniel.

Clarice sai pela janela do carro, sem responder. Ela caminha até o porta malar e tira suas coisas de lá.

- Aonde vai? – ele pergunta.

- Procurar um hotel, sei lá. Fique aí se quiser. – ela diz, dando as costas para o carro e voltando para a estrada. – Vou esperar a chuva passar. – ele decide.

Decide então ligar o rádio enquanto esperava. A estática incomoda seus ouvidos.

- Não sei pra que tanta árvore. – do nada, o som da voz de Whitney Houston o assusta, mas não tanto quanto a figura encapuzada do lado de fora, distante do carro, recostada em um carvalho. Daniel desliga o rádio, mas a música continua tocando. Ele olha novamente para o carvalho, mas não há mais ninguém lá.

Assustado, Daniel sai, pelo mesmo lugar que Clarice e corre em direção à estrada. Ele não a encontra no caminho, mas comemora ao ver a placa escrita Littleshire logo à frente. Um pequeno estabelecimento, com a fachada repleta de rachaduras e de cor desbotada. Uma pequena cerca de madeira branca segurava um pequeno portão de mesma cor. Daniel ousou entrar naquele quintal e subir na varanda. Uma senhora, aparentando ter uns oitenta anos, abre a porta, com seus cabelinhos tão brancos e frágeis e seus olhos enrugados como ameixas com um azul bem claro no meio e uma camisola rosa e sandália de pano. – Deve ser o senhor Royal. Entre! – adivinhou.

- Clarice, ela está...

- Primeiro tome um banho. Vista as roupas do meu falecido marido. – ordenou.

Daniel não podia deixar de sentir-se um velho com aquela camisa xadrez e bermuda marrom bem grande, que precisou de seu cinto para não ficar caindo. Encontrou Clarice tomando chá na cozinha.

- Me abandonou lá fora! – gritou.

- Bom dia Daniel. – disse serenamente.

- Fala sério Clarice. – gritou outra vez.

- Daniel, você estava com medo da chuva. Eu não ia ficar te esperando. – explicou ela.

- Tanto faz. Eu vou chamar um guincho. Meu notebook ficou no carro.

A senhora Clarkson os interrompeu: - Meu sobrinho tem uma mecânica, não fica longe. Ele se chama Micael.

Depois de tê-lo explicado onde ficava a oficina, a senhora Clarkson obrigara Daniel a tomar café da manhã e a tirar um cochilo, pois havia ficado a noite inteira em claro. Clarice o acompanhou até a oficina, mas preferiu não entrar num lugar tão imundo.

- Boa tarde. Procuro o senhor Micael Clarckson. – disse a um senhor que, pela aparência, o lembrava o Papai Noel.

- Micael! – berrou.

Um jovem, aparentando ter uns vinte e cinco anos, com os braços e testa sujos de graxa, usando luvas amarelas e camiseta branca em mesmo estado, sua bermuda jeans surrada e havaianas pretas nos pés, saiu debaixo de um carro.

- Que foi Wilson?

- Esse engomadinho tá te procurando. – avisou.

Micael olhou Daniel de cima a baixo, reparando na roupa que ele estava vestindo.

- Passou pela minha tia Lisa? – constatou.

- Passei sim. Ela disse que você pode me ajudar a rebocar meu carro. Ele ficou na estrada.

Daniel guiou o jovem até lá e, para sua surpresa, sua carteira e sou notebook não haviam sido roubados.

- Ninguém se atreve a vir para cá. – explicou Micael.

- E por que não? – ficou curioso.

- Dizem que a jovem Jane Keppler foi morta e esquartejada aqui e seus pedaços foram enterrados por aí.

- Que bizarro. E o que aconteceu depois? – pergunta Daniel.

- Nunca encontraram o assassino. Dizem que Jane ainda anda por aí à procura de justiça.

De acordo com Micael, o carro demoraria bastante para ser restaurado. Enquanto esperavam, Clarice e Daniel encontraram um hotel simples e antigo para se hospedarem. Daniel precisava de ideias para seu livro, então procurou a livraria mais próxima e entrou. A balconista lhe deu um sorriso desconfiado, mas ele fingiu não ter visto. Procurou em várias seções, mas nada encontrou. Decidiu olhar as duas últimas prateleiras e os títulos o impactaram: ‘Amor & Sexo’, ‘Como trair seu marido’, ‘Sexo com consciência’, entre outros. Ele acaba pegando o livro ‘Como trair seu marido’ e o abre, quando outro livro cai lá do alto, aberto em uma página específica. Ele abandona o outro livro e pega o caído.

-‘Amor e Morte’. Que estranho! – diz ele. Daniel lê na página em caíra aberto.

- “Ela correu quilômetros e quilômetros, para fugir daquele monstro, mas ao cair em meio àquela lama, condenou-se à morte.”. – leu um trecho. Trecho esse que estava marcado com uma caneta preta.

Chegou até o balcão, mas não teve coragem de levar o livro. As luzes começaram a piscar a tempo de Daniel sair da livraria.

A rua estava tão deserta. Tão cedo. Eram apenas nove horas da noite e as lojas já estavam fechando. Em frente à porta do hotel, uma figura encapuzada, do outro lado da rua, o fez paralisar. A figura começou a se distanciar, entrando em outra rua.

Daniel correu para alcança-la. Viu-a caminhar para o fim da rua e entrar numa casa abandonada. Daniel rezou antes de entrar. Pedia a Deus para que seus pés os guiassem de volta ao hotel, mas suas preces foram em vão. Ele entra e, apesar da escuridão, consegue enxergar. No andar de cima, a figura encapuzada o aguardava. Ela derruba o casaco, mostrando-se completamente nua por baixo.

- Que... quem é você? – perguntou ele.

- Thomas, eu sabia que você viria. – diz, com lágrimas nos olhos.

- Eu não sou... – a garota o beijo, o impedindo de terminar a frase. Ela tinha uma pele tão pálida e macia, que jurava poder ver atrás dela, mas, em contraste com o corpo, tinha os cabelos tão negros quanto o céu lá fora, além de uma boca rosada e seus olhos frios e sem vida. Tocar naquela figura ‘divina’ era o ápice da vida de Daniel, apesar de ser casado com uma bela mulher. Não podia negar o incêndio que aquela bela jovem causava dentro dele.

- Eu sou o Thomas... seu Thomas. – repetiu ele, sentindo-se cada vez mais atraído.

Transaram ali, naquele chão coberto por um carpete empoeirado. Não se importaram com tamanha imundície.

Daniel acordou com a luz do sol em seu rosto. A garota com quem traíra sua esposa havia desaparecido. E ele percebera que passara a noite fora, sem dar notícias.

- Clarice, desculpe não dar notícia. – tentou se explicar.

- Você é louco? Pensei que tinha morrido. – Clarice enche o peito de Daniel de socos, percebendo que não estava adiantando nada. – Nunca mais suma assim. – Daniel a abraça, tranquilizando-a. nunca a havia visto tão apavorada quanto naquele instante.

- Tá tudo bem? – perguntou ele.

- Não ficou sabendo? Invadiram uma das casas mais antigas da cidade. Parece que foi uma família... se eu não me engano, foi da família... família Keppler. – informou. Keppler... Ele ouvira esse nome em algum lugar...

- Feriram alguém? – perguntou, ainda com o nome ‘Keppler’ em sua cabeça.

- Uma jovem de quinze anos está em coma no hospital. Não lembro de tê-la conhecido, mas já ouvi seu nome... Jane. Já ouviu? – agora ele podia ligar um nome ao outro.

- Jane Keppler. – disse, pensando alto.

- Não, é Jane Silverstone. – Clarice o corrigiu. Alguém estava tentando dizer algo a Daniel, começando com o livro ‘Amor e Morte’ e essa garota que morreu, Jane, na antiga casa dos Keppler.

Daniel pegou seu notebook e conectou o modem, para entrar na internet. – Jane Keppler. Littleshire – foi digitado na página do Google. Várias coisas apareceram, dentre elas, um perfil no site DeliciousGirl. Ele entrou no perfil e algo o surpreendeu. Flashes em sua memória o fizeram lembrar da noite anterior. A garota tão sombria e tão sensual era Jane Keppler.

Alguns dias se passaram e Clarice percebia o quanto Daniel estava distante, tanto na cama quanto relação a seu livro.

- Por que não escreve? Quero ir embora logo. – mas ele a ignorou. Precisava encontrar Jane outra vez, já que não a tirava da cabeça.

- Daniel! – chamou enquanto ele caminhava em direção à porta, desligado. – Daniel! – gritou, agarrando-o pelo braço. Automaticamente ele levantou o braço com violência, jogando-a no chão. Clarice bate com o braço na parede e o abraça, chorando. – Não, não vai! Amor, não vai! – ela pede, mas Daniel não consegue parar.

Ele espera sua amada Jane no mesmo lugar onde o casal teve sua primeira noite de amor. Jane demora, mas acaba aparecendo. Nua, como da outra vez, ela chama por Thomas e ele atende. Depois de transarem, Daniel decide não dormir.

- Acho que te amo Jane. – revela ele.

- Mas e sua esposa Thomas, não pode ficar com duas. E eu também te amo. – diz ela.

- Sabe Jane, temos que para.

Jane levanta-se, com sangue escorrendo pelos seus olhos. – Você não vai me abandonar Thomas. – ela diz, desaparecendo em seguida. Com um mau pressentimento, Daniel corre para casa, mas sua porta estava trancada. – Clarice, abra a porta! – grita.

Um grito apavorado de Clarice o estremeceu.

- Socorrooo! – grita outra vez. O barulho de algo caindo o faz começar a chutar a porta, torcendo para ser tão fácil quanto nos filmes. – Vamos! Cai, porta maldita! – xinga ele.

- Daniel, me ajuda! Nãããoo! – pede, desesperada. O último chute de Daniel derruba a porta, violentamente. Ele corre até o quarto e vê Jane estrangulando Clarice. – Pare Jane! – implorou.

- Só assim ficaremos juntos Tom. – revelou Jane.

- Jane eu vou com você. Eu entendi tudo: o trecho do livro, nossa transa na casa abandonada e a casa dos Keppler. Tudo era você. – Jane solta, lentamente, o pescoço de Clarice. – Você queria que eu entendesse. O Thomas matou você, eu sei. – Jane começa a gargalhar.

- Do que está rindo? – perguntou, confuso e desorientado.

- Thomas não me matou. – ao perceber que não seria interrompida pro ele, prosseguiu: - Ele era casado, mas era a mim que ele amava. Você tem os olhos dele sabia? Mas ele ia terminar comigo para ficar com a esposa dele e o bebê que esperavam.eu não podia perde-lo. Fui atrás da esposa dele e a estrangulei até a morte.

Daniel notou que, enquanto contava a história, seus olhos sangravam outra vez e seus pulsos também. Jane continuou: - Quando ele a encontrou morta foi atrás de mim com uma faca. Eu corri até a mata. Lutamos pela faca. Eu consegui pega-la e o acertei bem no peito. Eu não... – disse, caminhando em direção a Daniel. – Não podia viver sem ele, por isso cortei meus pulsos e me abracei ao corpo dele, mas ele se foi e eu fiquei... Fiquei esperando você. Mas eu não havia matado a esposa dele. Ela acabou dando à luz e seu pai nasceu Daniel, mas foi entregue a um orfanato bem longe daqui. Seu pai nunca voltou, mas você sim. É a cara do meu Thomas.

- Deixe Clarice viver. – ele implorou.

- Só se você ficar comigo. – ela afirma.

Clarice abre os olhos e está sendo acariciada por Daniel.

- Amor, está pálido. – afirmou.

- Você vai ficar bem.

- Alguém me atacou aqui. – disse ela.

- Acabou amor. – Ele lhe dá um beijo na boca, chorando.

- Por que chora? – pergunta ela.

- Fiz escolhas ruins, mas eu te amo Clarice. – afirma.

- Você vai embora? – constata ela, quando repara no rasgado da camisa dele, diretamente em seu peito. – Oh meu Deus, não! – ela grita. – Eu te amo.

- Diz que me perdoa Clarice. – ele pede.

- Você não pode... morrer. Eu tô grávida. – Clarice revela.

- Você tem que cuidar dessa criança. Dar-lhe amor. Promete?

- Eu juro! Daniel limpa as lágrimas do rosto dela. Uma mulher parada em frente à janela aparece. Os dois dão as mãos e saltam de lá, mas Clarice não vê ninguém lá embaixo. Se passam alguns meses e Clarice está perto de dar à luz. Ela não sabe o que fazer sempre que passa em frente a um orfanato, mas jurou dar amor àquela criança e seria isso que ela faria.

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Olá, esse é mais um conto da minha amiga Carol S. Lembrem-se que os comentários são muito bem vindos. Boa leitura!!

Caroline Souza
Enviado por Camilla T em 19/10/2012
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