Noite de Cão

Não tinha nome, nunca precisou de um. Acostumara-se a ser xingado, por isso um nome não fazia falta, preferia ser conhecido por aquilo que era: cachorro, vira-lata, cão-sem-dono, pulguento, fedorento, morrinhento, bicho feio, coisa ruim, monte de pelos e por aí vai.

Era um cão, um cão que vivia na rua, era livre, e sua liberdade incluía não estar preso a um nome. Não, um nome não era para ele, um nome era coisa destinada aos cães que viviam como escravos de donos humanos. Aquele cão era independente, vivia a perambular pelas ruas, de lá tirava seu sustento, apanhava, pegava as cadelinhas de madame, roubava lingüiça no açougue e urinava nos postes. Vida de cão, uma bela vida de cão.

Mas é claro nem tudo é perfeito, e nosso amigo cão às vezes também tinha que descansar e para isso cada noite ele achava um local diferente, podia ser um viaduto, uma marquise, debaixo de um banco de praça ou dividindo o cobertor com algum morador de rua.

No entanto aconteceu do cachorro se encontrar em uma parte desconhecida da cidade, a noite caia fria e escura, não havia abrigo à vista, não havia ninguém à vista. Mas os olhos miúdos do cachorro divisaram um grande portão de metal e lá dentro era possível ver grandes monumentos de pedra e cruzes apontando para o céu. O cachorro aproximou-se das grades do portão e farejou, sentiu um cheiro podre, mas também o aroma agradável das flores deixadas pelos vivos a fim de agradar os mortos. Ele então espremeu seu corpinho magricela entre os vãos do portão e entrou, vasculhou tudo com o focinho, ali não havia comida, pelo menos nada fresco, olhou os túmulos, as cruzes, as lápides e os jazigos, escolheu um, levantou a patinha e urinou marcando seu território.

De repente ele ouve um pio.

O cachorro olha sobressaltado, seu instinto de sobrevivência se aguça, ele vê então uma coruja, ela pia sem parar como para querer espantá-lo de seus domínios. O cão porém é corajoso, corre latindo ao encontro da coruja até afugentá-la de seu poleiro. Satisfeito ele continua sua ronda entre as moradas dos mortos. E aí ouve outro barulho, é uma algazarra sem fim, gritos finos, pareciam ser choro de crianças. O cão mais uma vez procura a origem de tamanha balbúrdia, aproxima-se bem devagar para não ser notado e encontra em sua frente a coisa mais detestável que poderia: um casal de gatos enamorados rolando de amor sobre os jardins plantados nas covas do cemitério.

Se ele falasse talvez ele agora xingasse, mas ao invés disso ele latiu raivosamente. Os gatos coitados, abandonaram suas núpcias e fugiram dali tal como a coruja.

O cão agora reinava sozinho, vasculhava tudo e nada via, até os grilos se calavam a sua passagem. O reino dos mortos agora tinha um rei, e este rei era bem vivo, este rei era o cachorro.

Porém nosso amigo estava cansado, cansando com frio e com fome. Nada podia fazer pela fome, pouco podia fazer pelo frio, mas pelo cansaço ele podia fazer algo, escolheu então um jazigo e em sua porta ele se alojou, acreditando que teria enfim o tão merecido repouso.

Só que a meia-noite alguma coisa aconteceu, a brisa noturna parou de repente, o frio se fez mais intenso, a lua desapareceu entre as nuvens. O cão ergueu as orelhas, depois a cabeça e por fim levantou-se por completo. Algo estava acontecendo.

Um cheiro podre invadiu tudo confundindo o apurado olfato canino. O cachorro ganiu um pouco, mas não era medo, era apenas incompreensão pelo o que acontecia.

Então ele ouviu um som de terra sendo remexida, ouviu lamentos e choros, ouviu passos brandos aqui e ali. Alguém havia chegado, e não era apenas um, eram muitos.

O cão ainda em alerta vigiava tudo, quem ousaria invadir seus domínios recém conquistados?

Como que para responder a questão ele vê surgir medonhas e desgraçadas criaturas, homens e mulheres desfigurados e carcomidos pelos vermes, trotam em marcha fúnebre e de suas bocas saem apenas lamúrias. Ele reconhece aquelas criaturas como aqueles que o humilham todos os dias, que o chutam pelas ruas, que o xingam de todas as blasfêmias, que lhe roubam a paz e lhe negam o alimento. Eram seres humanos, mortos, mas humanos.

De repente as criaturas começam a exclamar:

“Vá embora! Vá embora, este lugar não pertence aos vivos!”

Ora essa, como podiam dizer isto? O cão não falava é claro, mas entendia a língua dos homens. Não, não entregaria de novo aquilo que era seu!

A turba de mortos vivos se aproximava, o cão permanecia impassível e corajoso. Eles estavam cada vez mais perto, perigosamente perto, era preciso fazer algo. O cão então fez o que mais sabia fazer: latiu.

E seu latido por um momento parou o avanço daqueles zumbis famigerados, nunca antes encontraram um ser assim, que desafiava sua presença.

Entretanto eles estavam decididos, continuaram sua investida.

O cachorro não viu outra opção e fez o que todo cão faz ao se sentir ameaçado, ele atacou. O primeiro a sentir seu ataque mal acreditou quanto teve o osso de sua perna descarnada arrancada pelo imundo cão, caiu ao chão se despedaçando. O cachorro investiu sobre os outros, latindo, rosnando e babando. Um medo antigo, oriundo dos tempos em que ainda eram vivos, invadiu o coração podre dos mortos, a correria e gritaria eram de outro mundo.

O cão arrancava ossos e mais ossos, provava dos restos apodrecidos da carne contaminada daquelas criaturas desgraçadas e os mandava de volta para o túmulo, de onde nunca deveriam ter saído e onde voltariam a descansar.

O silêncio voltou a reinar, o cachorro olha em volta e contempla o seu feito, há ossadas por toda parte, ele fareja uma por uma, escolhe uma mais fresca e se põe a mastigar, não está mais cansado, tão pouco sente frio, a correria o aqueceu, e a fome? Ora, agora havia comida de sobra.

O vento voltou a sobrar, a lua mais uma vez iluminou a Terra. O cão olha o espetáculo, deixa de roer seu osso por um instante e uiva agradecido por encontrar um lugar para chamar de seu.

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 25/10/2012
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