Para A D S e Zeni

A jovem de pele alva desperta na cama forrada de cetim, mesmo tecido com o qual ela própria está coberta. Vira-se para o lado oposto, ainda de olhos fechados. Abraça-se ao lençol, como se fosse o ursinho de pelúcia que deixou em casa quando veio para um final de semana no hotel campestre. Foi por exigência do namorado que o bichinho não os acompanhou. Embora fosse apenas um brinquedo, despertava ciúmes no rapaz. Ele exigia exclusividade de atenção por parte dela, quando o casal estava junto. A moça satisfazia a contragosto essa vontade do amor humano de sua vida. No íntimo sofria uma reação emocional que misturava pena do "bichinho" e ressentimento de Otto. Em relação a este, algumas vezes chegou a experimentar uma raiva que beirava ao ódio. Nada que não se desfizesse em meio aos carinhos recebidos. Tateou as mãos sobre o leito e não sentiu a presença do moço. Nem sentiu seu perfume inconfundível. Estranhou a ausência, visto que tinha o sono pesado e quando dormiam juntos, era ela quem o despertava. Emitiu um bocejo demorado e esfregou as pálpebras antes de abrir os olhos. Quando finalmente visualiza o ambiente, percebe um aditivo que antes não constava do mobiliário ou da decoração do quarto: um cortinado que pendia do teto, envolvendo o leito. Era de um transparente puxando para o bege e composta por fios cujas características ela conhecia muito bem. Olha para mais adiante e vê que uma cortina semelhante, com pequenas esferas pregadas no tecido, encobre também a janela. Pensa estar mergulhada em sonho. Mas, consciente de que já se encontra desperta, de posse de todos os seus sentidos, volta-se em ato instintivo na direção da porta do banheiro e enxerga um "cortinado" igual na entrada do ambiente. Não precisou ficar pensando por muito tempo, perder-se em conjecturas para fazer suas deduções. O medo pânico de certo animal fizera com que ela tivesse desenvolvido uma certa intuição sobre o que ocorria. Enquanto se debatia em pavor, sem que ela quisesse uma de suas mãos tocou a malha sobre a cama. Uma espécie de visgo no tecido dava-lhe a certeza definitiva. O bicho que lhe causava pavor só em pronunciar o nome ou mesmo ouvi-lo saindo da boca de outra pessoa era a causa do medo insuportável. Não lhe restava uma sombra de dúvida, uma só que fosse, de que o animal horrendo estava na origem de tudo o que via. O coração batia mais acelerado do que um supersônico aéreo. Tinha que sair do leito. Não só para se livrar do que lhe causava medo mas porque estava a ponto de urinar na roupa. Mas, e a coragem para alcançar tal feito? Deixar aquele emaranhado sem tocá-lo era impossível. Um sopro forte do hálito ainda quente, quem sabe pudesse desmanchar aquela trama repulsiva? Juntou forças que não tinha e atirou um sopro diretamente sobre o "cortinado". Inútil. Tudo continuou como dantes. Sem querer postou a visão sobre o tapete debaixo da cama. GRITOS! MÃOS CRISPADAS! OLHOS ENCOBERTOS PELAS PÁLPEBRAS CERRADAS!... assim reagiu. O barulho que emitiu podia ter alcançado altos decibéis, mas foram breves. O tempo de um suspiro. Não pôde chamar Otto. Tentava, mas já não podia exteriorizar nenhum som. Faltava até o fôlego mínimo para continuar respirando. Pânico! Horror! PARALISIA TOTAL! Dois olhos arredondados, gigantes, circundados por uma pele amarronzada a espreitavam. A criatura que despertava o pior de seus medos estava ali, a poucos centímetros da cama. Para ela, a morte era fato certo. Por um ataque do monstro. Ou pior: de medo. Seu próprio medo. Imensurável, catatônico medo.
Lembrou-se da machadinha que Otto levou, junto com outros instrumentos, necessários, segundo ouvira dele, para as caminhadas pelo bosque que contorna o hotel. Em certos trechos - dissera o namorado -, galhos pendentes das árvores podiam dificultar a passagem e nessas ocasiões, a ferramenta de aço com cabo de fibra sintética dura - (escolhera o mais ecológico possível e politicamente correto) - seria um facilitador. Indispensável, até.
Munida de uma coragem e disposição física que não saberia dizer de onde vieram, deixou a cama de um salto e se atirou sobre a cômoda onde o amado tinha posto a ferramenta. A tal peça do mobiliário ficava junto ao portal de acesso ao toilette. No instante em que pegou no cabo, o monstro já estava no interior do cômodo mais íntimo da suíte e, com desfaçatez intolerável, sorriu em sua direção. O cúmulo! Não se contentava em aterrorizá-la ao ponto do desespero mortal e ainda zombava de seu sofrimento, fazendo ares de que sentia prazer com a situação à qual ela estava submetida. Tão rápida foi na ação que transpôs a cortina sem perceber qualquer sensação de gosma sobre a pele.
Com rapidez insuspeitada, fez volteios com a machadinha em torno da A-RA-NHA gigante. Uma A- RA-NHA, sim, eis sua i
nquestionável certeza. Ainda ouviu um som esguichado vindo da cabeça que decepou. Intempestivamente, saiu correndo quarto afora e só se deu conta de que vestia apenas uma blusa fina e curta quando, já sentada em uma poltrona, ouviu uma voz feminina:
- Senhora?
A moça usava uma roupa que ela reconheceu como sendo uniforme do hotel e procurou lhe explicar:
- A toalha era o que tínhamos à mão. A polícia não deixou que um de nós pegasse uma peça de roupa no seu apartamento.
- Para não alterar a cena do crime. É um procedimento padrão. - falou o homem com um distintivo de metal no bolso do paletó - Quando a senhora estiver em condições, teremos que ouvi-la.
- Não hoje, necessariamente. Mas a coleta de sangue terá que ser feita hoje. Agora mesmo, infelizmente. - A voz do outro policial tinha um tom mais complacente.
- Sangue?.. AhAaaaaa! - o grito de pavor da hóspede quase despida espalhou-se em eco ao ver suas mãos tinturadas de vermelho.
  
- Tirem o sangue daquela coisa de minhas mãããos!
Várias outras mãos foram necessárias para impedi-la de deixar correndo o lugar.
- Uma PIIIAAAiaaaa!
- Senhora!
A voz firme do policial que segurava um de seus braços com mais vigor parecia tê-la feito capaz de voltar a pensar com alguma racionalidade.
- Uma toalha molhada, por favooorrr... - O soluço impediu que continuasse falando e transformou sua voz num fiapo de som.
- Façam logo a coleta antes que as lágrimas retirem o sangue - ouviu de um policial.
- Tirem logo essa ... coisa imunda de minhas mãos!
- Enquanto colhem o sangue de suas mãos, responda: a senhora viu quem atacou o Senhor Otto?
- Otto? O que tem o Otto? ONDE ele está? O que houve com ele?
- Deu para ver o rosto do assassino?
- Sabe dizer pelo menos se era alto...magro, de pele clara ou escura?
- Ele tinha inimigos? Um assassinato tão bárbaro, decepando a cabeça da vítima só em casos de...

Alfredo Duarte de Alencar
Enviado por Alfredo Duarte de Alencar em 04/11/2012
Reeditado em 05/11/2012
Código do texto: T3969012
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