Quando os Mortos nos Ouvem

Eu era criança, uma simples e pequena menina, sempre retraída, sempre sem amigos, mas nunca sozinha, sempre tive alguém com quem conversar. Eu conversava com os mortos, sempre conversei com eles, eram minha única companhia, os únicos a me entender. Conversava com os mortos, mas os mortos não conversavam comigo, apenas me ouviam em seu silêncio sepulcral. Tudo acontecia naquele adorável lugar onde passei os momentos mais felizes de minha infância, na verdade o único lugar onde tive lampejos de felicidade. Eu visitava o cemitério às escondidas, ia a qualquer hora do dia ou mesmo da noite, acompanhava velórios à distância, sempre comovida com o choro de despedida dos vivos, mas depois de tudo terminado eu era a primeira a dar as boas vindas ao novo morador do local. Alguns coveiros notavam minha presença, mas com o tempo aprenderam a me ignorar, era esse o papel dos vivos, me ignorarem, faziam isso ali, faziam na rua e também faziam em minha casa.

Mas casa? Como posso chamar aquilo de casa? Uma casa é um lar, e minha casa era tudo menos um lar, a única coisa que eu tinha lá era tristeza, dor e desespero. Minha mãe sempre estava na rua, atrás de suas preciosas pedras de crack, nos poucos anos que vivi em sua companhia me lembro apenas das vezes sem conta em que sua barriga crescia e desaparecia, às vezes trazendo mais um irmãozinho infeliz e doente para o mundo, às vezes terminando em um aborto provocado no banheiro de casa, já meu pai a ignorava por completo, era também um viciado, um viciado e bandido, ladrão, assassino e estuprador de criancinhas. Meu pai abusava de mim, tirou de mim a inocência da infância juntamente com um pouco de meu sangue.

Não, aquilo não era um lar. Meu verdadeiro lar era ali, junto daqueles que já se foram e ainda continuavam presentes nos nomes gravados na pedra, nomes que ainda não sabia ler, por isso inventava para eles meus próprios nomes, cada túmulo um ser diferente, poderia ser um rei ou princesa, um herói ou uma heroína, tudo que quisesse, a dignidade que talvez não tivessem tido em vida eu dava para eles em morte.

Infelizmente eu não era como eles, eu tinha necessidades dos vivos, e isso incluía alimentação, e o único lugar onde às vezes poderia encontrar algum alimento era em minha casa, por isso eu tinha que voltar lá constantemente.

Foi numa tarde quente qualquer que tudo aconteceu, vi em frente a minha casa uma viatura da polícia. Junto dos policiais um de meus vizinhos diz:

- Veja, é a filhinha dela, coitadinha, agora realmente está só.

Me aproximei devagar, um policial vem até mim e se abaixa.

- Precisamos conversar amiguinha.

Eu permaneço no meu silencio enquanto o policial tenta me explicar que ela se foi, minha mãe morreu, ao que parece foi assassinada por meu pai. Peço para ver o corpo, os policiais resistem um pouco, mas por fim deixam.

Entro em casa sozinha e a vejo, os olhos roxos de tanto apanhar, o sangue ainda escorrendo pela boca, a roupa rasgada, sinal de um corpo violado pela última vez, a barriga mais uma vez crescida, abrigando um feto que nunca irá nascer. A cena é deprimente, lá está a mulher que me gerou, morta. Me aproximo dela e toco sua face, apesar de sempre conviver com os mortos é a primeira vez que toco um deles, aquela mulher nunca significou quase nada para mim, mesmo assim um desespero e uma dor tremenda tomam conta de meu ser, eu começo a chorar sem parar e abraço o seu cadáver. Os policiais, os vizinhos e os curiosos se comovem todos e me retiram dali.

O tempo passou, sou levada para um abrigo. A vida melhora um pouco agora, começo a ser educada e finalmente sou capaz de ler. É mais difícil agora visitar o cemitério, mas sempre consigo com a desculpa de visitar o túmulo de minha mãe, e na verdade faço isso muitas vezes, vou lá e converso com ela.

- Essa semana estou aprendendo a multiplicar e a dividir mamãe – digo olhando para uma cruz pobre de ferro retorcido sobre uma cova de terra – em breve vou dominar toda a tabuada.

Às vezes eu gostaria que ela falasse também, como eu gostaria!

Mal sabia eu que meu desejo estava por se realizar.

Me lembro pouco do que aconteceu naquela noite. Estava já em minha cama quando ouvi o primeiro tiro, as crianças e os funcionários do abrigo gritaram e começaram a correr. Eu tentava correr também, mas ouvi uma voz que me fez gelar até a alma:

- Cadê ela? Cadê aquela vadiazinha?

Eu conhecia aquela voz, era a voz de meu pai.

Tentei me esconder, procurar por abrigo, mas era inútil, ouvia ao longe meu pai abrir caminho atirando, berrando e batendo em qualquer que fosse que barrasse seu caminho, por fim ele me descobriu:

- Vem aqui sua putinha, putinha igual a desgraçada da mãe. Achou que iria fugir de mim achou?

Ele me puxou pelos cabelos, me arrastava como se eu fosse menos que um animal. Estava enlouquecido pelo efeito das drogas e armado como estava eu não podia alimentar nenhuma esperança. Ele me arrastou até a rua e me jogou no banco de trás de seu antigo Opalla, antes disso ainda me deu uma bofetada e cuspiu em minha cara, depois arrancou com o carro deixando para trás um abrigo cheio de crianças assustadas.

-Vou te levar para junto da ordinária da sua mãezinha! Pensa que não sei que visita aquele cemitério? As suas esquisitices vão acabar hoje menina.

Ele realmente cumpriu o que disse, acelerou seu carro contra os portões do cemitério, atropelando belos jazigos até finalmente parar.

- Vem sua puta de merda!

Senti mais uma vez meus cabelos sendo puxados e arrancados. Inutilmente eu chorava, ele me bateu novamente e me atirou na terra, junto a uma cruz retorcida de metal.

- Agora estão as duas juntas, mãe e filha, duas cadelas!

Eu percebi então que aquela era a vala onde estava enterrada minha mãe.

Meu pai começou a retirar o cinto e baixar as calças.

- Não, por favor, não!! – eu gritava.

Era inútil. Ele se deitou sobre mim, me despindo a força e tentando concretizar seu ato, eu lutava o quando podia, não queria mais uma vez servir aos desejos insanos daquele monstro.

Foi aí que ajuda veio.

As mãos dela surgiram sobre a terra, seguraram os braços de meu pai no chão o imobilizando e dando o tempo necessário para que me livrasse e me levantasse.

- O que é isso? – ele perguntou assustado.

Era ela, mamãe havia voltado.

Ela foi saindo de dentro da terra, seu corpo já apodrecido e atacado por vermes, mas era ela sim. Sua boca estava rasgada, seus olhos ainda roxos, ela olhou primeiro para mim e depois para meu assustado pai e disse:

- Isso nunca mais irá acontecer.

Ainda segurando o braço de meu pai ela o torceu. Ele gritou de dor.

- Cadela! Você tá morta!

- Voltei para corrigir os erros que cometi com minha filha. – ela respondeu e naquele momento eu me comovi.

Então começo a ouvir murmúrios e passos, vejo atônita que outros mortos se levantam de seus túmulos, todos se dirigem até meu pai, ele grita desesperado, mas nada pode fazer, em poucos minutos vários cadáveres cobrem seu corpo. Escuto seus gritos, ouço o barulho de carne e ossos serem arrancados, os mortos se banqueteiam com sua carcaça até não sobrar mais nada. Depois disso eles se aproximam de mim:

- Não tenha medo minha filha – diz minha mãe.

- Nunca temi os mortos, apenas os vivos – respondi.

- Sim – disse ela – nos fizemos você sofrer, mas agora sei o quando errei, agora terei que penar por um tempo até conseguir a redenção pelos meus erros, mas nunca me arrependeria se você não viesse todos os dias e conversasse comigo, nos últimos tempos me senti mais viva do que jamais fui.

Ela se aproximou de mim, mesmo com o cheiro repugnante que saia de seu corpo eu não me contive e a abracei. Um verdadeiro abraço de mãe e filha.

- Agora minha filha, volte para o mundo dos vivos e deixe os mortos pagarem seus pecados. Viva, você agora está livre.

Me despedi dela e de todos aqueles meus amigos mortos uma última vez e voltei para o abrigo, todos estavam preocupados comigo e me receberam de braços abertos.

Cresci, nunca mais voltei aquele cemitério, mas guardo aquelas imagens na lembrança e até hoje peço em minhas orações pela memória de minha mãe e de todos aqueles que me salvaram naquele dia.

Alicia Alves
Enviado por Alicia Alves em 11/11/2012
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