Fim dos Dias - Sexo, Drogas e Rocko

Pesadas gotas de suor brotaram das têmporas avantajadas do vigia e escorreram pelas suas costeletas grisalhas, naquela que seria a noite mais quente da história. Rocko Ramirez roncava ruidosamente - como um velho e bem alimentado porco – provavelmente em razão das seis fatias de pernil que comera no jantar. Nem mesmo o som do pequeno aparelho de televisão, à sua frente, conseguia rivalizar com a sintonia retumbante que escapava de seus lábios carcomidos. Seu peito largo e peludo dançava ao som dos intervalos assobiados.

Definitivamente Rocko não era o melhor vigilante do pedaço. Não por ser dorminhoco ou por só ter um olho, mas sim pela falta de velocidade e capacidade quase nula de reação. No entanto, isso pouco importava, pois ele era grande, mal-encarado e, sobretudo, disponível, afinal, poucas pessoas trabalhariam em pleno natal.

Na verdade, pouco importava os predicados do ogro preguiçoso e caolho, ele era apenas um zelador que portava uma escopeta. Não que a arma fizesse qualquer diferença ou que ele soubesse como usá-la, o fato é que ninguém ousaria invadir o pequeno laboratório de drogas de Juan Paulo, especialmente, naquele dia. O homem era tão estúpido, que nem havia se dado conta disso, quando um sinete soou na parede, ele acordou sobressaltado.

- Rocko, Rocko, você está dormindo mais uma vez, seu verme maldito? – perguntou uma voz feminina através do interfone.

- Samanta? – ele devolveu a pergunta, com a voz rouca repleta de dúvidas.

- Não, é o Papai Noel!

- Ah, sim, me desculpe senhora – Rocko disse, lembrando-se que as duas mulheres do chefe, que estavam trabalhando naquela hora, possuíam o mesmo nome – Seria a Samanta Branca ou a Samanta Negra?

- Não interessa. Traga rápido uma garrafa d’água e dois copos.

- Tudo bem, Senhora Samanta..., Samanta – ele falou visualizando as duas beldades que faziam a alegria de Juan Paulo. Uma era loura, de cabelos cacheados, olhos verdes, corpo pequeno e esguio. A outra tinha a pele azeitonada, cabelos escuros, cortados bem curtos, dentes absurdamente brancos, quadril voluptuoso e uma cintura diminuta. A primeira era a Samanta Negra e a segunda a Samanta Branca - exatamente, o chefe tinha um senso de humor duvidoso. Às vezes, Rocko pensava que Juan criava essas coisas só para confundi-lo - qualquer outra pessoa teria certeza.

Rocko Ramirez caminhou lentamente na direção do frigobar, que ficava do outro lado da antessala reforçada, agarrou uma garrafa com a mão esquerda, a única que ainda lhe restava os dedos, equilibrou os copos sobre o gargalo e voltou rumo à porta do cofre. Com cuidado e muita dificuldade abriu uma portinhola metálica, colocou as coisas sobre uma bandeja e empurrou-a de volta para o interior. Em um ato de puro impulso, se curvou em direção ao vão e, antes que a portinhola se fechasse, avistou os seios escuros e belos da Samanta Branca. Seu gorduroso coração acelerou de modo frenético e ele tossiu compulsivamente. Os batimentos só retornaram a cadência normal, na hora em que ele olhou para mão dilacerada e recordou-se do chefe. A imagem das duas completamente nuas, trabalhando na sala ao lado se dissipou rapidamente, e de imediato surgiu a figura de um imenso cutelo ornado de gotas vermelhas. Um calafrio extremamente cortante, tal qual o aço da arma que permeava seu imaginário, escalou cruelmente sua espinha torta e ele tremeu quando a sensação alcançou o seu pescoço.

Ainda trêmulo sentou-se em sua cadeira e aumentou o volume do televisor. As fatias de pernil dançavam alegremente dentro de seu estômago monstruoso. Trocou de canal algumas vezes e quando percebeu que todos compartilhavam as mesmas imagens, resolveu prestar atenção as informações. Após longos minutos de consternação, contemplando fogo, catástrofes, pragas e mortes. Por intermédio do seu único olho, bem arregalado, refletindo o horror que a caixa de cenas transmitia em tempo real, enfim compreendeu que era o fim.

Após milhares de equívocos em seus 53 anos de idade, dessa vez tinha certeza. O apocalipse finalmente havia chegado.

O telefone preso ao cinto, que circundava sua imensa anca, tocou por três vezes enquanto o nome de Juan Paulo piscava no visor. No entanto, antes do quarto toque, Rocko arremessou o celular na parede criando uma nuvem de fumaça. Decidiu que não atenderia novas chamadas até o fim de sua vida. Após alguns segundos, concluiu, obviamente, que também não ligaria para mais ninguém. Não que realmente quisesse falar com alguém para se despedir, não tinha amigos ou mulher. Seu pai estava morto e sua mãe já não falava com ele por quase 30 anos. Nunca a culpara, afinal não era fácil ser genitora de um bandido, viciado e perigoso, condenado por estupro. De qualquer maneira não ligaria para ela. Porém, se o telefone não estivesse quebrado, talvez tivesse feito uma última ligação, o disk-piada sempre fora bastante tentador.

Por um breve momento, lembrou-se do desperdício que havia sido sua existência. O medo constante. A ignorância desenfreada. Os crimes e pecados. As dores permanentes e lancinantes. Como o fatídico dia que Juan Paulo arrancara seu olho, por ter espiado uma de suas mulheres, ou no dia em que ele despedaçara seus dedos, quando foi pego roubando um saquinho de cocaína. Um homem cruel, ele pensou enquanto passava os dedos pelas cicatrizes espalhadas pelo corpo. Contudo, a única pessoa que lhe dera uma segunda chance e algumas outras mais. Sua vida era uma lástima e terminaria em breve – como todas as outras.

Uma lágrima poderia ter surgido, mas, ao contrário, um sorriso sinistro nasceu em sua cara deformada, castigada pelas drogas. Rocko – como fora apelidado pelo seu chefe, pois tinha o mesmo semblante do boxeador no final do filme – estava radiante. Pela primeira vez em uma eternidade, sentia-se vivo novamente, apesar da insuportável azia proporcionada pela pesada carne de porco.

Na hora em que a campainha tocou, Rocko já sabia o que fazer. A câmera de vigilância mostrava o rosto de Juan Paulo cheio de feridas e lacerações. Pústulas, ele pensou antes de falar:

- E ai chefe?

- E ai é o caralho, o mundo está de cabeça para baixo e você não atende a porra do seu telefone, seu merda!

- Desculpe chefe.

- Abre essa porra logo!

- Um minuto chefe.

Sem se apressar, ele esfregou o olho restante. Apoiou a escopeta no braço em que estava a mão que lhe faltava dedos e arrotou. Em seguida, cerrou com força os dentes e abriu a pesada porta de metal. Juan Paulo por pouco não riu no momento em que viu o cano da arma, ato contínuo, recebeu uma imensa medalha de chumbo no peito e centenas de fragmentos ao redor. O sorriso se contorceu em uma careta, e o último suspiro foi imediato. Uma morte bem rápida – era o mínimo que Rocko podia dar ao seu chefe. Um último presente ao único amigo.

O, agora, “sem chefe Ramirez” carregou, sempre com dificuldade, o corpo do amigo para dentro. A mão desprovida latejava um pouco, o olho sortudo coçava um bocado, mas nada disso importava. A felicidade germinava em seus poros, quase tão intensamente quanto à maldade. Quase.

O ciclope pegou o imenso cutelo, que estava no compartimento de gelo do frigobar, se abaixou ao lado do companheiro tombado e lançou a lamina gelada na altura da garganta. E, por um segundo, teve inveja do sujeito. O gume congelado trespassou a carne quente e uma nuvem carmesim surgiu imediatamente. Três golpes subsequentes foram suficientes para separar cabeça do corpo. Um belo trabalho, ele se gabou em silêncio.

Com a ponta do cutelo tingido de escarlate, Rocko bateu duas vezes na porta do cofre. A portinhola se abriu e rapidamente ele ergueu o que restava do chefe – a proximidade do apocalipse, de modo insólito, havia lhe deixado ágil e astuto.

- Meu deus, o que houve Juan? – uma das Samantas disse para a cabeça cheia de feridas.

- Ele disse para você abrir a porta.

- Por quê ele mesmo não diz o que quer, Rocko?

- Está com um problema de garganta – na realidade, está sentindo a falta dela, pensou consigo, escondendo um sorriso.

6611 caracteres – sem espaço - se passaram antes que a porta fosse finalmente aberta. Porém, como a paciência era um de seus maiores defeitos, ele esperou calmamente com a escopeta em riste, até o momento em que o rosto claro e cheio de sardas surgiu no seu limitado foco. Sem pestanejar, chutou a cabeça “do cabeça” para dentro da sala, ao som de gritos de puro horror e acertou com o punho no rosto da sua anfitriã, um soco – que há tempos teria sido apenas um tapa. Samanta Branca pulou em seu pescoço, mas ele se desvencilhou acertando o cabo da arma nos dentes mais brancos que já tinha visto. Lascas disformes voaram da bela boca e a moça caiu de bruços perto de sua xará.

- Pronto, acabou a confusão. A partir de agora você é Samanta “sorriso-torto” e ela será Samanta “olho-roxo”.

- Seu monstro imbecil, você vai se arrepender disso! – a mulher com a boca ensanguentada falou entre os soluços.

- Muito cuidado meninas, ainda posso inventar novos nomes – o artista disse, encarando os manequins mais belos e nus que existiam.

- Rocko, por favor, o que é que você quer? – perguntou a menina de grandes olhos verdes e seios pequenos.

- Para começar não me chame mais assim, meu nome nunca foi Rocko. Me chamo Jezus Ramires. JEZUS, com Z de Zinco. Em segundo lugar, podia dar um beijo bem quente em sua amiga nervosinha, enquanto eu fico mais à vontade – disse ele, afagando com vagar o cano de seu instrumento de trabalho.

As fêmeas se beijaram entre sangue, restos de dentes, catarro e lágrimas. O herói se despiu, tentando lembrar o motivo pelo qual havia abandonado sua vida de estupros. Os olhos famintos percorreram a paisagem maravilhosa e se detiveram na enorme duna branca que emergia da mesa. Sexo, drogas e..., que se foda o Rock and Roll, Rocko pensou enquanto acariciava sua pequena rola.

- Deus é realmente misericordioso, me deu uma última chance de ser feliz, balbuciou para si e caminhou até a montanha de perdição. Olhou sem constrangimento para a dupla de desejo, que não respondia com qualquer reciprocidade no olhar, assoviou baixinho e aspirou a maior quantidade de pó branco que conseguiu. Chupou a droga pelo nariz, tal qual um mergulhador antes da apneia e balançou cabeça freneticamente, como um “concurseiro” de air guitar. Franziu o cenho, até porque era todo cenho, revirou os olhos e chacoalhou suas bochechas flácidas.

O mundo era belo novamente.

Mas, como tudo que é bom dura exatamente o tempo que precisa durar. Rocko Jezus Ramirez foi assaltado por uma agonia crescente, que se divertia torturando seu peito. Sentiu uma punhalada excruciante, rompendo suas entranhas amareladas e podres. Soltou um grunhido estranho, uma mistura lamuriosa de dor e desapontamento.

Um cara como Rocko não poderia ficar para trás, era um cordeiro especial que precisava ser arrebatado.

Uma torrente de liquido viscoso escorreu pelas suas pernas finas e arqueadas. Dejetos lamacentos percorreram os sinuosos caminhos impressos na pele, fruto das varizes volumosas, e alcançaram o piso frio. Uma poça dourada coberta por lodo marrom demarcou o local da queda. A cama estava pronta!

Tombou como uma das torres geminadas, talvez como as duas. Encarou a escuridão do teto e viu a cortina da vida se fechando lentamente. Uma gota indolente de água e sal ameaçou escorrer do olho teimoso, mas ele a puxou de volta.

Merda - foi o seu singelo e derradeiro pensamento.

O fato é que não importa quando; hoje, na próxima semana, daqui a um ano ou no fim dos dias – fatias de pernil são como agiotas velhos sem Alzheimer, sempre voltam para cobrar o seu preço.

RSollberg
Enviado por RSollberg em 13/11/2012
Reeditado em 13/11/2012
Código do texto: T3984213
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