-Dr. Ronaldo que bom, estou tão feliz – disse a senhora apertando a minha mão, era simpática, mas eu e Roberta estávamos exaustos e o bebê estava dormindo.
            -Em que posso ajudar? – perguntei tentando ser simpático.
            -Sou a Dora, sua visinha, é muito bom saber que o novo médico da cidade vai morar bem na minha frente – ela falava e apertava a minha mão ao mesmo tempo, suas mãos eram suaves e molhadas.
            -Claro, é que tivemos um dia cheio com a mudança – tentei me explicar, a expressão facial da mulher mudou imediatamente, o sorriso desapareceu.
            -Sei – retirou a sua mão da minha – passar bem.
            Fechei a porta, achei que ela praguejou, mas não tinha certeza, Roberta estava sentada no sofá, com roupa de ginástica, uma expressão de cansada, prendeu os cabelos no alto da cabeça, estava do meu lado nos momentos difíceis, mas já não tinha certeza do seu amor.
            -Quem era? Que loucura bater na porta de alguém uma hora dessas? – disse colocando a mão na cabeça e completou – isso é bem coisa de cidade pequena, vai se acostumando.
            Roberta odiava cidades pequenas, achava que todas eram cruéis, que a violência em cidades pequenas era outra, enquanto na cidade grande existia criminalidade, na pequena havia a invasão de privacidade e a fofoca.
            -Vizinhos dando boas vindas. – disse sentando ao seu lado.
            -Como você está? – ela perguntou, estava falando dos meus ataques de ansiedade, depois do nascimento do nosso filho eles aumentaram muito, nenhum dos meus colegas médicos conseguiu identificar a causa, esses ataques começaram na adolescência depois da morte do meu pai em um assalto.
            O meu irmão mais velho teve que assumir a casa já que minha mãe estava em Portugal trabalhando, ele tinha apenas dezenove anos e eu quatorze, foi muito difícil.
            -Até agora muito bem – disse e beijei Roberta, ela correspondeu, não tinha a mesma paixão, depois de quinze anos de casada, convivendo com meus ataques de pânico, ela não estava suportando mais, havia acabado com a minha carreira de cirurgião.
            -Você vai conversar com seu irmão? – ela disse aproveitando que eu estava vulnerável aos seus encantos.
            -Não.
            -Ele já pagou pelo que fez – ela sempre defendia o meu irmão, eu nunca o perdoei.
            Quando completei dezesseis anos vi meu irmão ser preso, estava usando maconha e traficando, ele não abaixou a cabeça, não sentiu vergonha, disse que era um trabalho como outro qualquer, minha mãe voltou de Portugal, perdemos tudo.
            Minha mãe fazia tudo para tirar o seu preferido da cadeia, enquanto me matava de estudar, ninguém estava do meu lado nos momentos mais importantes, quando adoecia ela falava que era frescura.
            Quando ele saiu da cadeia ficou com tudo, com o amor de mãe, com o melhor quarto, com as melhores meninas do bairro, para mim só restavam os livros.
            Quando minha mãe morreu, ficamos sozinhos, deprimido com a morte da minha mãe, ele voltou para a droga e acabou preso novamente, me chamou, tive que parar de estudar e arrumar dinheiro para pagar advogados.
 Foi solto e sumiu, reapareceu para conhecer o sobrinho, toda vez que ele aparece alguma coisa ruim acaba acontecendo.
            Meu primeiro dia no pequeno hospital foi tenso, as pessoas me olhavam com desconfiança, dias atrás, quando visitei a cidade todos estavam muito simpáticos, preocupado com isso fui até o secretário de saúde.
            -O que aconteceu? – perguntei sentando em uma cadeira ao lado da mesa de madeira surrada do secretário.
            -As pessoas estão dizendo na cidade que você destratou a senhora Dora – ele fez um movimento com a sobrancelha – ela é muito querida na cidade.
            -Só falei que queria dormir um pouco. – aquilo me chocou.
            -Ela disse que viu você e sua mulher numa safadeza, falou que você não estava cansado – disse levantando da cadeira, era um homem baixo e tinha um bigodinho seboso, ruivo– escute Doutor, isso é uma cidade pequena, tem que ir à casa de dona Dora pedir desculpas.
            Uma senhora chegou correndo.
            -Dona Dora está passando mal – a menina não deveria ter mais que quinze anos – o médico tem que ir para a casa dela, ela está toda roxa.
            Cheguei a casa dela já estava morta, havia muitas pessoas no local, a mulher era muito querida, parecia que eu havia matado a velha com uma faca de pão.
            Um senhor de chapéu preto e barba negra fechada se aproximou de mim.
            -Onde estava seu doutor? – disse de forma intimidadora.
            -Conversando com o secretário – disse apontando para o homem baixo de bigode.
            -O seu lugar é no hospital – ele chegou bem perto de mim, pude sentir o fedor do tabaco – dona Dora era uma boa pessoa, fez a maioria dos partos de nossos filhos, nenhuma criança morreu, primeiro o senhor fez raiva destratando Dona Dora, ela deve ter ficado muito chateada, hoje quando ela precisou do senhor estava fora do seu posto – ele apontou para o céu – tem a justiça lá de cima.
            O secretario de saúde passou perto de mim e disse.
            -Pode arrumar as suas coisas e partir – disse bem alto para que todas as pessoas pudessem ouvir.
            A minha cabeça começou a rodar, tive uma dor súbita no peito, tudo rodava, a dor era cada vez maior, tudo ficava cada vez mais escuro, até que ficou um breu.
            Acordei em uma cama de Hospital, sentada do meu lado com o bebê no colo Roberta, do seu lado o farmacêutico local, que era o diretor do hospital.
            -Acordou – disse Roberta – você esteve dormindo quinze horas.
            -Temos que ir embora – disse tentando levantar, mas minha cabeça estava doendo, alguém havia me drogado, mas quem? – Alguém me deu algum remédio? Eu era o único médico da cidade, então quem foi?
            Roberta olhou para o Farmacêutico, um homem de boa aparência, alto com um sorriso muito bem cuidado, usava um jaleco branco impecável, cabelos pretos encharcados de um creme penteados para traz.
            -Tomei a liberdade de fazer um ansiolítico, coisa pouca, sei que a maioria dos médicos é contra, mas na cidade pequena, nós farmacêuticos somos o socorro que nunca vai embora – disse e colocou a mão no ombro de Roberta – sei como é ansiedade, síndrome do pânico – ele sorriu retribuindo o sorriso dela – com relação a ir embora não se preocupe, já demiti o secretário, você fica, a cidade precisa de você.
            -Ele é o prefeito – disse Roberta empolgada – ele quer a gente aqui, nem imagina como ele é simpático.
            -Foi tudo um mal entendido – disse apertando o ombro da minha mulher mais uma vez.
            -Para mim não – disse levantando – quero sair dessa cidade de malucos o mais rápido possível.
            -Acabamos de chegar – disse Roberta - e seu irmão está a caminho. – era óbvio que o prefeito tinha feito à cabeça da minha mulher enquanto eu acordava do pânico.
            -Não vou falar com meu irmão, disse que não quero ele aqui, seria uma influencia ruim para nosso filho.
            Dois dias se passaram, não falei com meu irmão, ele não apareceu, não permitiria que visse o sobrinho, o trabalho na cidade era chato e enfadonho.
Quase enlouqueci nada para fazer depois do trabalho, nunca imaginei que precisasse tanto do consumo para me manter vivo, para ajudar estava tomando um ansiolítico, não tive mais ataques de pânico.
            Um dia estava fazendo um parto quando ocorreu uma complicação que provocou a morte da criança e quase matou a mãe, com poucos recursos tive que transformar um parto normal em uma cesariana.
            O prefeito mandou me chamar.
            -O senhor fez uma grande merda, tinha mais de vinte anos que não morria ninguém de parto aqui nessa cidade – disse sem olhar para os meus olhos – o pai está desolado e a mãe também, eles querem a sua cabeça, não vou poder fazer nada dessa vez, estão pedindo uma compensação.
            -Eu já estava querendo ir embora – disse olhando nos olhos dele, eram olhos de um demônio – vocês são loucos, você com toda essa pose, não sabe nada, não tem nada para fazer aqui, tomam conta da vida dos outros, que lugar dos infernos.
            -Não é essa compensação que eles querem – disse e bebeu uma dose de cachaça – o senhor não sabe nada das pessoas daqui, temos nossos hábitos, nossos costumes, quando a lei disse que precisava de um homem formado para curar, nunca precisamos de você, você veio e ferrou com tudo.
            -Dinheiro, é isso que eles querem – falei pegando a carteira e o talão de cheques.
            -O senhor é de cidade grande, não fale merda, quanto vale um bebê do sexo masculino, o seu primogênito, não lê a bíblia? – disse o prefeito tomando outra dose de cachaça.
            -O que eles querem? – perguntei declinando da dose que serviu no copo para mim.
            -Eles querem o seu bebê.
            -Isso é loucura!
            -Não, não é loucura e tenho que concordar com eles, se você tirou o deles tem que dar o seu – disse balançando a cabeça.
            Virei para sair correndo, mas o pânico tomou conta de mim, cai e comecei a me arrastar, minhas pernas ficaram tremulas, perdi completamente a coordenação motora, o prefeito abaixou e pude perceber que colocava alguma coisa na minha boca, depois tudo ficou escuro.
            Acordei estava preso em uma cadeira, a maioria dos moradores estava presente, o prefeito estava sentado em um sofá, parecia um chefão da máfia, dois homens armados de cada lado, pude ver a arma na cintura dele.
            -Acordou – disse olhando para mim – Olhe Roberta!Que homem imprestável você tem, quando tem um perigo ele cai e tem um ataque de bicha - olhou para o negro com o revolver e disse – você tem ataques quando está trabalhando pesado, em Osório. Roberta, Roberta, tão bonita, você devia escolher um dos nossos solteiros, mas agora não adianta.
            -O que vai fazer com a gente – disse Roberta chorando.
            -Que pressa – apontou para o homem de barba e chapéu de palha que eu só conseguia enxergar com o canto do olho – amordace ela.
            Outro ataque de pânico começou, a mordaça me atrapalhava, vi o homem colocar a arma na minha cabeça, eu ouvi o tiro, só que quem caiu foi ele, outro tiro acertou o prefeito no peito, um terceiro atravessou a cabeça do homem de barba cerrada.
            Não dava para olhar de onde vinham os tiros, pois não podia virar a minha cabeça para trás, a minha boca adormeceu, tive uma dor no peito e tudo escureceu.
            O balanço da camionete me acordou.
            Meu irmão dirigia a camionete a toda velocidade, tinha um ferimento no ombro, Roberta estava no banco de trás, com o bebê.
            -Saio para dá uma volta e você arruma confusão.
            Nunca mais tive ataque de pânico.
 
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 22/11/2012
Código do texto: T3999002
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