Pantanal das Lamentações - Parte 2


 
Ele ainda pulsava. Era possível ouvir o som de suas batidas bombeando a água podre do brejo ao invés do sangue de seu antigo dono. Sim, o coração de André ainda teimava em se manter vivo e seu dinamismo hipnotizava a visão daqueles sete desgraçados.
- Isso é mentira! – gritava Rafaela em um princípio de histeria – eu não estou morta, e também não estou no inferno. Eu sou jovem ainda!
- Vê se cala boca Rafaela – disse Cesar – você nunca foi santa. Olha para esse lugar, você mesma disse, parece morto. Tão morto quanto a gente!
- Não – chorou Ernani – ela está certa, nós não podemos estar mortos, isso é impossível…
- Então como explica isso patrão? – ironizou Arnaldo.
Ernani olhou novamente o coração do bandido, olhou a paisagem quente e desolada a sua volta com os restos do avião ainda fumegando, ele não tinha resposta para aquilo. Mas foi Pedro, num instante de clareza, que pensou ter a resposta.
- Aquela moça e o outro guarda – disse ele apontando os corpos dos outros dois – eles morreram aqui, nós vimos o guarda morrer. Como pode alguém morrer se já está morto?
- Olha, o garoto pensa – disse Cesar – ele pode estar certo afinal. O que você acha “capitão”?
- Não sei, - respondeu Augusto - mas se isso não é o inferno talvez fosse melhor se estivessemos mortos. De qualquer forma não quero ficar aqui esperando aquela coisa voltar, este lugar deve ter uma saída.
- E para onde vamos? – perguntou Ernani melancolico.
- Bem – disse Augusto – aquela coisa levou o companheiro desses dois para aquele lado, o mais sensato e ir na direção oposta. O que você acha amiguinha? – perguntou ele olhando para a garotinha.
A menina olhou para o vazio e depois para Augusto e apenas concordou com a cabeça.
- Acho que essa pirralha é muda – falou Rafaela – devíamos deixa-la aqui, ela só vai nos atrasar.
- Se disser isto de novo eu juro que quem vai ficar aqui esperando aquele monstro voltar será você! – ralhou Augusto fazendo a loira se calar.
Assim os sete seguiram sua marcha, lenta e silenciosa, atrasada pelo lodo e pela água sempre presentes.
No caminho nada mudava, a paisagem era sempre a mesma, desolação por toda a parte, calor sufocante acompanhado de uma fedentina asfixiante. O ar estava totalmente parado, nenhuma brisa soprava e o silêncio imperava absoluto.
Em determinado momento da marcha Pedro reclamou de algo:
- Esperem, tem algo subindo em minhas calças! – berrou ele.
Todos pararam e olharam para o rapaz que descia as calças desesperado, sem se importar com a presença da mulher ou da menina.
- Droga, seja lá o que for está me mordendo… me ajudem!
Arnaldo se aproximou do rapaz e olhou suas pernas vendo nelas várias manchas escuras.
- Mas que diabo é isso? – disse o guarda aproximando o rosto mais perto para olhar – Parece que são… sanguessugas!
Assim que ele disse isso o impensável aconteceu, algumas das sanguessugas simplesmente pularam da perna de Pedro e atingiram seu rosto.
- Aiii! Merda! – gritou Arnaldo.
Cesar esboçou um sorriso com a desgraça de Arnaldo, mas logo a satisfação em seu rosto foi substituída por uma careta de dor e consternação:
- Ei, quê isso? – falou ele levando as mãos ao tronco e tirando a camisa revelando seu corpo também coberto por dezenas de sanguessugas.
- Não… - disse Rafaela olhando para ele e em seguida ela também gritava de aflição ao descobrir-se atacada pelos nefastos anelídeos hematófagos.
Em pouco tempo Ernani juntava-se a eles e gritava de dor. Augusto também sentiu as ventosas daquelas criaturas penetrarem sua carne, mas ao invés de se desesperar olhou para a menina, também com as pernas cobertas de manchas negras.
- Vamos embora daqui rápido! – ordenou ele pegando a pequena no colo.
Eles correram como podiam, tentando arrancar com os dedos os pequenos vampiros que sugavam seu sangue. Porém Pedro não conseguiu acompanha-los, as sanguessugas cobriam toda sua pele e ele gritava de pavor:
- Esperem! Me ajudem! Me ajudem! – ele estendia as mãos, até seus dedos estavam cobertos de sanguessugas, inchadas com seu sangue. Em pouco tempo sua voz se calou, pois aqueles vermes penetraram em sua boca, grudando-se em sua língua e descendo por sua garganta, extraindo cada gota de seu precioso sangue.
Enquanto Pedro agonizava os outros seis se afastavam o máximo que podiam até perceberem que as sanguessugas se soltavam espontaneamente de seus corpos, mas em seu lugar deixaram expostas terríveis chagas.
Augusto olhou para a criança em seu colo, lágrimas caiam da face da menina, depois ele olhou para trás e viu apenas uma mancha negra e pulsante sobre o corpo de Pedro, mas nada podia fazer por ele.
- Pobre rapaz – disse o piloto.
- Nada – retrucou Arnaldo esfregando seus ferimentos – aquele pivete teve o que mereceu!
- Como assim? – quis saber Ernani.
- A gente tava de olho nele faz tempo, na verdade eu já planejava apaga-lo, tinha descoberto até seu endereço. Ele era da mesma laia desses dois aí – continuou Arnaldo apontando para Cesar e Rafaela – a diferença é que roubava pouco de cada vez. Especialista em saidinha de banco. Um pilantra a menos, agora só faltam dois.
- Pode ser – falou Augusto – mas se não fosse ele, talvez esses dois já teriam nos matado.
- Acho que preferia estar morto mesmo – respondeu Arnaldo.
- Se quiser, eu posso ajudar – falou Cesar.
- Você vai antes de mim seu ordinário, pode apostar!
- Vamos parar com isso! – disse Augusto – Este lugar já está fazendo o possível para acabar com a gente, não precisamos fazer isso sozinhos.
Eles voltaram a marcha, agora cheios de dores com suas chagas. Seus rostos refletiam apenas a aflição e o cansaço, enquanto a paisagem imutável a sua frente apenas reforçava a angústia que sentiam.
Augusto ia sempre a frente, segurando pelas mãos a menina, frágil,  indefesa e com água até a cintura devido ao pequeno tamanho. Ele não entendia o que estava acontecendo, mas por dentro algo lhe dizia que merecia tudo aquilo. Em determinado momento ele sente algo queimar suas pernas, um ardor discreto e suportável que logo se espalha pelo resto do corpo, ele olha braços e mãos e nada vê, a dor que sente não o incomoda tanto e ele prossegue sua caminhada, avançando devagar como os outros, mas olhando para trás ele percebe que alguém não consegue acompanha-los.
- Esperem – diz ele – a moça parece estar com problemas.
Todos se viram. Rafaela realmente parecia não estar bem, ela andava com um pouco de dificuldade.
- Você está bem? – perguntou Augusto.
- Não sei – ela disse se aproximando – sinto-me tão cansada.
- Deixa de frescura mulher – falou Arnaldo.
- Não é frescura, apenas me sinto fraca. Cesar, por favor, me ajude a continuar.
- Você pode muito bem andar sozinha – falou seu comparsa ríspido.
- Vamos ajuda-la – falou Augusto olhando para Arnaldo – venha.
- Droga piloto, agora temos que ajudar uma vadia!
Os dois então se pusseram ao lado de Rafaela e ela apoiou os braços em seus ombros.
- Obrigada – disse ela fitando Augusto  com um olhar perdido e distante fazendo o piloto por um momento sentir pena da mulher.
Cesar apenas observava sem se importar. Já Ernani preocupou-se com a garotinha e disse:
- Vou levar a menina no colo.
- Ei piloto – falou Arnaldo – tenho uma coisa para revelar sobre esse gerentizinho de merda, esse aí gosta de comer um anjinho, é um velho tarado e safado.
- Ora seu… - começou Ernani – como ousa falar assim de mim, eu sou seu chefe…
- Chefe porra nenhuma! – gritou Arnaldo fazendo Ernani se encolher – Todo mundo conhecia a sua fama. Você não passa de um pedófilo sem vergonha que aliciava meninhas, e menininhos, pela internet. A pior espécie de homem!
- Mentira… - disse Ernani desistindo de pegar a menina e se afastando quase aos prantos.
Estavam novamente em movimento e Augusto percebeu que estranhamente o corpo de Rafaela parecia pesar menos. Ele olhou para a mulher e viu um estranha transformação envolve-la.
- O que está havendo? – disse Arnaldo largando a mulher, se não fosse por Augusto ela cairia ao chão.
- Tem algo errado comigo! – ela gritava.
Rafaela olhou para suas mãos, elas aos poucos se enrugavam, a pele macia agora ganhava profundo sulcos.
- Minhas mãos…  - disse ela desesperada.
- Meu Deus! Olhem para ela! – exclamou Ernani.
A mulher percebeu que todos a observavam com espanto, sem saber o que fazer ela olhou para baixo e, como que por encanto, a água do charco, antes escura e podre, tornou-se clara e cristalina como um espelho e nela Rafaela viu seu reflexo. E assim que ela o viu ela gritou:
- Nããããoooo!!!
Rafaela envelhecia, envelhecia rapidamente, as décadas passavam em segundos. A mulher viu sua cabeleira loira crescer e torna-se branca ao mesmo tempo em que os fios despencavam um a um, sua pele enrugava-se cada vez mais, suas chagas aumentavam e se abriam, exalando um fedor nauseante. Enquanto os olhos da mulher desapareciam nas órbitas cada vez mais profundas ela tentava falar alguma coisa, mas de sua boca saiam apenas seus dentes podres e corroídos, mas com muito esforço ela conseguiu dizer algo:
- Por favor… me… me… ajudem…
Ela estendia as mãos, agora quase esqueléticas, mas nada podia ser feito. Seu corpo afundava devagar no brejo, deixando apenas uma cabeleira branca boiando e um borbulhar insistante sair d’água, os últimos sons produzidos por sua boca.
- Rafaela… - murmurou Cesar, pela primeira vez dominado pelo medo - … mas que porra de lugar é este afinal?
Arnaldo sem se importar apenas comentou:
- Pena, era bem gostosa essa Rafaela… - e ainda riu um pouco – a gente tá ferrado, vamos morrer todos, cada um de um jeito pior que o outro.
Augusto apenas pensava em silêncio.
- No que está pensando piloto? – falou Ernani, a essa altura trêmulo como uma vara de bambu.
- Nada – respondeu ele – vamos embora, vamos tentar sair daqui.
E eles seguiram novamente, mas Augusto percebia que não iriam longe, de certa forma ele sabia que todos ali mereciam o que passavam. E, por mais que tentassem, escapar daquele lugar seria impossível.
 
CONTINUA…

Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 11/12/2012
Reeditado em 11/12/2012
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