TRINCHEIRA
Foi como se aquele dia ele tivesse acordado pelo avesso, sentia o gosto azedo da raiva subindo a garganta, ele sabia, de alguma forma, que aquele não seria um dia qualquer, ao sair de casa passou os olhos sobre a cômoda velha e viu o canivete que havia comprado a semana passada, ainda estava embalado no plástico transparente da loja de pesca, guardou no bolso e saiu apressado.
O dia estava bem frio, ele levantou a gola do casaco e caminhou rápido, motivado por um ódio acumulado ao longo de décadas, resolveu fazer um caminho diferente para o trabalho. A trincheira, uma espécie de viaduto, dividia a civilização da periferia, naquele momento também dividia sua vida em duas partes, e nada fazia tanto sentido em toda sua existência. Tudo o que ele viveu o levava em direção a ela, a trincheira.
Ele seguia direção ao espaço estreito para pedestres, por baixo da avenida movimentada, o meliante estava lá... parado no mesmo lugar de sempre, estava acostumado a ganhar a vida daquela forma, dezenas de pessoas indefesas assaltadas por dia... pessoas que não tinham outro caminho a fazer... pessoas que trabalhavam doze horas por dia, sete dias por semana, pensar nisso fazia seu sangue ferver, abalando a calmaria da sua vida. Ele sabia exatamente o que fazer, seguiu rumo ao seu destino, o moleque era bem menor que ele, tinha os olhos vidrados de um viciado. Percebeu a agitação do marginal a cada passo em que se aproximava. Ele sabia o que fazer, não podia falhar, colocou a mão no bolso e sentiu o metal gelado. Ele sabia o que fazer.
O pequeno se agitou tirando algo do bolso, “perdeu amigo, perdeu!”... amigo? seus olhos avistaram o pescoço nu do jovem ladrão e aquele canivete nunca pareceu tão útil quanto naquele instante.
FIM
Bom, não é uma história sobrenatural, mas considerando que a violência é um dos maiores medos urbanos, acabei colocando o texto na categoria terror... É um conto republicado, pode ser que vcs já tenham lido ele aqui antes... para os que não leram, espero que gostem.