TORRADAS MOLHADAS

Havia se comprometido e não podia voltar atrás...Chovia torrencialmente.

Ruas alagadas ,semáforos apagados ,trânsito caótico.Na boca do túnel e o carro quase boiando.Todos enlouquecidos:ônibus piscando,vans buzinando e ,na realidade ,todos ilhados sem ter como chegar a lugar algum.Na cabeça um pensamento : " ...e as torradas ? Quem faria as torradas?". Por favor ,todos saiam da frente,tenho um compromisso urgente,prometi que faria as torradas! Vocês nunca vão entender,"Ele"nunca vai me perdoar,não vai acreditar... " Vidros embaçados , pingos grossos e teimosos de chuva e o limpador de para brisa teimoso prá lá e prá cá:"Melhor voltar ,melhor voltar ,melhor voltar..." Deu meia volta,parou num posto de gasolina e ligou : "Acho que não vai dar,as ruas estão empoçadas ,cruzamentos alagados,impossível seguir em frente,melhor voltar e mais tarde,quando o nível da água baixar..."

_ Não dá prá tentar outro caminho ?

Perguntou a voz ansiosa do outro lado da linha.

_Já tentei ,vários carros estão boiando,melhor tentar depois...

Ela argumentou

_Mas ... e as torradas ,quem vai fazer as torradas ? Sabe que dependo de você , que esperei por elas o dia todo.

Insistia a voz.

-Estou tentando,juro que estou tentando...

E a voz emudeceu

Desesperada viu a água começar a entrar molhando seus pés .Já não controlava mais os pedais ...O carro tinha vontade própria e queria seguir em frente ,como surfista teimoso que não quer perder a sua melhor onda . O celular voltou a tocar e ela atendeu desesperada :

_Eu sei ,as torradas ,já estou indo ...

Com as mãos trêmulas deixou o celular mergulhar na água lamacenta .

O carro seguiu o curso das águas e uma pane elétrica impedia que conseguisse acionar portas e janelas ,estava presa. Com a mão espalmada ,batia desesperadamente nos vidros embaçados pedindo ajuda.Mas o carro já sabia o seu destino e seguia rápido,rodopiando pela água barrenta,a despeito dos gritos de sua ocupante,em direção ao valão . Nada detinha seu curso inexorável ao encontro das águas fétidas do valão , tragado para o fundo da água imunda .

Há alguns metros dali ,Ele teclava na internet. Ocupado com suas publicações em redes sociais sequer havia observado a chuva ,protegido e seco no seu escritório. Sentiu o cheiro das torradas quentinhas como gostava ,com manteiga e geléia.Não se virou e de onde estava apenas gritou :" Ei ,finalmente filha,não falei que era fácil,que ia conseguir..." Pigarreou duas vezes e deu uma longa risada de escárnio .

Ouviu os passos dela na sua direção ,passos de quem estava com os pés encharcados de água . Uma mão pousou no seu ombro direito ,como ela sempre fazia e sentiu um frio percorrer-lhe a espinha .

_ Mas que demora foi essa ... e parou estarrecido no meio da frase.

Virou-se e não viu ninguém . Um vento gelado sacudiu as persianas derrubando quadros e porta retratos. Pegadas molhadas na tábua corrida ,formando uma poça maior próxima ao violão de cordas de aço.Na prateleira ,um prato com decoração familiar que não estava ali há alguns minutos atrás e no centro do mesmo ,duas torradas com manteiga ,queijo e geleia ...