Apartamento Macabro e a canção de Mozart
 
     Um conto de Mauro Alves e Sidney Muniz.

 
Vou lhes contar uma estória, assustadora. Um amigo meu me contou certa vez. Mas, cuidado, pois se prosseguir poderá se arrepender amargamente dessa escolha.
 
Se acha que já leu algo parecido ou viu alguma imagem tão assustadora, não tem idéia alguma do que esse conto pode lhe proporcionar. Tem filhos? Esposa? Está grávida? Não, não fique aqui, vá para perto deles, e cuide muito bem deles...
 
Como diria meu saudoso avô...
 
Morar em um apartamento é sempre um grande desafio. Meu avô sempre me aconselhou a comprar uma casa maior. Ele dizia: Não compre um apartamento!
 
“Ei rapaz, apartamento não é lugar para morar, é um apertamento”. Eu ria das piadas sem graça de meu avô, eu ria... Até o dia em que ele morreu, estava reformando um maldito apartamento. E foi aí que o porteiro do prédio, o Sr. Mauro Alves, me contou tudo que ele sabia.
 
Ele disse que aquele era mais um dia no Prédio Rio Gonçalo, um prédio antigo, que havia sido reformado há muito tempo atrás. Antes era um mausoléu, ninguém se arriscara a comprar aquilo. Mas um maldito investidor, cheio da grana, não, milionário. O cara investiu uma fortuna lá.
 
Mas bem, essa estória não é sobre mim, nem sobre meu avô, tampouco sobre Mauro Alves.
 
...
 
— Valha-me Deus! — foi o que o escritor Marcos Dutra resmungou, quando viu aquela montanha de roupas amarrotadas jogadas dentro da cesta de vime ao lado da máquina de lavar. Essa ficava localizada na curva esquerda da cozinha em forma de um L invertido — incluído, dentro desta cesta, no beco da cozinha, havia um par de calcinhas de sua mulher Jaqueline.
      Silkado bem na frente de uma das calcinhas de sua mulher jazia escrito em letras cor de rosa: “Você me ama mesmo, ou só quer me comer?” Na primeira vez que Marcos leu aquilo, ele riu tanto, que pensou em colocar uma respostinha em sua cueca: “Querida eu te amo muito, por isso mesmo é que eu quero te comer!”.
 
  Ele sempre foi muito bem humorado, era um homem de meia idade, um escritor muito promissor. Virava noites estudando, pesquisando, buscando idéias novas naquela cachola maluca que alguns chamavam de cabeça. Eu, em minha simples e introvertida opinião, acho que mais se parecia com um coco, que viera direto da Bahia.
 
      Marcos , quando ele viu aquela cesta cheia de roupas para passar, a graça tinha ido para o beleléu. Obviamente, a encarregada daquela tarefa seria a empregada Maria Rita. Porém, devido a uma hanseníase na família (o acometido era um sobrinho muito próximo de Maria Rita que, dois dias depois de visitá-la trabalhando naquele apartamento amaldiçoado, a doença progrediu como um alagamento em dia de chuva e agora o menino estava em estado terminal em um pronto-socorro público) tirou alguns dias de folga. Portanto aquela tarefa caíra nas costas de Marcos, e ele reclamava como um capeta. Mas ainda assim, o que fazer senão executar o trabalho, afinal, logo a esposa chegaria.
 
      Levou o cesto em direção a despensa, onde localizava a tábua de passar roupa presa a um nicho na parede. Marcos abaixou a tábua e, antes de começar a trabalhar, deixou o berço de seu filho Mozart, de apenas três meses, próximo à porta da despensa, para que não pudesse perdê-lo de vista um só instante. Mesmo assim, o bebê (cujo nome Mozart era uma singela homenagem ao famoso compositor austríaco do século XVIII) começou a chorar sem parar.
 
      Provavelmente, sentia falta da mãe.
 
      A mãe do garoto, Jaqueline, era professora de português em um colégio particular há 15 quilômetros ao norte da Avenida Paulista. Portanto, não demoraria a chegar naquele entardecer. Marcos, que trabalhava por conta própria escrevendo noveletas de ficção científica deu-se um tempo de seus escritos para ajudar a sua mulher com as roupas e também com o Mozart.
 
    Marcos e Jaqueline acabaram se conhecendo na faculdade, lugar ideal para começar um relacionamento sério o bastante para se pensar em casamento — ficando claro assim, que não é tão difícil encontrar um grande amor dentro de uma faculdade. Mozart, nascido dois meses depois do casamento, estaria predestinado a ser a criança mais bem amada deste mundo.
 
      Estaria mesmo?
 
      Agora, sozinho no apartamento, Marcos ligou o ferro da marca Walita que só a empregada costumava usar, girando o botão na potência rp3 — que era a potência especializada em tecidos como rayon e poliéster — quando o seu filhinho voltou a chorar implacavelmente.
 
      — O que foi, coração? – Perguntou com certa paciência, sua voz havia sido expressada de maneira aconchegante, seu filho até se acalmara um pouco.
     
Resolvendo deixar o seu filho mais próximo do calor de seu corpo o escritor apoiou o ferro na grade lateral da tábua e foi pegar o bebê no colo. Por causa do calor, o bebê usava apenas uma fralda Pampers. Marcos ficou aliviado ao descobrir que a fralda de Mozart ainda estava limpa. Nesse caso, ele voltou aos seus afazeres. Exaustivamente.
 
      Trabalhou como um condenado, não parando de passar as roupas nem mesmo quando o interfone tocou. “Só pode ser uma das vizinhas fofoqueiras querendo saber se Jaqueline já retornou do trabalho”. Foi à voz eloqüente que viera da mente de Marcos, tentando dissuadi-lo a acreditar naquilo.
 
      O toque no interfone era, realmente, de uma das vizinhas do 12° ou 14° andar (o único dos seis apartamentos ainda em uso no 13° era justamente a de Marcos, pois ele não era supersticioso — e ele continuou não sendo supersticioso mesmo depois do acidente com a sua última vizinha do andar, que fora morta engasgada com um caroço de feijão cru). Mas para ele o destino era o único culpado.
 
Jaqueline sempre o pedira para se mudarem dali. Ela sempre falava coisas do tipo:
“Amorzinho, acontecem coisas muito estranhas aqui” “E se fossemos para uma casa maior?”, mas ele não a ouvia. “Olha essa vista amor?” “Acha que vou trocar isso por uma casa, e um quintal enorme? Não me imagino recebendo um jornal ao pé da porta, ou tampouco segurando um cortador de grama e o empurrando pelo quintal. Não mesmo, Jack, esse cara não sou eu!” e eles nunca se mudariam, Jaqueline era uma mulher submissa.
 
Porém, o que Marcos não sabia, era que o motivo daquele telefonema de uma das vizinhas de cima ou de baixo, não era para saber se a sua mulher já tinha retornado do trabalho... O real motivo daquele telefonema era para saber do que se tratava aquele cheiro de algo se queimando em seu apartamento.
 
      Aquele maldito cheiro...
 
      A última vez que um condômino reclamara de alguma coisa acontecendo de errado em sua casa, foi quando a sua mulher Jaqueline esquecera a panela de pressão com o fogão elétrico ligado. Naquela ocasião, a panela acabou explodindo feijão por todos os lados. Foi uma explosão tão violenta, que o prédio inteiro havia balançado sob as suas vigas de concretos. Naquele dia, quando Jaqueline retornou correndo para o apartamento ao ser avisada pelo celular, acabou vendo, espantada (após o incessante vapor de gás ter se diluído completamente e ela pudesse enxergar com mais clareza), as paredes e o teto de sua cozinha toda imunda com o acúmulo do feijão que espirrara de dentro da panela estourada. O que havia sobrado da sua panela de pressão não foi nada mais do que uma matéria de alumínio derretida, e o rombo no fogão, tão grande, que o fez partir em dois cascos iguais, dobrados como roscas. Parecia, literalmente, que alguém tinha feito uma sonora merda e depois a jogado em direção ao ventilador.
   
  É isso que acontece também quando uma pessoa não tampa adequadamente uma panela de pressão sobre o fogo máximo.
 
      Jaqueline havia dito, mais tarde, que tinha certeza absoluta de que havia desligado o fogo antes de sair. Isso acontecera havia duas semanas.
 
 Ali as pessoas costumavam ficar meio desleixadas, bem, não sei se essa é a palavra correta, mas prossigamos.
 
 
      Foi este o episódio que veio à lembrança de Marcos quando o interfone no 12° ou 14° andar começou a tocar.
 
      Mas ele resolveu não atender.
 
      Talvez, por ainda estar refletindo sobre aquele episódio ocorrido na cozinha de seu apartamento há duas semanas, Marcos acabou não se dando conta de ter colocado o seu filho deitado em cima da tábua de passar roupas. Assim, ele ergueu o ferro e, com a cabeça ladeada e os olhos revirados, aconteceu uma grande desgraça.
 
      O bebê chorou novamente, mas agora de dor. Depois, veio o berro. E depois, o som tétrico de algo se torrando.
 
      Fliisssssssssss!!!
 
      Poucos minutos depois, houve um barulho de guizo da porta na sala se abrindo. Era a sua mulher chegando do trabalho, seguindo em direção a despensa.
     
— Amor, você cuidou bem do nosso coração?
 
      Jaqueline não precisou esperar por respostas. Em meio ao jato rugoso de vapor espalhando-se sobre a tábua de passar roupas, ela viu o seu marido de cabeça ladeada e olhos revirados trabalhando como um alucinado enquanto ouvia “Eine Kleine Nachtmusik” de Wolfgang Amadeus Mozart — cujo som instrumental vinha de um Rádio-Despertador posto em cima da máquina de lavar. Jaqueline viu, e ouviu, também, a equimose por todo o corpo de seu filhinho ir resfolegando sangue enquanto ele ia sendo assado vivo pelas mãos do próprio pai.
 
 Viu, a pele em carne viva de seu filho Mozart se encapelar cheio de gangrena para depois se fundir por dentro do próprio corpo segregado em pus. Os olhinhos mórbidos do bebê se romperam feito um... Par de uvas dentro de um microondas. Em seguida foi à vez das veias se romperem. A mãe viu tudo isso, inclusive os bracinhos e as perninhas do filho ficando estorricados, parecendo quatro pequenos tentáculos negros. O bebê, que obviamente já era bem pequeno, agora encolhera a um embrião do tamanho de uma larva queimada.
     
Tudo isso, agora, ao som da Marcha Turca.
 
      — Coraçaõoo! — a mãe gritou em meio ao volume da música clássica. Devido ao choque, todos os órgãos do corpo dela se apertaram, como se alguém os comprimissem com uma corda de arames. Mesmo assim, Marcos não parava de assar o próprio filho.
      Fliisssssssssss.
     
      Uma eternidade de segundos se passou e, antes que Jaqueline desmoronasse no chão e só se levantasse dentro de um Manicômio Municipal, ela sentiu o apartamento inteiro se estreitando em volta de seu corpo. As paredes começaram a se contraírem e a se liquefazer em uma massa lantânica. Os vidros das janelas se estilhaçaram para fora em um projétil de cacos. Uma legião de tentáculos espinhosos, com centenas de olhos sem pálpebras por toda a sua extremidade, escoou das fendas abertas nas paredes junto a uma porção de larvas com olhos azuis de bebês — mortos queimados há séculos atrás —, que surgiram de baixo do piso cerâmico que agora se transformara em uma garganta despescoçada. As larvas e os tentáculos passaram a destruir tudo em volta da casa ao som de uma terrível bricomania de rangidas de dentes. Isso aconteceu, mais ou menos, meia hora antes de dois policiais e um padre exorcista invadirem o apartamento e o encontrar em ruínas.
      Não encontraram Marcos.
     
Aquela altura, Marcos (ou o demônio que controlava os movimentos de Marcos), com a cabeça ladeada e os olhos revirados para dentro da nuca como se tivesse encarando o próprio cérebro, já tinha saltado da janela do décimo terceiro andar de seu apartamento.  
 
Esse é o fim da estória, lembra daquele milionário, ele investiu todo seu dinheiro nesse prédio. Descobri que o antigo lugar fora há muitos anos um orfanato e que as crianças simplesmente desapareciam. Boatos dizem que o padre que tomava conta do orfanato era um pedófilo, e abusava das crianças, depois as jogava em uma fornalha no porão. Não sei até onde a estória é verdade, mas algo em mim me diz que tudo não passa de pura superstição.
 
Preciso descobrir o como de fato meu avô morreu, não acredito que ele simplesmente tenha pregado três pregos enormes em sua mão esquerda e depois tenha batido com a cabeça na ferragem solta de uma viga. O aço de 5/16” chegou a ser enterrado oito centímetros em seu crânio, após a terceira tentativa ininterrupta de se matar.
 
É por isso que hoje estou me mudando para o 13º andar. Passei pela recepção mais cedo e vi o meu amigo Mauro. Sentado naquela cadeira ele não parecia ser tão alto assim. Sorri para ele, e o cumprimentei. Ele então comentou:

 - Bom dia, Senhor Sidney Muniz, engraçado, estava notando uma coincidência. Achei curioso - ele disse enquanto podia ouvir baixo, o som de Ramones tocando em seu fone quase escandaloso e sobre o palcão que o cercava jazia um livro da série A Torre Negra, de Stephen King.

 - O que foi? - Perguntei - Você e o Marcos, coincidência hein, você também é escritor não é?

- Sim! – Afirmei.


- Bacana - ele respondeu e não falamos mais nada.   Eu entrei no elevador e pude ver ele comentando com a faxineira Lee, antes deles darem sua costumeira bulinada.

 - Mais um péssimo escritor que vai para o beleléu! - vamos lá pra trás do balcão, nega.

  Ele mal percebeu que estava falando mais alto que o normal por causa daquele maldito fone de ouvido.

A porta do elevador se fechou.

Fim.


Dedicado ao meu querido amigo Mauro Alves e a Lee Rodrigues!

Amo vocês!




Sidney Muniz e Mauro Alves
Enviado por Sidney Muniz em 19/01/2013
Reeditado em 25/01/2013
Código do texto: T4092669
Classificação de conteúdo: seguro
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