Boneca de Trapos

Andava de mãos dada com a mãe pela rua quando a senhora de aparência doce e amigável as parara para perguntar o endereço de certa rua. A menina, como toda criança, olhou ressabiada para a senhora a sua frente. É das crianças mesmo encarar os adultos com desconfiança ou medo. Após sua mãe explicar-lhe facilmente o trajeto, a velhinha então virou e disse:

- E você, menininha linda, como se chama?

A menina permaneceu muda, abraçada às pernas da mãe. Tinha dez anos, mas era bem pequena para a idade.

- Responda a pergunta menina. – disse sua mãe.

- Beatriz… - respondeu com a voz fraquinha.

- Bonito nome. – disse a senhora sorrindo. – Você gosta de bonecas?

- Gosto…

- Hum… Então vou dar algo a você.

A mulher remexeu dentro de sua bolsa de pano por um momento e por fim retirou de dentro.

- Tome, é para você.

Beatriz pegou em suas mãozinhas uma boneca de pano. Era bem simplesinha. Seu corpinho era de pano branco, todo costurado em uma linha sedosa. Usava um vestidinho azul escuro de manguinhas. Seus olhos e sua boca eram todos costurados com a mesma linha brilhante, diferente. Os olhos não eram botões, se não um “X” feito com várias laçadas da linha, assim como sua boca era uma linha curva horizontal entrecortada por outras tantas menores, verticais, feitas também com várias laçadas da tal linha. A boneca não tinha cabelos e cheirava estranhamente a capim seco com algo que Beatriz não podia identificar o que era. Era um cheiro de coisa velha, mofada, ressecada. Os dedos de sua mãozinha também eram definidos com aquela linha assim como os dedinhos do pé.

- Eu sei que você deve estar estranhando ela não ter cabelos, é que eu não tive tempo de termina-la ainda…

- Imagina, agradece Beatriz! - disse a mãe.

- Obrigada… - falou a menina ainda com a voz fraquinha.

- De nada meu anjo. Agora me deixe ir. Obrigada pela informação, senhora mãe da Beatriz.

- Ah não tem por onde. E perdoe a timidez da minha filha.

A senhora sorriu.

- É a idade. Até logo.

E saiu em passos rápidos. Mãe e filha continuaram seu caminho também. Beatriz carregava a boneca pendurada por um bracinho.

Logo chegaram em casa. A menina ainda olhava ressabiada para a boneca que segurava.

- Não é uma boneca muito bonita né? – disse a mãe.

- Eu não gostei… - respondeu a menina.

- Põe lá na prateleira. Você alcança?

- Sim mamãe.

Caminhou até o quarto e pôs a boneca na prateleira. Ficou a olha-la por algum tempo ainda antes de dar as costas. Era uma boneca triste e de cheiro estranho.

A noite chegou e com isso o sono também. Logo Beatriz estava deitada em sua cama para dormir. Sentia sono, mas também se sentia inquieta. Por mais que virasse não conseguia encontrar uma posição que lhe confortasse. E então entendeu o que tanto lhe incomodava. A boneca na prateleira.

Se virava de costas, ficava de costas para ela. Se virava de frente era porque ficava de frente a ela. Vendo que não havia solução, apenas se cobriu até a cabeça com o cobertor e escondeu-se, com medo. Não adormecera logo, mas também não passara a noite em claro apesar dos sonhos inquietantes. Tivera sonhos confusos, com pessoas sem cabelo que gritavam e agonizavam coisas a ela que ela não podia entender, e agulhas que as espetavam quando elas tentavam falar. Às vezes também elas surgiam a sua frente agarrando os próprios olhos ou lábios como se sentissem uma dor insuportável.

O dia raiou e a mãe a despertou para o café. Já nem se lembrava da boneca, até por os pés no chão e pisar em algo fofo. A boneca estava caída no chão, ao lado de sua cama. Assustou-se ao ver a boneca, pegou-a com as mãos trêmulas e jogou-a longe na prateleira. Por alguma razão, passava a mão no cabelo incessantemente. Tinha um medo desconhecido de que ele caísse. Não se lembrava de que tinha sonhado durante a noite.

Chegou lívida a cozinha. A mãe, percebendo a garota perturbada, perguntou:

- O que aconteceu Beatriz?

- Nada. – respondeu a menina num leve sobressalto.

- Você não me engana Beatriz. O que foi?

A menina hesitou por um momento, mas por fim respondeu meio encabulada por estar com vergonha de uma boneca.

- A boneca… Estava no chão quando acordei. Eu pisei nela.

- Oras, caiu da prateleira. Eu perguntei pra você se você alcançava ontem, você me disse que sim. Provavelmente a pôs de mau jeito e ela caiu.

- É… Pode ser.

No fundo, Beatriz sabia que o que havia acabado de responder não era de todo verdade. Sabia que tinha posto a boneca muito bem posta na prateleira. Tinha certeza.

Saiu de casa para ir à escola pensativa, mas logo se distraiu com os amigos e com o passar do dia. Esporadicamente lembrava-se da boneca no chão e quando ela pisara em cima e nisso um o estomago gelava e dava um salto. Não queria voltar pra casa e encontrar aquela boneca de pano lá na estante (se é que estava na estante ainda). Ela lhe causava um mal estar extremo, isso era um fato que já tinha aceitado. Pena que chegava em casa uma hora antes da mãe voltar do trabalho, se não ligaria a ela e pediria para que desse o fim no brinquedo antes mesmo que ela chegasse. Que tacasse fogo.

Quando a van a deixou em casa no fim do dia, Beatriz desceu e ficou olhando para o portão. Não queria entrar, mas também não podia ficar ali fora parada. Sua mãe lhe daria uma ralada se ficasse.

É, era tolice sua mesmo.

Abriu o portão e a porta da sala com as mãos um pouco trêmulas e entrou. A casa estava do mesmo jeitinho de sempre, com o mesmo cheirinho, as coisas no mesmo lugar. Podia ficar sentada ali na sala até a mãe chegar… Aí ela reclamaria que ainda não havia ido tomar banho.

Foi então que percebeu que a boneca não lhe causava certo mal estar. Era medo. Pura e simplesmente o medo.

Apesar de todo o medo que sentia de chegar até o seu quarto no andar de cima, agora uma curiosidade que não era de si impelia-a a ir até lá.

O receio, o medo e a curiosidade formavam em si uma mistura que nunca antes havia provado. Cada pé que precisava levantar para subir a escada parecia pesar mais conforme subia. Como se a gravidade mandasse que ela permanecesse no térreo, que lá era seguro.

Por fim terminara de subir. Viu a porta do seu quarto no fim do corredor. Viu a porta do seu quarto. Não se lembrava de ter fechado a porta antes de sair. Agora sim estava apavorada.

Um pingo de racionalidade caíra em sua consciência. Sua mãe podia muito bem ter fechado a porta antes de sair. É, era isso. Intimamente, estava tentando se convencer disso, mas não deixava de ser bem lógico.

Andou lentamente até a porta. Pôs a mão na maçaneta. Estava com lágrimas nos olhos. Medo, medo, medo, medo. Respirou fundo e virou o frio pedaço de metal, abriu a porta e entrou de uma vez no quarto.

Um cheiro de podridão invadiu suas narinas, insuportável. Podia ouvir o zumbido de muitas e muitas moscas, mas não podia vê-las. Por outro lado podia ver, e muito bem, a boneca sentada na cama encostada à cabeceira. Tão logo pensou em gritar quando sentiu um sono irresistível. Não podia controlar de modo algum. Queria sair dali, mas não podia... As pernas não respondiam. Foi ao chão. Sono, muito sono… barulhos ao fundo, de coisas raspando… o que estava acontecendo? Já não enxergava mais… e aquele sono qual estava lutando contra ferozmente, mas sabia que ia terminar por vencê-la.… Queria sua mãe, por que ela não chegava logo e a tirava dali?

Sentiu algo quente que percorria sua cabeça, seu couro cabeludo. Sentiu o mesmo então esfriar. Seu cabelo havia caído, ou pelo menos a sensação era muito semelhante. Queria tanto abrir os olhos e ver o que estava acontecendo ali, mas não conseguia. Estava ali no chão paralisada, muito semiconsciente.

Por fim, já não conseguia mais respirar. A suavidade da morte não chegara para Beatriz. Ela sentiu o desespero do sufocamento enquanto nada podia fazer presa dentro de si.

Pensou porque não deixara o sono a levar antes… talvez a agonia tivesse sido menor.

- Beatriz? – chamou a mãe ao entrar.

Estranho, a casa estava quieta, as luzes apagadas. Já pensou no pior: Beatriz não havia chego em casa.

- Beatriz?! – chamou novamente.

Resolveu correr ao quarto. Quem sabe a filha não havia adormecido. Sabia que ela não havia dormido bem à noite, ouvira-a resmungar por várias vezes.

Subiu as escadas rapidamente. Viu a porta do quarto da menina no fundo do corredor. A porta do quarto? Não havia fechado a porta antes de sair e Beatriz não costumava fechar também.

Caminhou rapidamente até a porta e a abriu.

Parou na entrada do quarto. Paralisada, uma sombra de horror no rosto.

Na cama estava sua filha, sem cabelos. Os olhos, as narinas, a boca, bem como os dedos das mãos e dos pés haviam sido costurados, aparentemente com o cabelo que havia caído da filha. A costura da boca continuava pela bochecha, de forma a criar o traço de um sorriso. As orelhas haviam sido costuradas para trás. O cabelo havia sido passada várias e várias vezes nos mesmos lugares de modo a criar pontos grossos, firme e visíveis. Nos pés da cama, uma série de agulhas estava caída, todas com um fio de cabelo amarrado. Lívida como nunca antes, claramente morta. Na mão esquerda repousava a boneca de pano que havia ganhado. Na direita, outra boneca. Essa vestia as mesmas roupas da filha e possuía os mesmos traços. Era a boneca de Beatriz.