Três Contos de Cemitério
(Republidados a pedido da amiga Zeni Silveira)
Zeni, seu pedido é uma ordem!


Bem pessoal, estes contos foram escritos a toque de caixa e já que tratam todos do mesmo assunto  (cemitério) eu resolvi coloca-los no mesmo pacote, espero que gostem. Estou meio sem idéias e ando pensando em dar um tempo, principalmente no gênero terror, mas a gente aparece aí de vez em quando. Um abraço a todos.


 
1. Um Novato no Cemitério
 
- Ei novato! – ouvi alguém chamar – venha cá.
Olhei e vi um velho com dois buracos no lugar dos olhos e com uma boca murcha e sem dentes sentado numa tumba.
Como vocês podem imaginar eu fiquei assustado, mas não tão assustado como realmente deveria ter ficado. Pareceu-me até algo normal.
- O que você quer? – perguntei.
- Só conversar, tem muito tempo que ninguém fica agarrado aqui.
- É onde é aqui? – perguntei.
- Olhe a sua volta novato, não está vendo? É um cemitério.
Olhei, ele estava certo.
- Mas que diabos estou fazendo aqui?
- Ora, você morreu.
- Merda – disse eu – eu me lembro agora, eu me engasguei com um pedaço de linguiça.
- A linguiça era maior que a boca hein novato – riu o velho.
- Engraçadinho – disse eu – mas peraí, nós não deveríamos ir para o céu, ou para o inferno?
- Nem todo mundo vai novato, tem gente que fica esperando um tempo aqui.
Olhei para aquele velho podre e falei:
- Você pelo jeito já esta aqui há muito tempo – e comecei a rir também.
- Mal chegou e já está fazendo piada hein – retrucou o velho – gostei de você.
Olhei em volta mais uma vez e disse:
- Mas diz aí, o que tem pra fazer por aqui enquanto esperamos?
- Primeiro é preciso seguir as regras. Regra número 1, nunca saia do cemitério, você não consegue e sempre volta. Regra número 2, nunca saia de dia, você também desaparece e Regra número 3, respeite os mais velhos, no caso eu.
- As regras números 1 e 2 eu até obedeço, mas na 3 eu vou pensar. Poxa mas esse lugar é muito chato então!
- Chato nada novato, vem comigo.
Segui o velho no meio das tumbas, até que comecei a ouvir gemidos.
- Mete, mete, mete machão vai… - uma mulher gemia.
- Gostosa, gostosa, gostosa… - ouvia-se a voz de um homem.
- Tem gente que não tem dinheiro para motel e vem pra cá, disse o velho.
- Credo, não sabia que depois de morto tinha velho que continuava tarado.
- Tarado nada novato, as minhocas já comeram minha cobrinha há muito tempo – disse ele entristecido – mas venha comigo, vai ver como é divertido.
Aproximamo-nos do casal que permanecia abraçado depois da transa, ela por cima dele.
- Amor – disse a mulher.
- Fala minha putinha, fala – disse o homem.
- Ai amor, é tão gostoso ter sua mão deslizando nas minhas costas.
- Eu também gosto gata.
- E sua outra mão nas minhas coxas.
- É bom mesmo gata, ai…
- E sua outra mão na minha bun…
- Outra mão?
O casal virou-se para trás e realmente foi engraçado ver suas caras de espanto quando deram de cara comigo e com o velho alisando as ancas daquela mulher.
- Aiiii… - eles gritaram e saíram correndo, pelados do jeito que estavam até saírem do cemitério.
- Fala aí? Não foi divertido? – perguntou o velho.
Até que eu gostei daquilo.
- Oh, tem mais.
O velho me levou até um grupo de pessoas que acendiam velas e murmuravam qualquer coisa.
- João, aparece João – gritavam eles.
- Quer ir lá? – perguntou-me o velho.
Enchi-me de coragem e fui para o meio da roda.
- O João não vem não, veio outra assombração! – comecei a gritar enquanto abria a camisa e deixava minha barriga cheia de vermes à mostra.
Foi um pandemônio, todos saíram correndo, deixando para trás as velas e esquecendo seus cantos.
- Essa foi boa novato – ria o velho – nem eu faria melhor! Acho que vamos começar uma bela amizade.
E realmente foi assim, eu e o velho nos tornamos grandes amigos assustando todos que ousavam invadir aquele cemitério à noite. Tinha dias, ou melhor, noites, que nos encontrávamos com os defuntos perdidos do local e jogávamos uma pelada com o crânio de alguém, o problema era quando a bola, digo cabeça, caia para fora do cemitério, aí tínhamos que arrumar outra. Arrumei até uma namorada, a Fernandinha Pele-e-Osso, no dia do nosso casamento (sim nos casamos) eu chamei o velho para nosso padrinho, um padre recém falecido celebrou nosso casamento.
- Eu vós declaro marido e mulher até que a morte... Bem eu vós declaro marido e mulher e pronto.
E tenho “vivido” assim, não sou mais o novato no cemitério, mas até que essa vidinha de morto tá muito boa!

 

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2. Ladrões de Ossos

- Larga de ser covarde cara! – berrou Adriano para Sandro.
- Covardia nada cara. Pô, é que eu continuo achando que isso é errado.
- Vamos gente, parem de discutir, agora a gente começou tem que terminar – falou Beatriz.
Os três estudantes silenciaram-se e voltaram ao trabalho de cavar. Já tinham reunido duas ossadas, mas queriam pelo menos mais uma.
- Droga, duas não é o suficiente? – questionou Sandro.
- Sandro, a gente precisa da ossada de uma criança, fica mais fácil estudar o desenvolvimento assim. – falou Beatriz.
- É, a Bia tá certa Sandro – agora era Adriano – a gente pegou a de um velho e o de uma jovem, agora com a ossada dessa criança nossa coleção fica completa, vai ficar mais fácil estudar assim.
- Quero ver o que a gente vai fazer com isso depois – Sandro era só dúvida.
- Depois a gente vende porra! Não é isso que combinamos? – explodiu Adriano.
- Fiquem quietos vocês dois. Querem acordar o cemitério inteiro?
Depois que Bia disse isso os três começaram a rir. Já haviam usurpado túmulos demais para ter medo de histórias de fantasmas, para eles a verdade era uma só: os mortos estão mortos, seus restos podem ser usados da maneira que bem entenderem.
- Achamos! Cuidado agora – disse Bia.
Os três deixaram as pás de lado e começaram a escavar com as mãos para não danificar os delicados ossos de criança que surgiam na terra.
- Pela conformação da cabeça deveria ter mesmo uns três anos – falou Adriano.
- Vem pro papai nenê, vem – falou Sandro e os três começaram a rir de novo.
- Até que é bonitinho – falou Beatriz.
- Sei não – parece meio magrinho demais, riu Adriano.
Enquanto os três continuavam seu trabalho uma figura aproximou-se por trás sem ser notada.
- Coloquem-no de volta! – ordenou uma voz grossa e ameaçadora.
Os três estudantes assustarem-se tanto que caíram em meio aos ossos. Eles olharam e viram um grande homem a sua frente, vestido com um terno cinza e com uma das pás usadas por eles nas mãos.
- Ladrões, vocês não passam de míseros ladrõezinhos de ossos! – disse o homem.
Os três ainda estavam aturdidos, mas Bia resolveu falar:
- Olha moço, não denuncia a gente não, a gente só estava coletando material para estudar e…
- Cala a boca sua vadia – gritou o homem novamente e Bia tremeu até a alma – estou cansado de ver vocês invadirem este cemitério.
- Cala a boca você cara! – gritou Adriano – não tem o direito de entrar aqui e nos tratar assim não.
- Silêncio seu maricas! Vocês não passam de uns estudantizinhos de merda! Mas agora passaram dos limites! Esse é o túmulo do meu filho.
- Olha moço, desculpa, a gente vai deixar tudo como era antes – tentou desculpar-se Sandro – o senhor nem vai notar a diferença…
- Hahaha – riu o homem – seu amigo tinha razão, você é um covarde.
- Como sabe disso? Você estava nos observando? – perguntou um Sandro trêmulo.
- Observo vocês desde que começaram seus furtos miseráveis, mas agora tudo acabou.
- Não nos denuncie a polícia moço – chorava Bia – nós somos jovens demais para ir para a cadeia, olha nossos pais tem dinheiro e…
- Cadeia? Quem falou em cadeia?
Os três jovens olharam-se assustados.
- O que você pretende fazer com a gente? – perguntaram os três quase juntos.
- Vocês não gostam de ossos? – perguntou o homem com um olhar sinistro – pois agora vão se juntar a eles!
O homem levantou a pá e com uma força sobre humana desferiu golpes nos três amigos. Bia foi a primeira, a pá atingiu sua face esmagando seu nariz e quebrando todos os seus dentes deixando uma cara amassada e disforme no lugar do lindo rostinho angelical de antes.
- Não! – Sandro gritou e tentou correr, mas ele também foi atingido, desta vez o homem golpeou sua barriga com a lateral da pá eviscerando suas entranhas.
- Agora você ladrãozinho! – disse ele erguendo a pá na direção de Adriano.
- Não moço, não – chorava ele.
Mas em vão, com um único golpe o homem usou a ponta da pá e o decapitou ali mesmo. Depois voltou até os outros dois e terminou o serviço.
- Agora acabou, sofram no inferno seus malditos.
O homem jogou a pá no chão e se afastou dali.
- Papai – uma voz de criança chamou – você acabou?
- Sim filho - disse o homem pegando um menino de mais ou menos três anos no colo – aqueles três não vão importuná-lo mais, não vão importunar mais ninguém.
Pai e filho seguiram caminhando até desaparecerem nas sombras do cemitério.
 
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3. O Último Adeus

- Venha conosco Augusto – ouvi minha irmã Kátia dizer.
- Não, vou mais tarde – disse eu olhando para o túmulo recém-tapado.
- Não há mais nada a fazer aqui meu irmão.
- Eu sei Kátia, mas continuo sem acreditar nisso – falei entre lágrimas.
- Vamos Kátia – disse Jonas, meu cunhado – só ele sabe a dor que está sentindo, devemos dar-lhe tempo.
Então Kátia e Jonas saíram juntos. Eu fiquei mais um pouco, as pessoas presentes no funeral começaram a afastar-se, eu me mantinha quieto e cabisbaixo, todos passavam por mim em silêncio, com os olhares vazios.
- Ah minha querida, vou sentir tanto a sua falta – dizia eu pensando em Elisa, minha amada Elisa.
Elisa era a parte mais importante de minha vida, minha âncora no mar revolto das incertezas da existência humana, sem ela eu estava à deriva, navegando sem rumo pelo mundo.
- Ai minha amada, deveria ter sido eu, deveria ter sido eu – repeti.
Sim, naquela noite era eu que deveria morrer, não ela. Estávamos os dois no carro quando ele bateu, mas só um de nós sobreviveu.
Mas eram mágoas passadas. E o passado se foi, não existia mais.
- Adeus Elisa, voltarei e deixarei flores.
Despedi-me de minha amada uma última vez ainda e me pus a vagar pelo cemitério. Só aí percebi como aquele local era grande e, pelo menos àquela hora da manhã, um tanto quando agradável.
“As pessoas procuram um lugar tranquilo para viver suas vidas, mas tem essa tranquilidade só aqui, depois de mortas.” – Pensei.
Observei mais dois velórios acontecendo. Pessoas abraçadas e chorando.
“Não sou o único a sofrer, todos perdem alguém na vida.” Essa conclusão me trouxe certo alento, não estava sozinho na saudade.
Caminhei entre as lápides, datas e nomes, epitáfios saudosos, homenagens, fotos dos que se foram. O cemitério era muito bem cuidado, todo gramado, arborizado e com canteiros de flores. Então percebi que não era o único caminhante naquele local, há alguns metros de mim uma jovem também caminhava, parecia procurar algo, até que parou e começou a chorar.
- Todos perdem alguém, todos tem alguém por quem chorar – dessa vez não pensei, eu realmente falei e encabulado percebi que a moça ouvira, se virara e tentou enxugar suas lágrimas.
Fiquei um pouco envergonhado, tentei virar o rosto, mas quando vi a moça se afastando eu a chamei:
- Ei moça, desculpe, não queria atrapalhá-la.
Ela parou e se virou. Quando vi seu rosto me lembrei de alguém, mas não sei quem, parecia alguém que tinha conhecido há muito tempo.
- Não atrapalhou, já é hora de ir. – disse ela - Desculpe, acabei de enterrar meu marido, mas vim até este local porque queria me despedir mais uma vez de meus pais. Eles foram enterrados aqui. Além do mais, você está certo, todos tem alguém por quem chorar, inclusive você eu imagino, senão não estaria em um cemitério. Veio rever alguém especial?
- Na verdade, vim me despedir de minha esposa, ela foi enterrada hoje – disse eu baixando a cabeça.
- Oh, eu sinto muito mesmo, o que aconteceu?
- Foi um acidente de carro.
- Acidentes acontecem, foi um que vitimou meu marido também.
- Mas ela era tão jovem – disse eu.
- Nunca se é jovem demais para morrer, mas mesmo assim morrer jovem é tão mais triste – disse ela contemplando o vazio.
- Mas eu gostaria que ela estivesse comigo. Como eu gostaria.
- O lugar dos mortos não é mais aqui, é melhor deixá-los ir. A vida continua.
- É, a vida continua – concordei.
Ficamos ali os dois de pé em meio aos túmulos, percebi que ela começou a me olhar mais atentamente.
- O que foi? – perguntei percebendo seu olhar.
- Nada, desculpe, é que parece que eu o conheço de algum lugar, mas não sei de onde. Deve ser engano.
- Engraçado, eu também acho que a conheço, mas também não me lembro – falei.
- Bem, de qualquer forma é hora de ir embora, talvez nos reencontremos algum dia, em uma ocasião mais feliz, quando nossos corações não estiveram tão machucados.
- É, realmente devemos ir.
- Adeus – disse ela se afastando – espero que supere sua dor.
- Adeus – disse eu, e antes que ela partisse de vez eu perguntei: - Ei, espere, qual seu nome?
- É Elisa.
Vi aquela moça afastar-se. Seu nome ficou em minha cabeça.
“Elisa, que coincidência mais estranha”, pensei.
Mas então minha memória retornou a tempos esquecidos, a figura de uma bela moça voltou a minha mente.
- Não é coincidência, meu Deus, era Elisa!
Olhei para os túmulos por sobre os quais ela chorava. Ali estavam gravados os nomes de meus sogros.
- Isso é impossível, Elisa está morta!
- Augusto! – ouvi a voz de minha irmã chamar atrás de mim.
Olhei e lá estava ela junto a meu cunhado Jonas.
- Agora não podemos esperar mais, devemos ir Augusto – disse Jonas.
- Kátia, Jonas, eu a vi. Vi Elisa! – gritei – ela não me reconheceu, eu não a reconheci! Não sei como isso é possível, eu sei que ela morreu.
- Augusto – Kátia aproximou-se e segurou minha mão – até onde se lembra?
Tentei recobrar a memória, ela veio aos pedaços, aos poucos voltei à noite do acidente.
- Está lembrando meu irmão?
- Sim, eu estou.
Um clarão inundou meus pensamentos.
- Kátia, não pode ser!
Comecei a chorar e ela me abraçou.
- Venha Augusto, precisa ver a prova final – chamou Jonas.
Eu fui com eles até o túmulo onde estava antes e li o que estava escrito sobre ele, não era o nome de Elisa que estava ali:
“Augusto Souza Duarte, querido e amado esposo, que os anjos guiem você.”
- É hora de ir Augusto – disse Kátia, a irmã que eu havia perdido junto com meu cunhado em um acidente de avião anos atrás.
- Obrigado por me deixarem vê-la novamente – agradeci a eles.
- Agradeça a ela, ela pediu isso em suas orações, agora ficará com o coração em paz.
Olhei mais uma vez o cemitério tranquilo, um belo jardim a luz do dia. Já não via mais Elisa, mas isso não importava mais, sabia que ela estaria bem.
Abracei Jonas e Kátia e deixei minha antiga vida para trás.

 
Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 09/02/2013
Reeditado em 19/08/2013
Código do texto: T4131911
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