O Último Vagão - DTRL

“Se as abelhas desaparecessem da face da terra, a espécie humana teria somente mais quatro anos de vida. Sem abelhas não há polinização, ou seja, sem plantas, sem animais, sem homens”

Albert Einstein

Tanto na natureza quanto na sociedade humana existe um fenômeno devastador conhecido como “Efeito Dominó”. Esse processo se traduz em um evento original que gera uma sequência de outros acontecimentos, que podem ter fim ou não. O termo foi cunhado em uma clara referência a brincadeira feita com uma série de peças de dominó enfileiradas, onde a primeira derruba a segunda, a segunda derruba a terceira, e assim por diante, até que todas estejam no chão. Desencadeada essa ação em cascata, ela dificilmente se encerra até que a ultima peça tombe.

Nesse sentido, os episódios a seguir podem ser encarados como o começo do fim.

XXX

Não era hora do rush, mas com as recentes mudanças da direção, os vagões agora andavam com sua capacidade máxima em praticamente todos os horários. O metrô – que um dia havia sido sinônimo de comodidade – se transformara em uma enorme lata de sardinhas. Os passageiros se acoplavam no pequeno espaço, com se fossem peças de tetris manuseadas por um jogador afobado e sem talento.

Para a felicidade das abelhas, o velho Felix havia acordado de manhã com uma desconfortável dor no peito. Durante toda a noite, ele rolara na cama procurando uma posição em que não ficasse sem ar. A tosse rouca e a respiração pesada, acordara sua filha e neta, sistematicamente, ao longo de toda a madrugada. Provavelmente, em razão desse fato, sua filha não tenha acreditado quando ele disse que eram apenas gases. E pelo mesmo motivo, tenha lhe obrigado a fazer essa pequena viagem até ao posto de saúde.

A vida realmente não era um vitral colorido e cheio de vida. Não, absolutamente. Era uma janela de vidro fosco, descolorido e sujo. Portanto, lá estava ele, no meio daquela caixa de fósforos lotada, entre uma colegial de olhos puxados e um entregador de flores de pele azeitonada. Felix suava – mesmo estando de frente para o potente ar-condicionado – um imenso rubor maquiava suas bochechas descarnadas. Estava escorado no corrimão, mas ainda assim se desequilibrava a cada parada de desembarque.

As portas do metrô se abriram, porém, poucas pessoas desceram na estação do Flamengo. Uma massa de ar quente invadiu o carro, um pouco antes de soar o alarme que precedia o fechar das portas. Finalmente sua agonia estava perto de acabar, afinal desceria na próxima estação. Felix olhou carrancudo para um garoto, que trazia uma mochila no colo e estava acomodado em um dos poucos assentos preferenciais. Fedelho desgraçado, ele pensou, mas optou por não dizer nada, pois uma dor incontrolável irrompeu no centro de seu peito. Quando a pressão fulminante atingiu seu ápice, ele teve certeza que desta vez seu coração safenado não aguentaria. Um líquido amarelo escorreu pelas suas pernas, manchando a surrada calça bege que tanto gostava. Um pensamento peculiar surgiu em sua mente, no momento que tombava rumo à morada eterna – Que merda. Não devia ter comido aquele X-tudo na praça.

Mas a verdade é que ninguém nunca poderá prever, qual será o maldito X-tudo que entupirá definitivamente suas artérias.

Um apito estridente soou mais forte um pouco antes das portas se fecharem. O corpo do velho Felix quicou no chão no momento em que a voz, incompreensível, balbuciava o nome da próxima estação.

Num primeiro momento, todos acharam que o pobre senhor havia se desequilibrado novamente. Em seguida, em razão da ausência de reação, as pessoas começaram a mudar de opinião. O entregador de flores abriu espaço e encostou sua orelha no peito, inerte, do velho.

A colegial, que estava logo ao lado, gritou por socorro, perguntando se havia algum médico no vagão. Algumas pessoas tentaram, em vão, socar as janelas lacradas do metrô, buscando chamar a atenção dos seguranças que estavam na plataforma. No entanto, o carro acelerou lentamente para o desespero dos passageiros – como um trem alemão rumando para a Polônia.

- Ele desmaiou? – perguntou a garota que vestia traje escolar.

- Acho que foi mais que um desmaio – respondeu o entregador de flores.

- O que você quer dizer com isso?

- Quero dizer que, na minha opinião, ele já era – o homem vaticinou com toda sua sensibilidade.

A colegial suspirou atônita, como se fosse a primeira vez que presenciasse uma morte ao vivo e a cores. As dezenas de passageiros, que circundavam o corpo do velho, começaram uma sorte de lamurias sem sentido, repleta de frases batidas, que tinham a profundidade de uma xícara de café.

- Tenho certeza que ele saiu dessa para uma melhor – disse um homem de meia-idade com a camisa da seleção brasileira.

- É, foi melhor assim. Quando chega nossa hora, não tem jeito – profetizou um ancião que parecia ter saído de um livro do Tolkien e que, pela sua aparência, já estava fazendo hora-extra nesse mundo.

- Agora ele está ao lado do nosso senhor Jesus Cristo – pregou uma senhora gorda de voz potente, que podia fazer parte de qualquer coral soul de New Orleans.

- Antes ele do que eu – ciciou, quase de forma inaudível, o garoto com a mochila no colo, que ainda permanecia sentado no assento preferencial.

Engana-se quem pensa que palavras murmuradas não possuem força. Como dizem os escandinavos: o mal nem sempre é anunciado por trombetas.

Tal qual uma profecia em um filme de terror, a frase silenciosa do garoto mal criado, serviu como um estranho mantra despertador de mortos. Como se tivesse escutado o vilipêndio juvenil, Felix levantou seu tronco e encarou o moleque desrespeitoso. O olhar do velho era frio, mas seu semblante era de raiva. O rosto - sinistramente contorcido – sorria de maneira ameaçadora, deixando bem visível os caninos pontudos – que foram cuidadosamente moldados pelo ortodontista que lhe vendera a dentadura. Uma saliva escura escorria pelos lábios carcomidos e rachados. Seu rosto parecia rejuntado, muito mal rejuntado.

O pirralho pensou em gritar e sair correndo para o outro lado do vagão, mas Felix o agarrou pelas pernas, desequilibrando-o instantaneamente. Os olhos pueris cobertos de desespero encontraram os olhos varonis vermelhos e macabros. Uma ruga surgiu entre as sobrancelhas do garoto, bem no momento em que se deu conta da gravidade da situação.

O velhaco assumira a posição de controle e agora estava sobre sua vitima “inocente”. Completamente subjugado, não restou nada que pudesse fazer quando Felix arrancou com seus dentes um tasco farto da bochecha acostumada a cuspir besteiras.

Os gritos de dor foram abafados pelos xingamentos que os passageiros proferiam em direção ao velho ensandecido. Todos gritavam, mas ninguém compreendia o que realmente estava acontecendo. O jovem, que já estava com o rosto completamente desfigurado, parou repentinamente de se debater. O bizarro idoso abandonou a parte superior do corpo e abocanhou o abdômen – flácido e sem pêlos – com uma voracidade incontrolável. Sua fome era insaciável. Em questão de segundos já havia devorado 1/3 dos nove metros de intestino delgado.

A senhora gorda – que agora estava berrando frases de exorcismo – jogou sua bolsa no chão, pegou o guarda-chuva da velhinha ao lado e acertou Felix na altura da orelha. O velho acusou o golpe e tombou para o lado. Aproveitando a ação destemida da senhora gorda, o entregador de flores pulou sobre o homem senil na tentativa de imobilizá-lo.

O cadáver fresco do garoto mal criado ficou visível para todos os espectadores à sua volta. Alguns passageiros suspiraram alto, enquanto outros cobriram a boca de pura incredulidade diante daquela cena de terror. Três rapazes, que vestiam fardas beges e boinas vermelhas, provavelmente estudantes de algum colégio militar, se aproximaram do velho imobilizado e começaram a desferir chutes furiosos em suas frágeis costelas. Com certeza eles conheciam a lei de Lynch •. Aos poucos outros homens, que não conheciam a lei, mas entendiam de linchamento, iam se aproximando e repetindo o gesto. Poucas pessoas possuem a coragem de começar uma boa ação, contudo, quase todas adoram terminar as boas ações que não deram muito certo.

Como se fosse apenas mais uma das tantas discussões rotineiras que acontecem no metrô, as pessoas que estavam do outro lado do vagão e não conseguiam ver o que estava acontecendo, começaram a vaiar todos os envolvidos no estardalhaço.

A colegial, que ainda se recuperava da “morte” do velho Felix, se abaixou perto do corpo destroçado do jovem provocador e apoiou o que restava de sua cabeça em seu colo pouco desenvolvido. O garoto desfigurado a encarou, com o único olho que ainda restava, e, sem que ela pudesse realmente compreender, mordeu sua virilha em uma espécie de sexo oral selvagem. A cena, somente vista em algum pornô trash com fama de snuff, era bizarra e animalesca.

O sangue escorreu pelas pernas da menina de olhos estreitados e ela gemeu. Mas não foi um gemido de prazer. Seu sentimento era de puro horror. Nenhuma mãe podia prepará-la para aquilo. Havia perdido mais que sua virgindade e não havia sido com seu príncipe encantado. Vomitou e entrou em colapso. Seu corpo tremia e ela chorava em silencio.

O garoto deformado se dependurou no pescoço frágil da pobre menina e escalou até a altura do peito. Parte de suas tripas pendia do enorme buraco recém-construído em seu dorso. Seus olhos eram duas esferas escarlates. Seguia, apesar de morto. Grunhiu algo indecifrável, que soou como uma trombeta de guerra. Olhou em êxtase para seu prêmio e, em seguida, destroçou o seio esquerdo, que ainda estava se desenvolvendo. Dessa vez ela gritou. Um grito de agonia e desespero. Um grito de alguém que sabe que não há mais esperança.

O entregador de flores atarefado se lançou sobre o moleque desprezível numa nova tentativa desesperada de imobilização. Entretanto, atravessando a tênue linha que separa o heroísmo da estupidez, também acabou sendo atacado. O velho Felix aproveitou o espaço vago, deixado pelo entregador de flores, e conseguiu abocanhar o calcanhar da senhora redonda que empunhava o guarda-chuva. Um dos “boinas vermelhas” escorregou na imensa poça de sangue e também pode sentir a fome insaciável das criaturas ensandecidas.

O pânico percorreu o vagão como uma onda de histeria, que logo foi envolvida pelos pedidos de clemência das vitimas que eram devoradas vivas.

A voz na caixa de som anunciou – Próxima estação: Botafogo. Desembarque pelo lado direito – Mas nenhum ser vivo daquele vagão desembarcaria com vida na próxima plataforma.

A colegial fechou os olhos lentamente, observando toda a loucura da chacina que acontecia diante de sua morte iminente. Ela fitou uma última vez a sua mochila das garotas super-poderosas, enquanto ao fundo, um massacre monstruoso ornava sua paisagem.

Dormiu.

Quando acordou estava morrendo de fome.

XXX

A escalada da morte agia impiedosamente, fazendo vitimas ao mesmo tempo em que recrutava parasitas. Tal qual um pique-pega de crianças. Os primeiros são sempre mais difíceis de capturar, mas depois que a teia está formada, não tem escapatória.

A brincadeira estava próxima do fim.

1 - O vocábulo Linchamento tem sua origem na famigerada Lei de Linch. A referida lei carrega o nome do cruel Capitão do Condado de Pittsylvania, na Virgínia, Willian Linch, que a aplicava o assassinato do individuo pela multidão, no intuito de manter a ordem e servir de exemplo, durante a revolução de 1780 nos EUA.

RSollberg
Enviado por RSollberg em 15/02/2013
Código do texto: T4142137
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