Já usei o artifício desse conto algumas vezes, dá bons resultados. Um aviso aos puristas: esse aqui tem pouco de terror. Mesmo assim, uma
boa leitura!


A Casa de Virgínia - DTRL



“Virgínia, venha Virgínia, já é hora de ir” – reconheci aquela voz, era uma voz impossível de esquecer, era a voz de minha mãe.
Era assim que ela me acordava delicadamente na cama. Como gostaria de ouvir aquela voz de novo, pois aquela voz que ouvia agora devia ser somente uma lembrança, nada mais. Minha mãe estava morta.
Ainda com aquela lembrança tão vívida na memória eu me levantei da cama e olhei em volta, talvez tivesse sido apenas um sonho, um sonho alimentado pelo ambiente onde estava: o lar que um dia eu deixei. Mas agora estava de volta.
Estava de volta. E era bom dormir no mesmo quarto onde passei a juventude, era bom ser cercada pelas mesmas paredes que assistiram a longa jornada de minha infância. Era meu lar e não há nada como o lar.
Entretanto com o passar do tempo as coisas mudam, se transformam. Aquela casa sempre foi cheia, agora apenas eu estava ali, cansada de uma vida errante a exilada  retornava para seu ninho. E tudo parecia tão diferente agora! A grande casa de dois pavimentos totalmente vazia, a solidão assombrando cada cômodo e cada corredor, mas não só ela, algo mais assombrava aquele local.
Desde minha volta percebia a estranheza que me cercava, as vezes parecia estar num sonho, uma outra realidade, uma dimensão onírica onde as cores eram em alguns momentos muito desbotadas e outras vezes cheias de vida, onde os sons se comportavam de  maneira estranha se fazendo ouvir onde não estavam. Meus sentidos pareciam estar confusos, desorientados e eu me sentia perdida,  sem eles para me guiar entre aquelas paredes.
Podia-se pensar que estava louca. Dizem que a loucura visita as pessoas solitárias. Mas teimava em pensar que não, teimava em pensar que um mínimo de razão ainda me mantinha coerente. Seguia e confiava na lógica sem saber que até ela se rebelaria contra mim.
O primeiro sinal de alarme foi o choro. Um choro infantil ecoava pela noite despertando meu sono, mesmo distante aquele choro parecia vir de dentro de minha casa. O medo apoderava-se de mim, eu me colocava de pé e seguia aquele lamento de criança, mas ele parava, ele sempre parava. Era como se algo acalentasse a dor do pequenino ser que pedia por ajuda.
Depois vieram as vozes, iam e vinham de todas as partes, eu procurava por sua origem em vão, a casa permanecia vazia. Nestes momentos achava realmente estar louca. Relutante, teimava em usar o pouco de sanidade que ainda havia em mim para achar uma explicação para tudo aquilo.
“Virgínia, venha Virgínia, já é hora de ir.” – também ouvia a voz de minha mãe novamente, não irreal como em um sonho e sim como algo vivo e presente.
- Mãe? Você está aqui? – me surpreendia perguntando ao vazio.
- Calma Virgínia, você está ouvindo coisas  garota – falava para mim mesma a fim de me tranquilizar.
Tentava voltar a minha rotina normal, limitada apenas a ficar em casa como se o mundo lá fora não existisse, aproveitando da maneira mais ociosa possível o passar do tempo, tempo este que se arrastava de maneira muita estranha, encarcerada naquela casa não podia dizer ao certo se era dia ou noite, se o sol estava nascendo ou se pondo. Era como se o relógio parasse.
Mas essa impressão estava errada, aos poucos percebia sutis mudanças no ambiente a minha volta. Móveis fora do lugar, quadros estranhos na parede, objetos sem relação alguma com aquela casa ou com minha família apareciam a todo o momento. Minha casa parecia passar por uma transformação silenciosa, mas perceptível.
E as vozes continuavam, na verdade aumentavam. Ouvia diálogos serem travados, risos de crianças e o choro à noite, o choro de um bebê! Definitivamente eu não estava sozinha!
Cansada de ver o lugar onde cresci ser remodelado pelas estranhas presenças eu parti para a ofensiva. Aquela era minha casa, as coisas deveriam ficar do jeito que sempre foram!
Retirei os estranhos quadros das paredes, removi os móveis de lugar, guardava qualquer objeto estranho que encontrava. Passava um bom tempo realizando essas tarefas e depois voltava para o lugar mais seguro daquela casa, o único local ainda não profanado: meu quarto.
Por uma noite tive paz.
Mas no outro dia uma surpresa:  ao tentar sair encontro minha porta trancada! Um medo apoderou-se de mim. Quem faria aquilo? Quem me trancaria em meu próprio quarto. Procurei a chave que sabia possuir e enquanto vazia isso olhei pela janela e, como tudo o que via, a própria rua parecia diferente, parecia uma foto borrada, lembrava pouco a rua de minha infância, será que eu estava perdendo tanto a noção das coisas a ponto de não notar as sutis mudanças ocorridas com o passar dos anos em minha ausência? Algo mais chamou minha atenção, a rua não estava vazia, crianças corriam aqui e ali atrás de uma bola, exatamente como eu já fiz um dia, sorri um pouco com aquilo e vi que uma das crianças, uma menina, olhou brevemente para cima e pareceu me ver. Pude ver que seu rostinho paralisou-se por um momento e ela olhava fixamente para mim. Entretanto abandonei aquele olhar e novamente me pus de volta a tarefa de procurar a chave, eu a encontrei e abri a porta.
Ao sair constato que os quadros e os objetos que havia guardado haviam retornado a seus lugares assim como os móveis. Eu não me controlei e gritei a plenos pulmões:
- Se há alguém aqui eu quero que vá embora! Entendeu? Vá embora!
Ouvi alguns gritos e correria. Corri também, pensei ter visto alguns vultos passando rápido pelo corredor. Senti medo naquele momento e voltei para o meu quarto e enquanto voltava ouvi novamente a voz tão conhecida?
“Virgínia, venha Virgínia, já é hora de ir.”
- Mãe? – falei para o vazio.
Não houve resposta. Desolada deitei em minha cama e chorei baixinho. Eu não entendia nada do que estava acontecendo naquela casa.
Sonhei. Era um belo sonho, um lugar irreal e cheio de luz, vi minha mãe, ela estendia os braços para mim, senti paz naquele momento, senti vontade de ir com ela e eu iria, só que...
Ouvi um barulho, vinha da porta. Compreendi sua natureza, alguém, ou algo, trancava a porta pelo lado de fora.
- Não vão me trancar aqui novamente, de jeito nenhum. – disse eu.
Me levantei, peguei minha chave e abri a porta. Enquanto a abria vi outro vulto sair correndo pelo corretor.
- Volta aqui! – gritei.
Eu fui atrás do vulto, mas o perdi de vista, parecia um homem. Eu retornei para o quarto e no caminho me lembrei de meu sonho.
- Mãe, gostaria que estivesse aqui agora. – falei.
Mudei de rumo e me dirige ao antigo quarto de minha mãe. Parei em frente à porta, aquela porta eu sabia estar trancada, eu mantive o quarto de mamãe impecável desde o dia em que ela se foi. Mesmo assim pousei as mãos na maçaneta e a girei e, para meu espanto, a porta se abriu.
Entrei.
Lá dentro encontrei um quarto arrumado, mas como os outros aposentos da casa tudo ali era estranho, tudo havia sido mudado. Tudo menos a penteadeira onde mamãe se sentava e se arrumava. Eu me aproximei daquele móvel, um vestígio de um passado que não voltaria mais e olhei no grande espelho ali colocado. E não pude conter um grito quando vi o reflexo.
Uma mulher me observava do espelho, e não era eu. Instintivamente me virei, novamente um vulto parecia sair. Olhei novamente no espelho, mas nada mais se via ali.
- Deus, por favor me ajude! – implorei, se a lógica falhava talvez a fé ajudasse.
Retornei enfim ao meu quarto e eu mesmo, tomada de medo, tranquei a porta. Procurei entre as gavetas um objeto e o encontrei, um pequeno rosário de contas brancas, sentei-me na cama e comecei rezar o terço, pedindo a Deus uma luz que me fizesse enxergar uma saída de tudo aquilo.
- Senhor Deus, eu preciso do Senhor! – eu, cética em tudo, me via implorando por uma força invisível, não aguentava mais aquela situação.
Mas meu rito particular não parecia ser o único. Ouvi mais vozes, alguém em algum lugar também parecia fazer um ritual. Um cântico desconhecido reverberava pelas paredes, sabia vir da sala, mas a força daquele ritual me amedrontava muito. Sentia toda a casa tremer, sentia portas e janelas se abrirem furiosamente, objetos se quebravam ao cair ao chão. O ritmo e o volume do canto, entoado em uma língua totalmente estranha para mim, aumentavam a cada minuto. Eu me encolhia mais e mais e segurava o rosário com firmeza.
- Estão querendo me expulsar, me expulsar de minha própria casa! Deus não permita isso!
Então tudo parou de repente. O silêncio reinou, o tremor acabou. Senti um pouco de paz, como se algo ruim tivesse ido embora. Foi aí que um barulho na porta novamente chamou minha atenção, a fechadura estava sendo destrancada, a maçaneta começou a ser girada, a porta se abriu e eu o vi entrar.
Pela sua roupa percebi logo quem  ele era: um Padre.
- Deus mandou o Senhor? – perguntei chorando e ainda segurando firmemente  o rosário.
- Pode-se dizer que sim minha filha – disse ele, e sua voz,  a primeira voz que ouvia depois de tanto tempo enclausurada naquela casa, me reconfortou.
- Padre, essa casa... tem acontecido coisas estranhas aqui. Tem uma presença estranha neste local.
- Não se preocupe Virgínia, tudo vai ficar bem.
E suas palavras me fizeram sentir outro medo repentino. Como ele sabia meu nome? Ele pareceu perceber isso:
- Tenha calma minha jovem. Agora me diga o que a faz ter tanto medo? O que viu nesta casa?
Passei então a relatar os estranhos acontecimentos que presenciei, aquele homem era um estranho, mas era o único a quem eu podia contar tudo sem passar por uma louca.
- Desde que eu retornei tudo está diferente, não sei se estou sonhando ou estou acordada, eu ouço vozes padre e também um choro, um choro de criança todas a noites. As coisas mudam de lugar sozinhas, as portas se trancam e se abrem sozinhas, há mais alguém nesta casa padre.
- E como sabe disso?
- Minha mãe padre, às vezes eu a ouço me chamar, ela diz para eu ir com ela.
- Mas nunca viu nada, não é mesmo?
- Sim padre, eu vi! Hoje no espelho, havia alguém me olhando, uma mulher, mas quando voltei a olhar, nada mais se via ali.
- Virgínia, quer dizer que quando você voltou a olhar...
-... nada mais se via ali padre. Nada mais se via...
Nada mais se via ali!
Como não percebi aquilo!
Segurei o rosário firmemente. As mãos do padre pousaram sobre as minhas, percebi o calor que emanava deles, um calor ausente em mim.
- Filha, acho que já é hora de você ir.
Eu chorava, chorava por descobrir uma verdade que esteve o tempo todo diante dos meus olhos, a única presença estranha naquela casa era eu mesma!
- Como pode ser? – perguntava.
- Outra família vive aqui agora – disse o padre – eles me chamaram.
- Não entendo...
- Virgínia, você já cumpriu seu dever neste mundo, agora vá, tudo será revelado.
Estava aturdida, mas aos poucos a paz voltava a meu coração, e ela foi maior quando ouvi novamente aquela doce voz:
“Virgínia, venha Virgínia, já é hora de ir.”
Lá estava ela, minha mãe, tão bela quando no sonho!
- Adeus Virgínia – disse o padre – vá em paz!
Entreguei o rosário a ele e o abracei.
- Adeus padre, e obrigado!
Parti com minha mãe, a minha verdadeira casa me esperava.

Para refletir um pouco:
No perfil de nosso camarada Antoniomoto tem um declaração de muita humildade, mas de grande sabedoria. Ele diz: “sou só um contador de histórias...”. Meus amigos e amigas, sejamos todos então simples contadores de histórias. No início dos tempos os homens faziam isso ao redor de fogueiras, hoje fazemos isso usando computadores e outros meios. Entretanto não é a luz do fogo ou da tela de um computador que nos encanta, e sim o brilho misterioso da imaginação humana, nosso motor neste mundo abençoado. Não deixe a imaginação morrer, mantenha viva essa luz.
Não somos escritores, nem profissionais nem amadores, somos contadores de histórias!
Antoniomoto, você é o cara!
 
 


Luciano Silva Vieira
Enviado por Luciano Silva Vieira em 16/02/2013
Reeditado em 16/02/2013
Código do texto: T4143755
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