A Valsa do Lunático

As cortinas do palco se fecharam, mas as palmas contiuaram. Era talentosa, muito acima da média para sua idade, sabia disso, mas gostava de simplesmente fazer o seu, agradecer e sair. Não tinha essa mania de grandiosidade ou essa ambição pela fama que muitos tinham. Era ela que tirava a beleza da música, a pureza da arte feita pela alma.

A violinista retornava ao camarim improvisado carregando seu violino com o mesmo cuidado de sempre. Como se fosse uma criança frágil ou uma peça rara de cristal. Ainda que houvessem muitos outros modelos melhores que o seu, gostava dele e fim. Havia sempre uma sintonia entre o instrumento e seu dono, algo que se levava anos para construir, tal como a confiança que se tem nas pessoas.

As mãos de musicista eram leves, finas e suaves como as notas que das cordas de seu instrumento saíam. Seu vestido rosa claro era leve e combinava com sua meia calça e sapato branco envernizado. O cabelo castanho estava firmemente preso num coque no alto da cabeça, para que durante a apresentação não ocorresse, por alguma desgraça, deles caírem sobre as cordas e atrapalharem.

Abriu a porta do camarim e entrou. Sinceramente estava com fome e cansada, até com uma ponta de sono, porém se surpreendeu. Sua poltrona estava virada e havia um homem nela sentado.

- Oi? - perguntou a garota receosa.

Não era seu pai. Nem seu irmão. Nem seu professor.

O homem se manteve imóvel.

- Moço eu posso aju...

A cadeira virou-se e mostrou a face do homem. Estava sentado e sorrindo. Um sorriso febril como de quem mal pode contar até dez. Porém estava muito bem vestido. Trajava um smoking impecavelmente limpo e bem passado, com sapatos de ponta quadrada e envernizados. A gravata borboleta parecia milimetricamente alinhada ao seu queixo e a camisa de linho chegava a projetar a luz de tão branca que se encontrava.

Os cabelos estavam penteados para trás, divididos de forma simétrica e brilhantes pelo gel. Porém toda classe não apagava a aparência pálida e nada saudável de seu rosto. Havia profundas orelhas em volta de seus olhos, olhos cansados de que não dormia há tempos, olhos possessos. As rugas em volta do rosto eram acentuadas também, um rosto judiado não somente pelo tempo implacável, mas por nítidas agressões físicas. Agora ela tinha medo.

Alice receosa, segurou a maçaneta da porta.

- Calma menininha... –

- E... O que o senhor quer?

Tentou manter a voz forte, mas foi difícil. O medo estava ali na sua garganta, tentando falar por ela. Ou a impedindo de gritar.

O homem levantou tirando as mãos do bolso. Os dedos eram tortos e feios vítimas de alguma má formação de origem genética. Aproximou-se de Alice e pegou suas mãos. Usava um perfume adocicado e enjoativo, que fez a menina torcer o nariz ainda que não fosse a atitude mais sensata a se fazer naquele momento.

- Tocar como você. É isso que eu quero minha querida. Somente isso- disse suavemente.

O homem desatou a rir, enquanto se segurava encostado a parede. Parecia se contorcer para os lados e seus olhos desfocavam a todo momento. Apesar do medo, Alice respondeu:

- Eu... eu... eu não compreendo. Ou melhor compreendo sim mas... o que posso fazer senhor?- apesar de todo medo, havia uma nota de compaixão em sua voz. Ela realmente queria ajudar aquele homem, fosse isso instinto de auto preservação ou não.

O homem de repente se tornou sério. Logo após sorriu.

- Muito simples minha querida... Muito rápido e simples.

A agarrou pelo pescoço e a empurrou na cadeira. O violino caiu de sua mão. De canto de olho, Alice viu cordas no chão e madeira rachada. Rachada como seu coração naquele momento. Ah, seu violino!

Então desatou a chorar. Chorava pelo violino quebrado, pelo seu pedaço ali quebrado. Chorava porque amava viver e vivia pela música. Chorava porque tinha medo de nunca mais ouvir as notas que eram tão suas amigas. Chorava pelos pais, mas nisso era de raiva. Onde estavam que não vinham acudi-la? O homem abaixou-se, sem largar seu pescoço e mexeu em um saco preto que até então havia passado despercebido a menina. De lá tirou um monte de cordas relativamente grossas.. Amarrou-as firmemente em volta da garota que agora gritava.

Com duas cordas menores, amarrou seus braços fininhos à cadeira, na altura dos pulsos. Parecia executar uma dança. Alice se debatia, ou pelo menos tentava. Ela chorava,gritava, esperneava e o maníaco suava. Sabia disso não só pela pele úmida do mesmo, mas pelo cheiro adocicado do perfume que rescendia no ar agora.

O homem tirou do smoking um cutelo. Por um momento passou pela cabeça de Alice como raios ele havia conseguido manter um cutelo dentro de um smoking.

- Quietinha do contrário, além das mãozinhas corto-lhe a lingüinha.

Alice olhou horrorizada para o instrumento na mão do homem.

Onde estava todo mundo que não ouvia os gritos de desespero dela?

- Agora vamos lá... Ah colabore, pare de gritar menininha! Se você continuar se debatendo desse jeito, eu vou acabar fazendo merda e eu realmente não quero isso. Respira fundo. Um, dois, três!

O golpe foi certeiro no punho da garota que urrou de dor. O choro cessou diante da agonia. Era dor demais para uma pessoa só. O sangue escorria e manchava seu vestido fino, ensopando-o. Era tanta dor que já havia perdido as forças.

- Vamos, só falta uma e ai titio já acaba ok? Um, dois, três e... já!

Mais uma vez, o cutelo desceu seco sobre o braço da menina, amputando-lhe a outra mão, que por sua vez doeu menos, uma vez que já beirava a inconsciência.

O homem pôs uma das mãos amputadas de Alice sobre os pedaços do violino e a outra sobre o arco.

- Veja como toca menininha!- disse ele emocionado.- Ouça a melodia! OUÇA AS NOTAS!

Alice mal podia se agüentar O mundo rodava ao seu redor e o sangue esvaia por seus pulsos. Via o homem a dançar... Chorava. Por que? Emoção? Agora o mundo escurecia. Cada vez mais. A cabeça se tornava pesada... Queria ouvir a música que ele ouvia. Era seu último desejo, a música.

- Ouça menininha, ouça!

Tentou dizer que queria, queria muito, mas o som não conseguiu sair.

Não podia mais segurar os olhos.

Os pais, percebendo a demora da garota, foram procura-la.

Bateram na porta uma, duas, três vezes, sem obterem resposta. Perceberam que estava apenas encostada. Ao entrarem se depararam com um lunático que dançava ao som de uma valsa imaginária, um violino ensanguentado e despedaçado, a filha morta em sua poltrona e as mãos da menina sobre o violino que muito provavelmente tocava a valsa do lunático.