Por Quem os Sinos Soam

-Padre Souza é um santo! -Disse a freira com toda convicção.

-Por que Deus permite uma coisa dessas?

-Jamais duvide da sabedoria de nosso Senhor. Como sabemos, Deus escreve reto sobre linhas tortas. Para todas as suas ações, há uma razão. O padre Souza está em teste sobre sua fé.

A jovem, diante seu leito, olhava com pena para o corpo completamente inerte do padre em coma, naquele hospital, recebendo soro na veia. Ao olhar para cima pela janela, avistou no horizonte longínquo uma torre de sino de uma igreja abandonada. Sabia sobre a existência do lugar obviamente, mas uma dúvida, até parecendo tola num momento como aquele, se passou por sua cabeça, e ela logo foi falando para sua superior:

-Madre, a senhora sabe qual foi a última vez que aquele sino soou? -Apontando para o lugar em questão, pra fora da janela.

-Claro que sim. Mas por que a dúvida agora?

-Só uma curiosidade que me veio a cabeça.

-Você sabia que o padre Souza admirava aquele monumento?

A noviça respondeu balançando a cabeça em negação e a Madre voltou a falar:

-Ele a contemplava toda manhã. Foi num dia triste e violento de 1989, eu e o padre estávamos observando descontentes as ações medíocres e revoltantes de nossos próprios devotos. Agiam como um bando de animais selvagens, destruindo tudo o que viam pela frente, assaltavam as lojas e maltratavam quem estivesse contra eles, todos descontentes com coisas incorretas que o prefeito vinha fazendo no decorrer de sua candidatura, mas não dava direito a eles fazerem isso com os outros que assim como eles, estavam tentando ganhar a vida.

"Foi neste exato momento, que o padre Souza subiu até o topo da torre e lá de cima, gritava pra todos ouvirem: 'Vocês não são dignos do amor de Deus! Como prova disso, as missas e os sermões nesta igreja estão encerradas a partir de agora!' E ele mesmo puxou a corda sendo a última vez que ouvimos o belo som daquele sino."

Sem saberem (e se soubessem se assustariam), ao lado delas, o espírito do padre estava parado de pé, totalmente invisível aos olhos mortais, olhando sem entender seu corpo deitado naquela cama! Seu espírito estava atormentado e imaginava ser por causa de uma força maligna, que desejava nada mais e nada menos do que enlouquecê-lo e invadir seu corpo, possuindo-o para o mal!

O padre apertou a cabeça com as mãos, a dor era imensa. Uma voz exprimindo o sonso tom vocálico de uma criança brincando feliz, penetrava como um barulho infernal em seus ouvidos, que por mais que ele os tapasse com as mãos, iria continuar ouvindo-a:

"Você vai morre-êr! Você vai morre-êr! Você vai morre-êr, e sabe quem estará te esperando?... BELZEBUUUUU!!!"

O pobre homem pedia desesperadamente ajuda para suas duas irmãs, que não o escutavam de maneira nenhuma.

Ao ver a cruz em cima da cabeceira do leito onde seu corpo estava deitado praticamente falecido, pregada na parede em sua frente, tornando-se de uma tonalidade escura até que ficou da cor preta, se apavorou, mas não tanto como quando ela começou a se desfazer e escorregar lentamente pela parede, como se fosse feita de um material pegajoso e sem consistência!

O espírito do padre saiu desnorteado do quarto, cambaleando pelo corredor e entrou no banheiro. Estava vivenciando uma terrível viagem fora de seu corpo, após ter pegado num sono que já durava dois longos meses!

Apesar de ser uma alma penada vagando pelo hospital, sua consciência agia como se ainda estivesse em posse do corpo, e via o seu redor da mesma maneira. Um exemplo disso, ao chegar no banheiro, o padre abriu a torneira da pia para jogar um pouco de água no rosto. Por acreditar que ainda podia fazer isto, a torneira, vista pelo pobre coitado que estava ali fazendo suas necessidades fisiológicas a alguns passos de distância, abriu sozinha e a água se espalhava no ar! De tão amedrontado, o rapaz saiu correndo do local se esquecendo de fechar o zíper de sua calça!

O padre levantou a cabeça e viu sua fisionomia abatida refletindo no espelho. Atrás dele, viu um inseto do tamanho de sua mão, com a aparência de uma mosca, subindo a parede!

Imediatamente, o padre se virou para certificar-se da imagem refletida, entretanto, não havia nada além dele no banheiro. Ao voltar-se novamente para o espelho, se espantou com a quantidade de insetos iguais aquele se amontoando de maneira sinistra, até formar um corpo demoníaco, o qual parecia sair de dentro da parede! A voz falou bem perto de seu ouvido:

"Belzebu está aqui! Belzebu mora nessa cidade há muito tempo, e ele odeia a sua presença!"

De acordo com o catolicismo, Belzebu é um dos sete príncipes do inferno e é a forma do segundo pecado capital -, a gula -. O padre, talvez por seu estado emocional péssimo, estaria imaginando criaturas e seres demoníacos da história, se confundindo com sua realidade atormentada atual? Certamente, algo de muito ruim estava acontecendo com ele, mas será realmente que é culpa de um demônio antigo, ou seria apenas a hora dele deixar o mundo e partir, uma vez que sua crença não acredita no que está acontecendo com ele mesmo?

Seu espírito perambulava perdido as ruas desertas e escuras da noite na cidade, se deparando com almas necessitadas de ajuda, que sofreram de doenças, infecções, vícios, culpas...

Desesperado, a cada passo sentia a angustia dominar seu interior de tal forma, levando-o a se apegar a um terço que estava em seu bolço, como um amuleto de proteção. A sensação de estar só, impotente a qualquer ataque que surgisse da escuridão de becos nefastos, cheios da podridão da alma humana, o fazia caminhar cada vez mais depressa acelerando seus batimentos cardíacos. Não só seu espírito estava sentindo isso, como seu corpo também. Tinha chegado a hora de dar adeus ao nosso planeta. A aceleração dos batimentos terminaria com um infarto.

Então, um ser iluminado surgiu de repente em sua frente, questionando-o:

-Por que se perde? Por que tem medo? Suas ações em vida foram tão puras e belas... não se deixe levar por meras imagens do mal. Não se assuste com coisas inexistentes. Sua hora, meu adorado filho, chegou.

A figura lhe estendeu a mão, o libertando de um abominável terror criado por seu próprio subconsciente.

-Não! Madre, o padre Souza está sem batimentos!... Ele acabou de falecer! -Afirmou aflita a noviça.

A freira andou depressa até a cama e sem outra atitude em vão, lhe deu um beijo na testa.

-Ele se foi... ele se foi...

De repente, ambas começaram a escutar um som que as deixou perplexas, pois pensavam que nunca mais iriam escutá-lo -, os sinos da torre voltaram a tocar.

Rafael Contos
Enviado por Rafael Contos em 01/03/2013
Reeditado em 28/11/2014
Código do texto: T4166797
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