O Rosto

"Aquela face estampada na velha parede esfumaçada."

Sempre convivemos com situações que despertam nossa curiosidade. Talvez quando somos crianças e olhamos para o céu, enxergando figuras bizarras formadas pelas nuvens, ou mesmo paredes tomadas pelo mofo que formam, desde animais até mesmo rostos humanos ou de monstros.

Quando cheguei à casa de minha avó, em 1978, aquela cozinha pequena, de teto baixo, telhas de barro e um imenso fogão de lenha eram para mim uma grande novidade, algo jamais visto no bairro da Mooca, em São Paulo, reduto dos italianos.

Aquela parede, toda escurecida pela fuligem de tantos anos cozinhando me fazia sonhar e relembrar os velhos tempos no Parque do Carmo, olhando pro céu. A diferença é que, ao invés do azul, era apenas escuridão. Aquilo criava formas e figuras que despertavam minha imaginação. A vovó me olhava de longe, do sofá velho. Nada dizia, mas de certa forma parecia sentir vontade de me dizer algo. Ninguém daria crédito ao que ela dissesse, pois a doença de Alzheimer causara alucinações imensas na matriarca da família.

Uma dessas figuras, porém despertou-me a atenção. Parecia um rosto. Não, não parecia: era realmente um rosto, rosto de mulher. Aquela face estampada na velha parede esfumaçada.

Eu não conseguia parar de olhar para aquilo ou aquela. A cada dia, parecia ver mais detalhes, uma imagem mais clara, nítida. Uma moça linda, longos cabelos. Já estávamos para partir de volta a São Paulo, e meu interesse aumentava ainda mais.

Minha mãe começou a se incomodar com aquilo. Não era um incômodo comum. Ela chegava muitas vezes a ficar aflita, nervosa. Dava-me broncas, queria me tirar da cozinha a todo custo.

No sábado, insistiu que meu pai me levasse para a feira. Eu não queria ir, mas como era nosso último dia na cidade, preferi não recusar.

Na volta, corri direto para a cozinha, e pra minha surpresa, estava tudo diferente. As paredes receberam uma pintura azul clara, cobrindo toda a escuridão das paredes, inclusive o belo rosto que idealizei. Parecia que meu mundo estava desabado. No auge dos meus treze anos, minhas fantasias e paixões de adolescente estavam à tona. Comecei a chorar e fiquei revoltado com o que fizeram.

Fiquei a tarde toda triste, chateado. Peguei um pedaço de papel, e com meu leigo conhecimento comecei a rabiscar o papel, numa tentativa de tentar reproduzir aquele belo rosto. Nada aparecia, além de rabiscos mal feitos. Então adormeci por uns minutos.

Tive um sonho estranho. Parecia que tal moça me chamava, queria falar comigo, mas seu rosto estava embaçado. Já que sonhos sempre são confusos, de repente não era mais uma moça: era uma criança, um bebê, nossa, que coisa esquisita!

Acordei meio desnorteado e resolvi ir até a cozinha tomar um copo com água. Não resisti, voltando meu rosto para a parede onde estava antes o belo rosto. Que esquisito! Lá estava ele novamente, se formando por entre a tinta, ainda fresca. Ouvi uma voz estranha, dizendo: “me ajude, por favor, me liberte, meu lindo”.

Eu queria correr, gritar, mas vi que precisava fazer alguma coisa. Peguei uma panela de ferro e comecei a bater contra aquele rosto com força. Os velhos tijolos de barro iam se rompendo e esfarinhado.

O barulho atraiu meus pais e minha avó, caminhando com dificuldade. Ela gritava desesperada e minha mãe: “pare com isso moleque, está maluco?” Meu pai tentava me segurar , mas eu estava enfurecido, até que algo muito estranho aconteceu.

A parede rachou-se e claramente era possível ver um crânio humano. Minha avó chorava em desespero e minha mãe tentava acalmá-la.

Meu pai, maior e mais forte continuou a remover os tijolos, com o auxílio de uma ferramenta. A cena macabra era um corpo, emparedado, aparentemente ainda com vida, devido à disposição dos ossos. A polícia foi chamada.

O que ficou esclarecido foi que aquele corpo era de Lu Abrantes, uma jovem de dezoito anos, desaparecida há mais de cinqüenta anos. Devido ao estado de saúde de minha avó, nenhuma informação foi obtida, e esta veio a falecer uma semana depois.

Mas, através do empenho da polícia algumas testemunhas de época e várias investigações, descobriu-se que esta moça teria sido uma ex-namorada de meu avô, e que devido ao poder aquisitivo dos familiares de minha avó, acabaram se casando.

Lu, revoltada, tentou por todos os meios reaver o relacionamento, mas num momento de fúria, minha avó a atacara. Com a ajuda de um empregado, pegaram a moça ainda viva, mas inconsciente a emparedaram viva, num muro que fazia divisa num barranco, o qual, anos mais tarde viria a fazer parte da cozinha da nova casa construída. Minha mãe contou que minha avó era uma mulher muito ciumenta de meu avô, e que a família Abrantes era odiada por minha avó. Minha mãe nunca soube, até então o motivo de tanto ódio.

Os restos da moça foram enterrados no cemitério da cidade, no túmulo de sua família, dando-lhe o devido descanso eterno. Caso esclarecido. Já se passaram vinte e dois anos. O que tiramos de tudo isso é que não existe um crime perfeito.

Sim, não posso deixar de falar que no mês seguinte desse episódio tive um novo sonho. Era Lu Abrantes, me agradecendo porque agora poderia descansar em paz.

Paulo Farias
Enviado por Paulo Farias em 04/05/2013
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