O Terreiro de Exú Caveira

Os convidados foram chegando. Não era permitido que se vestissem de preto, por isso, Helena e Carlos foram barrados na porta do terreiro de Pai de Aruanda.

- Não avisaram que não era para se apresentarem vestidos de preto?

Indagava a iaô,um pouco enfurecida. Helena tentou se justificar:

- Avisaram, mas não sei o por quê senti uma forte inclinação a vestir esta roupa...

- Eu, também, não sei como explicar, mas o preto me seduziu no meu armário, demais.

Emendou,Carlos.

Mas, como falta de educação, ali não existia,providenciavam que pudessem ser assistidos. Uma negra jovem,bonita, de olhar penetrante pediu que aguardassem numa sala contígua-uma espécie de recepção,ali tinha uma mesa e bancos de madeira, flores e plantas de viçoso verde. Um papagaio os observava, sem nada falar.

- Será que vamos ter que voltar para casa?

- Não sei, voltaremos, se for o caso...

Travaram esse diálogo. A esposa com a interrogativa. Helena era jovem e bela - uma balzaquiana que se vestia com elegância.Dentista formada e falava inglês, de forma fluente,havia morado por mais de cinco anos na Inglaterra, em Londres. A mulata, com um andar mais do que sedutor, em sua saia branca, rodada retorna. Carlos não tirava os olhos do par de seios rijos da mulata e de sua farta anca.

- Vistam-se com estas roupas, é o que temos de mais confortável, no momento.

Peças de roupas de ração,brancas e de simplicidade no corte,sem adereços. Uma peça feminina, de babados e outra masculina, bem mais crua no seu feitio. Vestiram-se num quartinho que segurava uma cortina na entrada, ao invés da porta.

- Agora, podem entrar para o salão. A festa vai começar. Entraram no espaço, ricamente decorado com apetrechos do Candomblé, com o cheiro particular de incensos queimando e de demais defumadores feitos de folhas. Num canto alguns homens tocavam atabaques-eram os ogans da casa. Era uma festa de Egun. mas Exú estava convidado. Um dos homens cantava, com o refrão dito pelas negras vestidas de branco-de batas e de saias rodadas, de alvura elogiável. A música soava nos ouvidos, com agressividade. O coração do casal disparava. A melodia era assim:

Portão de ferro,

Cadeado de madeira...

Portão de ferro,

Cadeado de madeira...

É no portão do cemitério,

Onde mora o Exú Caveira !

É no portão do cemitério,

Onde mora Exú Caveira !

O sino da igrejinha faz belém blêm blom !

O sino da igrejinha faz belém blêm blom !

Deu meia-noite o galo já cantou,

Seu Tranca-Ruas que é dono da gira,

Corre gira que Ogun mandou !

Vinha caminhando pela rua,

Quando avistei um vulto,

E fui ver que era...

Quem era? ô ! Quem era?

Era Tiriri ô !

Na encruza, era !

Seu Zé Pelintra quando vem,

Ele trás sua magia,

Para saudar todos seus filhos,

E retirar feitiçaria !

Pisa na Aruanda Zé Pelintra,

Eu quero ver !

Pisa na Aruanda Zé Pelintra,

Eu quero ver !

As negras rodavam sem parar, com as suas saias que abriam feito pião de criança. Suavam,de olhos fechados,riam. Entidades se manifestavam gargalhando. O ambiente era sombrio, sinistro. Helena estava amedronatada.Carlos pensava se tratar de uma dança,nada além.

Zé Pilintra falou: " tudo vai dar certo... se a minha Legião quiser,se não queiser,não vai dar"

Um jovem sem camisa, suando de tanto rodopiar,de cor negra, revirava os olhos, postou-se em frente ao casal. E falava: " tudo vai dar certo... se der o que a Legião pedir..."

Tranca Ruas falou: " Não vai dar, eu vou impedir.Vou acabar com a felicidade do casal... Não fui feliz para que dar felicidade?"

Disse na voz de uma jovem, gargalhava, voz masculina. Agachava-se e batia com os punhos cerrados no chão,forte. Batia com força por vezes seguidas, como se quisesse ali abrir um buraco.

Helena ficou amedrontada, um par de lágrimas rolou por sua face.

Os filhos de santo foram ao chão , num desmaio coletivo. O Pai de Santo,surpreso, ergueu-se de seu trono.Perguntou:

- Mas, o que está acontecendo? Quem interrompe a nossa festa? Minha Ekede...minha Axagum..

A cabocla, vestida de branco,não tinha as pupilas nos olhos-estas estavam viradas para os cantos, deixando a região ocular da forma mais bizarra possível. A voz era masculina. Falou:

- Não interrompo a festa. A festa é de Egun, então, é minha, também.Concorda? O portão do cemitério foi aberto,o cadeado de madeira foi aberto para mim,também...

O Pai de Santo, surpreso, indaga: - o que deseja?

- Não fez o trabalho de assentamento? Pois, aqui estou, eu sou o Protetor do casal. Quero afastar os que desejam fazer o mal. Expulsei o Tranca Ruas, O Exú Caveira, Zé Pelintra e o Tiriri. O portão de ferro foi aberto, foi trancado o cadeado de madeira. O sangue do despacho foi consumido, a farofa foi comida, o charuto fumado, a pinga foi bebida. E o seu dinheiro foi pago, Pai de Aruanda.

- Não pode invadir o meu terreiro assim, e acabar com um trabalho.

- Não pode invadir a minha família, eu sou o pai de Helena. Tentei impedir com as roupas pretas, mas não foi possível, então eu cheguei.

naquele momento, a filha reconheceu a voz do pai, segurou-se para não desmaiar. O seu esposo estava pasmo - era um atéu convicto.

- Fizemos um trabalho encomendado...

Ralhou o Pai de Santo.

- Não quero a sua Legião na minha família-são cruéis e cobradores. Eu vou ser o Egun da família - é um sacrifício, e quero que me aceite.Quero ser assentado no lugar dos de sua Legião.

Daquele dia em diante, Helena estava mais tranquila. A sua fé em Deus havia sido fortalecida. A crença de que havia vida após a morte, uma realidade. O seu pai estava assentado em sua casa e no terreiro, para sua proteção. Até quando, não se sabia. Exú Caveira, Tiriri,Tranca Ruas estavam de prontidão, aguardando uma nova oportunidade,haja visto que um Egun poderá partir quando chegar a sua hora,mesmo um escravo um dia se liberta. Ficou na memória do casal esta estrofe da melodia:

"Portão de ferro,

Cadeado de madeira...

Portão de ferro,

Cadeado de madeira...

É no portão do cemitério,

Onde mora o Exú Caveira !

É no portão do cemitério,

Onde mora Exú Caveira !"

Leônidas Grego
Enviado por Leônidas Grego em 28/05/2013
Reeditado em 15/09/2013
Código do texto: T4313244
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