O Castelo dos Cárpatos

Vampiros. Você pode não acreditar neles, como eu não acreditava, mas eles existem.

Essa é a história de como descobri isso, da pior maneira possível. Sei que o leitor não irá acreditar em uma palavra do que está aqui, mas é a mais pura verdade, e se eu pudesse dar um conselho, seria esse: nunca pise na Romênia.

Pusemo-nos a caminho do castelo dos Cárpatos, cortando a floresta Transilvânia através de uma trilha. Íamos a três: eu, Ângelo Lucatelli, Marek Moeckel e Wansti Blahus. Fazia exato um mês que eu chegara ao aeroporto de Praga, a capital da República Tcheca. Eles me ciceronearam pela suntuosa capital de sua jovem nação recém-separada da Eslováquia. Andamos por castelos e monumentos, visitamos templos e boates, clubes noturnos exóticos e livrarias nada ortodoxas. Eu conhecera os dois amigos tchecos pela rede mundial de computadores, em um site chamado Lernu, o qual promove o intercâmbio entre estudantes de esperanto ao redor do mundo. Foram alguns anos de amizade genuína, na fraterna sinergia do movimento esperantista fundamentalista, daqueles que creem na fina venko (a vitória final), o dia em que a maioria dos habitantes da Terra adotar o esperanto como sua segunda língua. Com esse ideal em mente, e buscando treinar meu esperanto, embarquei no aeroporto de Guarulhos rumo à República Tcheca um mês atrás.

Estávamos a vinte e cinco dias em Praga, quando Wansti sugeriu que fossemos visitar um tio seu que vivia às margens da floresta Transilvânia, terra onde impera o folclore do sobrenatural, onde festas populares relembram criaturas que escaparam dos infernos para buscar as almas dos humanos desavisados. Fomos ignorantes de nosso futuro, sem saber que participaríamos de uma dessas “lendas” em breve. Com a imagem clássica Bela Lugosi e do Conde Drácula em mente, dei mais um trago na cerveja forte daquelas terras e sorri para meu amigo tcheco. A partir de então foi uma longa jornada, atravessamos a pé, de ônibus e de trem planícies, montes, vales e despenhadeiros até alcançar o pequeno burgo onde o tio de Wansti morava, na antiga Romênia. Era um lugar realmente entediante, não fosse a paisagem estonteante da floresta e dos montes que nos cercava e a cerveja pesada. A grande atração do burgo era um castelo abandonado no alto de uma escarpa, algumas léguas dali. O castelo pertencera a uma família nobre e ficou abandonado por mais de cinquenta anos, até a prefeitura local transformá-lo em museu. O zelador do local, Valek, era aparentado a Blahus, como dois terços do pequeno burgo. Após dias apenas apreciando a cerveja local, preparamos nossas mochilas com o equipamento de camping e partimos em busca de aventura junto à natureza sombria daquelas paragens. Antes de sairmos, o tio supersticioso de Wansti colocou em cada um de nós um cordão feito de barbante bento na abadia de Santo André, "para nos proteger de qualquer mal".

Seguimos pela trilha até o sopé de uma montanha onde diziam que espíritos noturnos enlouqueciam os viandantes. Dormi como um rei, meus amigos de acampamento até reclamaram do barulho do meu ronco. Mal imaginava os terrores que se abateriam sobre nós nesse mesmo dia, quando alcançamos o castelo dos Cárpatos.

Estava escurecendo quando subimos uma escarpa e divisamos a clareira entre um velho poço seco há muito tempo e as linhas do castelo medieval sinistro e austero se destacando sobre o céu tingido dos matizes violáceas do crepúsculo. Gritos abafados foram ouvidos por nós. E Wansti de olhos arregalados gritou por Valek, jogou sua mochila e correu, em desespero, pelo grito esganiçado de seu parente. Marek, confuso, porém mais calmo, seguiu atrás do amigo. Eu dei um passo para trás e, tenho vergonha de dizer, olhei para a estrada por aonde viemos, imaginando se conseguiria encontrar o caminho de volta para o burgo, e, ciente da total impossibilidade de consegui-lo, segui Marek com muita cautela.

Wansti Blahus empurrou a porta e o urro que soltou ecoa na minha mente até hoje. Dentro do museu ocorrera algum tipo de ritual que me recuso a reproduzir aqui, que de tão nocivo à humanidade carregarei comigo para o túmulo. O fato é que o grito que ouvimos de Valek fora o derradeiro, ele expirara na mão daqueles demônios. Quando entrei no museu, Wansti estava em luta corporal com o assassino: um ser que outrora fora humano, um revenant, um vampiro. O monstro usava trajes nobres e empoeirados, sujos e degenerados como sua alma. Ele tinha uma força superior à humana, e Wansti visivelmente não conseguiria dar cabo dele. Quis correr de volta para a mata, mas estava petrificado, minhas pernas não me obedeciam. Havia três asseclas também nos fundos do velho castelo. Os asseclas, criaturas embrutecidas por um ódio vil, eram demônios animalescos que mal lembravam seres humanos, não andassem em pé seriam tomados por feras, cães em forma humana, seguindo seu mestre servilmente.

O mestre lhes ordenou algo, na língua local, motivo pelo qual não entendi no momento, mas que referia ao destino do cadáver de Valek, o qual era parte integrante de um plano para reviver criaturas mais odiosas ainda, que jaziam no fundo daquele poço abandonado. O motivo do sangue de Valek ter sido necessário, e o motivo daquele momento em especial ser necessário, eu pude apenas especular. Teria algo a ver com a linhagem de Valek, seria ele descendente do antigo morador daquela construção. Seguindo as ordens do mestre, as criaturas arrastaram o corpo para os fundos da construção. Conjecturei, posteriormente, se haveria algo especial naquele momento. Conjecturas. Conjecturas que de maneira nenhuma pude ter naqueles momentos, somente tempos depois. Ao que pude perceber, Valek tentara abater as criaturas com um revólver, pois a arma ensanguentada estava ali, aos pés do revenant. Blahus, ensandecido, pegou a arma e atirou no peito do monstro, onde um esgar de ironia irrompeu em seu semblante. O monstro se virou e agarrou uma espada que adornava a parede atrás de si e girou a lâmina no ar, percorrendo um círculo no ar ela terminou no pescoço de Blahus e um baque seco gelou minha espinha, me deixando congelado na entrada da mansão. O cordão bento não foi capaz de segurar a cabeça de nosso amigo Wansti sobre seu pescoço.

Eu sentia como se participasse de uma montagem de terror, e enquanto Marek buscava uma espada que estava pendurada na parede, as bestas retornaram dos fundos do aposento com o cadáver enrolado em uma cortina manchada de sangue. Eu recuei aterrorizado, mas os demônios azulados e macilentos não atentaram contra mim, me ignoraram como a um inseto, assando rente a mim sem dar por minha presença. Caminhavam em direção ao poço, rosnando, babando e gemendo. Caminhei para o pátio externo, recuando lentamente, Marek logo apareceu no pátio em que me encontrava, se protegendo dos golpes furiosos do vampiro, que de uma outra época, era muito melhor na arte do que meu amigo.

Os monstros se sentaram na mureta do poço e cuidadosamente desceram o cadáver para a escuridão, enquanto a luta prosseguia ante meus olhos sem que um dos dois parecesse que fosse ser derrotado, mas meu amigo dependia de um vigor humano, o revenant, não.

Marek se virou para mim e gritou, apertando os olhos enquanto defendia um golpe:

— Helpu min!

Aquelas palavras surtiram um efeito extraordinário sobre a criatura. Por uma fração de segundos ela hesitou, como se uma memória humana sepultada pela malignidade vampírica estremecesse as estruturas de seu interior. Aproveitando-se disso, Marek cravou a espada no coração da criatura. Algo inusitado aconteceu, o ser tremeu e soltou um grito abafado pelo sangue que lhe engolfou a garganta, simultaneamente os três asseclas da criatura urraram de dor e tombaram inertes, em derredor do poço por onde desceram o cadáver de Valek.

A criatura, à beira da morte, teve seus traços demoníacos suavizados através de uma metamorfose sobrenatural; a pele alva como mármore afogueou-se; os cabelos eriçados acalmaram-se e ficaram rente ao couro cabeludo; os olhos sinistros e rubro-sangue, como os de um rato, voltaram ao normal humano, desaparecendo as olheiras roxas. Pude então reconhecer o ser humano que se perdera naquele monstro:

— Zamenhof!?

O velho, já sem os traços de sua conversão, me fitou como se acordasse de um sonho.

— Jes, ĉi tiu estis mia nomo. Sim, esse era meu nome. Quando estava à beira da morte fui atacado por um vampiro que me converteu em um vampiro. Pude preservar algo de meu gênio e meu ideal, e, quando soube da possibilidade de cumprir a vitória final...

Ele tentava falar, mas já não conseguia mais articular muita coisa, o sangue arroxeado brotava da ferida aos borbotões.

— La fina venko...

— A vitória final?

— Sim... No fundo do poço... Um mal que acabaria com toda vida não vampira... Finalmente todos seriam como eu e todos falariam o esperanto...

Assim o iniciador do esperanto expirou. Eu olhei para Marek, que estava estupefato, soltara a espada e sentara no chão fitando o vazio. Ele olhou para mim, finalmente, e do fundo de seus olhos um ódio faiscou:

— Lucatelli, I will never speak Esperanto again. Let´s go, we need to find the local authorities and tell something to them.

— Well... I never think I will say something like these, but for now on English will be my second international language.

Os cadáveres da criatura então se desfizeram em cinzas e foram levados pelo vento dos Cárpatos. Não imaginava como poderíamos explicar o cadáver decapitado de Blahus e o corpo do zelador que jazia no fundo daquele poço macabro. Perguntei, em inglês, para Marek, se não era melhor inventarmos uma história mais verossímil para as autoridades, mas ele não respondeu de pronto. Um maníaco, um maníaco, ele repetiu, fomos atacados por um maníaco, entramos em luta corporal com ele tentando defender Valek, que foi morto e jogado no poço por um comparsa, Blahus foi decapitado pelo maníaco e nós fugimos por nossas vidas. Eu assenti. Não precisaríamos torcer para que os oficiais da lei fossem tão supersticiosos quanto o tio de Wansti Blahus, descemos a colina em direção ao burgo, sob a luz das estrelas.

Nos dias que se seguiram fomos manchete de jornal: o maníaco dos Cárpatos, dois mortos, suspeito não identificado. Foram encontradas impressões digitais na cena do crime, mas elas não constavam em registro nenhum, eram de alguém que morrera no século XIX. Fui obrigado a aguardar o fim das investigações na Romênia, e após dois meses retornei ao Brasil.

Mauricio R B Campos
Enviado por Mauricio R B Campos em 04/06/2013
Código do texto: T4325625
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