Detendo assassina

Tinha que pôr limite em minha ex-querida R.O. Ela havia ultrapassado a linha divisória que separa um mero assassino capaz de matar com frieza, do matador compulsivo, cuja ação criminosa é movida pelo prazer em tirar a vida de alguém, sem que consiga parar em decorrência de uma decisão própria. Tornou-se uma serial killer. Pior, transformou-se em canibal. Sendo mais preciso: não se contenta em exterminar um indivíduo. Esquarteja! E segue muito além. Alcançou o extremo da patologia: come os restos, degustando-os com indescritível satisfação. A da carne, na dupla acepção de quem se alimenta de despojos humanos ao mesmo tempo em que atinge orgasmos ao consumi-los. Pude vê-la na prática desse exercício abjeto, macabro.
Foram três as ocasiões. Da primeira, matou um encanador chamado para fazer um conserto em sua casa. Tirou-lhe a vida com golpes de chave inglesa levada por ele. Era um instrumento de trabalho. Nesse caso, entendi como vingança e até como benefício para a sociedade. O sujeito era um pedófilo reincidente que cumprira pena por estupro comprovado de sete meninas. Uma delas era vizinha de R.O. O criminoso passara pouco tempo na prisão e depois de solto assediara pelo menos duas crianças. Se as leis de nosso país são muito brandas para quem comete crime hediondo, a sociedade tem o direito de proteger-se como pode, até com o extermínio do monstro. Foi assim que entendi. Outro aspecto foi encarado por mim como atenuante na ação de minha amiga: ela deixava suas vítimas dopadas antes de aplicar o golpe fatal. Não sofrem. Ou seja, ela se portava como justiceira benfeitora da humanidade e externava alguma compaixão por aqueles a quem remete desta para melhor.
O segundo caso também envolveu um desalmado e o método utilizado obedeceu o mesmo rito. Primeiro, fez dormir. Matou depois.
E foi este segundo caso que me fez decidir a romper o namoro que eu tinha com ela. Tomei precauções, claro. Não queria deixá-la com fúria mortal por mim. Afinal, seu pequeno mas contundente e repulsivo histórico criminal me fez convicto de que estava diante de uma pessoa letalmente perigosa que poderia se voltar contra mim. Além do mais, achava repugnante a ideia de um ser humano tirar a vida de outro, por mais calhorda e abjeto que este fosse. Em algum momento o sacrificado poderia ser eu mesmo. Durante nosso relacionamento amoroso, R.O. demonstrava ser uma mulher normal, sem impulsos criminosos. Até condenava a violência, dizia detestar filmes policiais e revelava horror quando percebia que alguém portava uma arma de fogo. Sua libido era um tom acima do que eu conhecia em outras mulheres. Ela chegava a criar situações constrangedoras para mim, como nas ocasiões em que, na presença de outros me beijava com sofreguidão ou quando acariciava minha genitália no corredor de acesso à sala de trabalho, desatenta ao risco do aparecimento súbito de alguém.
Uma mulher com esse tipo de comportamento não tem personalidade perversa. Na realidade, eu esqueci a lição que tantas vezes repeti, a de que psicopatas passam desapercebidos para aqueles com quem convivem. Costumam ser socialmente enquadrados.
Planejei com riqueza de detalhes minha retirada de sua vida íntima. Achando-a com toques de ninfomania, lancei mão de terceira pessoa para fazer chegar ao conhecimento de funcionário recém-admitido, a informação de que R.O. nutria por ele um interesse mais que profissional. Vaidoso e sabendo que a posição dela na empresa poderia ajudá-lo na ascensão profissional, o jovem bem apessoado não vacilou. Foi ao ataque, ou melhor, deu início ao assédio, com a sutileza recomendada pela cupido. Naqueles dias, eu estava de partida para um período de treinamento em outro país. O tempo previsto de ausência era de dois meses. Bastante para ele atingir seu objetivo, tanto mais que a insaciável estaria sem o namorado para satisfazê-la em suas demandas...corporais insaciáveis.
Já distante há duas semanas, tomei conhecimento de que ela se mostrava resistente aos "botes" atirados pelo funcionário donjuanesco, enquanto este, por sua vez, considerando o comportamento da moça como "charminho" para valorizar o passe, insistia. Era do tipo que repetia o chavão: "não há mulher difícil; o problema é a incompetência de certos homens para capturar a caça".
Enquanto isso, durante as conversas com ela por telefone e diversos meios eletrônicos, eu ia deixando "escapar" minha "percepção" de que ela já não se mostrava tão afetuosa comigo. Não era verdade, essas palavras de insatisfação faziam parte de minha estratégia de afastamento da psicopata. Minhas queixas evoluíam em crescendo, usando cada vez mais expressões de desencanto e decepção, até informá-la sobre minha convicção de que, como homem, eu já não lhe despertava mais qualquer interesse. Seria penoso para mim o rompimento - disse-lhe - mas assegurei que seria melhor assim, sobretudo porque a distância dificultaria uma recaída nossa que, se viesse a acontecer, estaria fadada a durar pouco e trazer consequências emocionais negativas para os dois. Ela tentou me convencer do contrário, mas insisti. Óbvio, jurei minha amizade eterna por ela.
Quando voltei da viagem, fui à sua sala, levar-lhe um presente. O rapaz estava lá, em pé, de frente ao birô de trabalho dela, que se encontrava sentada na cadeira giratória, com a atenção aparentemente dividida entre o computador e o tal funcionário. Mal abri a porta, deparei-me com o largo sorrio que ela me dirigiu. Disse que voltaria em outra oportunidade, pedindo desculpa pelo "incômodo" causado. Ela me alcançou já no corredor, tocou em meu braço mas eu me limitei a lhe entregar o pacote e disse que nos falaríamos em ocasião oportuna.
- Não é o que você está pensando, seu bobão! - disse olhando em meus olhos e falando em voz alta mas com algum toque de ternura.

Continua em outro capítulo.

Alfredo Duarte de Alencar
Enviado por Alfredo Duarte de Alencar em 14/06/2013
Reeditado em 15/06/2013
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